12 de maio de 2017

Comentários aos comentários ao apêndice

Há poucos dias, Felipe Sabino publicou no GoodReads um comentário fortemente negativo com cerca de duas páginas de extensão sobre o livro “Faça discípulos ou morra tentando”, do pr. Yago Martins. Injustiças contra livros e autores são cometidas na internet diariamente e aos montes. O que me move a comentar esse episódio em especial é o fato de que sou o editor do livro. Isso não me obriga a concordar com todas as ideias e argumentos nele apresentados, mas me dá o direito de defendê-lo contra críticas que me parecem descabidas, especialmente quando vindas de um irmão que ocupa um lugar importante no mercado editorial reformado brasileiro (muito mais importante que o meu, sem dúvida alguma). O comentarista atribuiu apenas uma estrela ao livro, e os argumentos que embasam esse juízo serão resumidos e comentados abaixo.

Não se trata de uma resenha, pois quase todo o conteúdo do comentário trata apenas de uma parte do apêndice do livro, que totaliza 13 páginas. Esse apêndice se chama “Discipulando o seu país”, e é especificamente sua primeira (e menor) seção que constitui o alvo da crítica. O subtítulo é “Teonomia, discipulado nacional e o ensino de todas as coisas”. O autor critica a visão delineada em um livro de Stephen Perks sobre a Grande Comissão, em particular seu entendimento de que ela ordena discipular nações, e não indivíduos. A tese principal do comentarista diz que “a interpretação de Perks não é oriunda do seu teonomismo, mas de uma visão escatológica particular, a saber, o pós-milenismo”. Os argumentos que ele apresenta são os seguintes. A divisão em tópicos é de minha responsabilidade.

1. Depois de transcrever as palavras de Perks, o autor diz: “Muitos outros seguem esta visão. Segundo Matthew Henry, […]” (p. 231). Contudo, o comentarista informa que Henry não era teonomista, e infere dessa referência a ele que o autor não entende a distinção entre um posicionamento sobre teonomia e um posicionamento sobre escatologia.

Essa inferência da ignorância do autor, sobretudo quanto a uma questão tão básica, parece-me apressada demais. O apêndice não afirma que Henry era teonomista, e é mais natural entender as palavras “Muitos outros seguem esta visão” como se referindo especificamente ao que Perks acabou de afirmar na citação da página anterior, e não à teonomia em geral. Na verdade, as citações desse novo parágrafo, que além de Henry incluem John Peter Lange e David Chilton, são claramente menos ousadas que a de Perks, e se limitam a constatar que os Estados nacionais devem se submeter a Cristo. Nenhuma delas vai tão longe quanto Perks ao dizer que “A Grande Comissão não nos comanda sair e discipular indivíduos”. Parece mais natural inferir que o autor está aqui empenhado em demonstrar apenas que o foco em nações não é uma excentricidade isolada de Perks, conquanto ele possa ter disso uma visão particularmente radical.

Em suma, seria compreensível se o comentarista acusasse o autor de não saber que Henry não é teonomista, embora eu pense que o texto não permite essa inferência. Seria mais justo que o autor fosse acusado de cometer um pequeno deslize ao incluir sem aviso prévio um autor não teonomista por causa de certa afinidade com o pensamento de Perks. Mas nada no texto permite inferir que o autor desconhece a distinção entre teonomia e escatologia. Esse é um passo muitíssimo maior que o permitido pela evidência disponível, e seu único efeito é a interrupção da discussão séria mediante o expediente de denegrir, pela hipérbole, a imagem do criticado.

2. O comentarista argumenta que, dada uma adesão prévia ao pós-milenismo, “é natural ele acreditar que não somente uns poucos indivíduos de cada nação serão alcançados, mas um número tão grande que podemos dizer que toda uma nação foi convertida”. Suponho que sua intenção é sugerir que foi tão somente isso o que Perks quis dizer ao falar em “discipular as nações”. Resultaria daí que o autor do apêndice o entendeu mal e está argumentando contra um espantalho. Na verdade, o comentarista censura o autor por “sugerir que Perks nega a ideia de se discipular os indivíduos como MEIO de discipular uma nação como um todo, o que é absurdo completo. Trata-se de representação caluniosa, ou analfabetismo funcional.”

Se entender do mesmo modo que o autor revela analfabetismo funcional, também sou um analfabeto funcional. Contudo, não me parece que o comentarista o tenha interpretado corretamente. Em parte alguma o autor afirma que Perks é contra a evangelização individual. No entanto, a citação de Perks transcrita no apêndice diz claramente que “A Grande Comissão não nos comanda a sair para discipular indivíduos. […] Ela nos comanda discipular as nações” (p. 230). Se estivesse correta a interpretação do comentarista, não faria sentido algum contrapor as duas coisas, e essa contraposição é exatamente o que Perks faz. Pelo que está escrito aí, eu não cumpro a Grande Comissão ao evangelizar meu vizinho. Até onde posso ver, a interpretação do autor está correta, e o comentarista tenta em vão diluir a força das afirmações de Perks em um lugar-comum pós-milenista. Mas se for verdade que Perks, embora dê a entender o contrário, considera a evangelização individual um meio para o cumprimento da Grande Comissão, ele continua deslocando indevidamente o foco do texto dos indivíduos para as nações, e com isso o essencial das críticas do apêndice continua sendo pertinente.

É possível, naturalmente, que Perks tenha se expressado mal, que ele tenha se deixado levar pelo excesso de retórica. Nesse caso, porém, o comentarista podia não só ter expressado seu desacordo interpretativo com maior polidez, mas também ter resolvido a questão apresentando evidências de que sua interpretação é preferível. Se, ao contrário do que aquela citação isolada dá a entender, Perks crê que quem evangeliza indivíduos está de fato atuando no discipulado das nações, não deve ser difícil documentar isso com base em outras obras, ou mesmo de outras partes da mesma obra. Apresentar essa evidência elevaria o nível do debate e, na verdade, eliminaria qualquer dúvida sobre o problema. Acusar de calúnia e analfabetismo funcional não faz nenhuma das duas coisas.

3. O comentarista acusa o autor de arbitrariedade por chamar de “teonomista” a interpretação que Perks e Gentry dão ao texto da Grande Comissão. Ele qualifica essa associação como “absurda" e diz que isso “é o mesmo que chamar a interpretação de Perks sobre João 1.1 de 'interpretação teonomista'. Ora, se o tema de Mateus 28 não é o papel da lei de Deus no mundo moderno, não podemos chamar a interpretação de interpretação teonomista ou não teonomista.”

O argumento me parece falho por duas razões. A primeira é que, embora eu esteja longe de me considerar um conhecedor profundo do pensamento teonomista, estou informado de que uma de suas ênfases é precisamente a validade perene da lei de Deus. E, justamente por ser perene, essa validade nada tem de particularmente moderno. Se os teonomistas enfatizam o mundo moderno em suas discussões, é tão somente porque vivem nele, e não porque o mundo moderno esgote o interesse da teonomia. Daqui a mil anos poderemos estar no mundo pós-pós-(…)-pós-moderno, e os teonomistas de então ainda estarão dissertando sobre o papel da lei de Deus naquele contexto. Tanto a lei de Deus (segundo o entendimento teonomista) quanto a Grande Comissão estão em vigor, de modo que não há nada, em princípio, que impeça um teonomista de ver conexões entre as duas coisas. Ou, se há, essa razão não foi bem expressa no argumento do comentarista.

A segunda razão pela qual considero esse argumento fraco é justamente o fato de que Perks parece ver uma conexão entre as duas coisas. Embora o comentarista se esforce para nos convencer do contrário, não é nem um pouco despropositado que um teonomista enxergue afinidade entre a ideia de “discipular as nações” e a adoção da lei de Deus pelos Estados nacionais, interpretando dessa maneira o texto da Grande Comissão. Isso não é arbitrário nem absurdo, sobretudo porque Perks, em sua exegese, enfatiza o alvo institucional em contraposição ao individual.

A expressão “interpretação teonomista” talvez pudesse ser desrecomendada em outras bases. Por exemplo, se fosse demonstrado que o entendimento que Perks apresenta do texto da Grande Comissão é contradito pelo de outros teonomistas, que é minoritário nesse meio ou que há opções hermenêuticas igualmente (ou ainda mais) compatíveis com a teonomia. Mas não há a mínima sugestão de nada disso no comentário.

4. Sobre os problemas que o autor aponta na visão de Perks, o comentarista declara que “são tão ilógicos e sem relação com a posição do autor, que não merecem ser comentados”. Apesar disso, ele graciosamente comenta dois itens. O primeiro é que, segundo o autor, a visão de Perks “faz com que acreditemos que o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O comentarista pergunta: “Mas como os estados se tornariam cristãos sem que houvesse um número de convertidos majoritário nesta nação?” A implicação pretendida parece ser a de que isso é contraditório e demonstra que o autor do apêndice não entendeu bem a posição de Perks. Como demonstrei no item 2, o comentarista já tentou provar isso, mas sem sucesso. Se o comentarista estiver correto em ver aí uma contradição, nada em seu argumento nos obriga a pensar que o responsável por ela seja o autor do apêndice. Pode muito bem ser uma contradição de Perks. Na verdade, talvez nem seja uma contradição (pessoalmente, não estou convencido de que seja). Mas essa pressa do comentarista em atribuir contradição ao autor, quando há outras opções claramente disponíveis e não refutadas por argumentação consistente, é indício de certa má vontade de sua parte, e isso é tudo o que julgo dever observar.

5. O segundo item comentado pelo comentarista é a comparação com o islamismo. O autor afirma que, adotando-se as ênfases de Perks, “nossa visão teológica da Missão será mais parecida com a visão islâmica” (p. 232). O comentarista objeta a essa comparação dizendo que os principais teonomistas defendem um Estado mínimo constituído exclusivamente para punição de malfeitores. Ele objeta também que o Estado teonomista, ao contrário do islâmico, “não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração” (essa afirmação do comentarista constitui uma trapalhada transcultural, mas não convém tratar disso aqui). E alfineta novamente, com frases como “qualquer pessoa que estude minimamente a posição teonomista sabe que […]” e “Eu esperaria que um comentário 'um pouco mais técnico' considerasse isso”.

Essa objeção desconsidera o contexto da afirmação do autor. A semelhança que ele vê entre a visão teonomista da Grande Comissão e a visão islâmica está explicada no mesmo parágrafo: não reside no tamanho ou função do Estado, e sim na convicção de que “o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O texto do apêndice não autoriza a suposição de que o autor enxerga qualquer outra semelhança além dessa. Sem perceber, o comentarista mudou de assunto e desperdiçou alfinetes.

6. Vem em seguida uma série de recriminações que repetem a falácia do item 4. O autor é reprovado por desconsiderar que “no teonomismo […] o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições” e que “para qualquer um que conheça a posição teonomista, esse Estado ideal não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração”. Ainda que tudo isso seja verdade, resta o fato de que Perks afirmou que a Grande Comissão trata de discipular nações, e não indivíduos. Se ele disse isso sendo inconsistente com sua posição teonomista, devem existir dezenas de obras teonomistas reprovando-o explicitamente por isso, e o comentarista poderia fortalecer seu argumento apresentando algumas citações nesse sentido. Se, ao contrário, outros teonomistas leram as afirmações de Perks e não viram nada de errado, isso indica que as coisas talvez não sejam bem como o comentarista as apresenta. Talvez haja alguma tensão interna a ser resolvida no pensamento de Perks, ou dos teonomistas em geral. Ou talvez, como já sugeri antes, Perks tenha se expressado mal. Em meio a todas essas possibilidades, que poderiam ser corroboradas com argumentos e citações adicionais, o comentarista optou por simplesmente acusar de ignorância o autor do apêndice sem fornecer evidência alguma, seja da ignorância, seja das verdades ignoradas. Não me parece justo que o autor do livro, que não é teonomista, tenha a obrigação de apresentar a teonomia sob uma luz positiva enquanto os teonomistas que o criticam desperdiçam tão grande oportunidade de demonstrar seus erros com argumentos melhores.

7. O comentarista diz que, segundo o teonomismo, “o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições, como ele sugere. Aliás, mesmo que o foco fosse nas instituições, estas são constituídas de indivíduos, ora bolas.”

O argumento é claramente falacioso. Nações são constituídas de indivíduos, e indivíduos constituem nações. Não é aí que Perks e o autor do apêndice divergem. Eles divergem especificamente sobre qual dos dois grupos de entidades constitui o foco do texto da Grande Comissão. E podem divergir justamente porque não é indiferente que o texto se refira a uns ou outras. Se fosse o caso, o próprio Perks não teria colocado tanta ênfase na importância de se entender que o texto se refere a nações, e não a indivíduos. E ele escreveu de modo a lançar dúvidas sobre se isso é mesmo tão óbvio quanto o comentarista afirma.

8. O comentarista volta a criticar o autor por associar teonomia e pós-milenismo e se põe a dissertar sobre as diferenças. Nenhuma evidência de que essa confusão de fato ocorreu é apresentada. Parece-me que o comentarista confia demais naquela menção a Henry, já discutida no item 1.

Para estabelecer a associação entre a interpretação de Perks e o pós-milenismo, seria relevante que o comentarista apresentasse evidências de que o pós-milenismo leva necessariamente (ou, pelo menos, com naturalidade) à visão que Perks apresenta na citação da página 230. A pergunta relevante é: por que o otimismo escatológico leva a privilegiar nações em detrimento de indivíduos na exegese de Mt 28.-18-20? Não vejo nenhuma razão para isso, e procurei delinear na seção 3 as razões pelas quais vejo alguma afinidade entre essa exegese e o espírito da teonomia. Esse seria um dos pontos mais importantes a demonstrar em uma defesa rigorosa da tese principal desse comentário. Especificamente, ficou faltando a fundamentação desta sentença: "os incautos, sem perceber, leem um trecho de Perks, atacam-no como se fosse um exemplo de heresia do teonomismo, quando na verdade é apenas o reflexo de uma visão pós-milenista”. Claro, faltou também demonstrar que o autor do livro é um incauto.

9. Na exposição do argumento final para dar só uma estrela ao livro, o comentarista declara: “Se este é o nível do conteúdo 'um pouco mais técnico' do livro, não me aventuro a ler o restante do livro.” Portanto, a nota foi dada com base apenas no apêndice. Ou talvez em parte dele, pois não há comentário algum sobre a maior parte do mesmo apêndice, que trata da teologia da missão integral. Ao todo, o comentarista parece ter lido menos de 5% do livro. Mas a estrela única foi para o livro todo. O comentarista está claramente confiante de que sua avaliação foi justa, e a razão para isso pode ser discernida nas palavras acima. Seu argumento é este: se a parte que o autor aponta como “mais técnica” é tão ruim, a parte menos técnica deve ser igualmente ruim, ou pior. Mas esse raciocínio é falacioso. Já li muitos livros que são ruins na parte mais técnica e excelentes nas outras partes. Já li também muitos livros na situação oposta. O fato é que cada autor tem seus pontos fortes e fracos. Ainda que suas opiniões sobre o apêndice fossem manifestamente confiáveis, o comentarista não possuiria meios legítimos de fazer a inferência que fez. Não sem ler o livro.

10. Omiti vários ataques ad hominem contidos no comentário, limitando-me a apresentar apenas o suficiente para mostrar que houve má vontade na leitura, sobretudo na desproporção entre os defeitos (bem ou mal) verificados e os comentários depreciativos resultantes sobre a pessoa do autor. Apresento apenas mais um exemplo: “poderíamos resumir esse apêndice da seguinte forma, pelo menos no que concerne à teonomia: Yago não sabe o que está falando. Perdão por não vos apresentar uma novidade”. Essa última frase tem o efeito de reforçar eventuais predisposições contra o autor, mesmo que essa não tenha sido a intenção do comentarista.

11. Dentro desse mesmo espírito, era necessário ao propósito do comentário que algo fosse dito para neutralizar o efeito do prefácio do pr. Franklin Ferreira, que é reconhecidamente um dos maiores teólogos do Brasil. A questão que subjaz é: como um teólogo desse gabarito pôde prefaciar uma obra tão ruim? O comentário busca contornar esse problema ressaltando que no prefácio “quase não há interação com o texto” do livro. O post scriptum esclarece que não era sua intenção sugerir que o prefaciador não leu o livro, e sim “que talvez não haja nada digno de ser citado”. A sugestão implícita é a de que o pr. Franklin não vê problema em prefaciar livros nos quais não vê nada digno de ser citado. Basta pensar um pouquinho para ver que o argumento é fraco e, na verdade, está à beira do desespero.

Creio que devo concluir com alguns esclarecimentos sobre o que não tive intenção de fazer no presente texto. Primeiro, não é meu propósito incentivar qualquer desprezo pelo comentarista. Felipe Sabino não é exatamente um amigo próximo, mas mantenho por ele profundo respeito e gratidão, e essa invectiva lamentável não diminui meu apreço por ele. Também não pretendo fazer nenhum diagnóstico de suas motivações, pois isso é algo que ele mesmo pode fazer em seu autoexame diante de Deus. Da mesma forma, embora eu não seja teonomista, não vejo meu texto ou o apêndice do livro como condenações integrais da proposta teonomista. O movimento e o próprio Perks têm momentos melhores que essa interpretação específica da Grande Comissão, como o próprio apêndice sugere (p. 239 e 241). Se não foram abordados no livro, é porque o livro é sobre a Grande Comissão, e não sobre teonomia.

O que pretendo e espero ter feito neste texto é apenas favorecer um tratamento mais justo a um livro que não editei por acaso, nem por simples amizade com o autor, e sim porque sua leitura me abençoou muitíssimo. Seria uma pena e um desserviço ao Reino de Deus que alguém desistisse de ler o livro do pr. Yago Martins por causa do comentário que acabo de discutir. Se me dei ao trabalho de escrever uma refutação, foi apenas na esperança de soar mais convincente ao recomendar isto: que você ignore (ou melhor, suspenda o juízo sobre) o comentário de Felipe Sabino até ter lido o livro; mas, acima de tudo, que leia o livro. Vale a pena.

17 de dezembro de 2016

Profecia e divindade - parte 8

2.5. Deus como Pai

Um último ponto que precisa ser mencionado, por estar diretamente ligado à interpretação islâmica de Jesus e à negação de sua divindade, é a questão básica do que a Bíblia quer dizer quando atribui a Jesus o título de Filho de Deus e outros semelhantes. Já toquei nesse ponto no item 2.2, onde procurei mostrar que, segundo o Novo Testamento, Jesus é o Filho de Deus em um sentido que o distingue de qualquer outro ser humano. Ele é o Deus Unigênito, o único filho legítimo, ao passo que todos nós, quando chegamos a nos tornar filhos de Deus, o fazemos através de Cristo, por meio da adoção. É importante ter em mente mais uma vez que a expressão "filho de Deus" não era banal para os antigos judeus como é para a nossa cultura semicristianizada de hoje. Sem essa perspectiva, não entenderemos passagens como esta (João 5.17-18):

"Disse-lhes Jesus: 'Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando'. Por essa razão, os judeus mais ainda queriam matá-lo, pois não somente estava violando o sábado, mas também estava até mesmo dizendo que Deus era seu próprio Pai, igualando-se a Deus."

Esse trecho mostra que, mesmo quando Jesus não usava a expressão "Filho de Deus", as pessoas entendiam que ele estava atribuindo divindade a si mesmo ao se referir a Deus como "meu Pai". Esse pode parecer estranho à primeira vista, porque a metáfora de Deus como pai do povo de Israel é antiga, e inclusive está presente no Antigo Testamento. Mas o escândalo consistia justamente no fato de Jesus usar a primeira pessoa do singular: "meu Pai", e não "nosso Pai". Jesus nunca colocou sua filiação em pé de igualdade com a de nenhuma outra pessoa. Por exemplo, Jesus disse: "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém sabe quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar" (Lucas 10.22). Quando Jesus dizia que Deus é Pai dele, estava indo além da mera paternidade metafórica de Deus, e além também da simples ideia de Deus como Criador de todas as coisas. Ter um filho significa comunicar uma natureza. Quando geramos um filho, comunicamos nesse ato a natureza humana a esse filho, coisa que não acontece quando fazemos algo com nossas mãos - digamos, uma obra de arte. A obra de arte não é um ser humano; um filho, sim. Da mesma forma, quando Deus Pai criou o mundo, não transmitiu ao mundo sua natureza divina; o máximo que a Bíblia diz é que nós, seres humanos, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1.26). Mas não somos Deus, ao contrário de Jesus; por isso a Bíblia diz que ele é Filho, e não criatura.

Essas considerações são importantes para o nosso propósito porque o Alcorão nega enfaticamente que seja apropriado se referir a Jesus como Filho de Deus. Em algumas passagens parece que a queixa decorre de uma compreensão simplista e equivocada, pela qual Jesus seria filho de Deus por ter Deus mantido relações sexuais com Maria. Talvez essa compreensão grosseiramente materialista seja, de fato, a ideia que ocorre a muitos muçulmanos, em especial os menos cultos, quando ouvem que os cristãos consideram Jesus o Filho de Deus. E alguns dos que defendem a doutrina cristã contra as críticas islâmicas têm se limitado a desfazer esse entendimento equivocado. Porém, acredito que a objeção que o Alcorão levanta não é tão banal assim. Isso está claro em 19.34-35, em que as seguintes palavras são atribuídas a Jesus: "É inadmissível que Deus tenha tido um filho. Glorificado seja! Quando decide uma coisa, basta-lhe dizer: Seja!, e é. E Deus é o meu Senhor e vosso. Adorai-O, pois! Esta é a senda reta." Note que a questão fundamental é que, segundo o Alcorão, Deus só pode criar, mas não gerar; "basta-lhe dizer: Seja!, e é" é uma clara alusão ao poder criador de Deus, a criação a partir do nada, "creatio ex nihilo". O muçulmano não pode aceitar que Jesus seja chamado legitimamente de Filho de Deus, porque isso sugere justamente essa comunicação da natureza divina, o que faz com que Jesus não seja mais ontologicamente um homem como outro qualquer ("Deus é o meu Senhor e vosso"). Se isso fosse admitido, ficaria destruída a concepção islâmica do monoteísmo, pois estaríamos "associando" outras pessoas a Deus; como vimos no parágrafo anterior, os judeus contemporâneos de Jesus tinham exatamente essa mesma sensibilidade. Mas para o muçulmano a questão é ainda mais grave que para o judeu contemporâneo de Jesus, pois, como mostrei na parte 1, o primeiro está comprometido com uma revelação posterior e superior à de Cristo.

Por tudo isso, o preletor muçulmano fica muito aquém de fazer justiça à questão quando cita diversas passagens bíblicas que tratam da paternidade de Deus e conclui daí que Jesus ensinou uma posição essencialmente islâmica sobre esse tema. Ele chegou a dizer, referindo-se a certa declaração de Jesus, que "qualquer pessoa que disser que não busca sua vontade, mas sim a vontade do Pai, é um muçulmano". Mas essa conclusão não é verdadeira porque, a rigor, não há lugar para a paternidade divina no islã. O simples fato de Jesus ter se expressado nesses termos já revela uma incompatibilidade tremenda entre as visões cristã e muçulmana de Deus e sua relação com a humanidade e com o próprio Jesus. O Alcorão em parte alguma se refere a Deus como Pai, e tampouco essa ideia existe na intuição religiosa do muçulmano comum.

3. Outras questões

Com isso, chego ao fim da minha análise sobre a resposta do preletor muçulmano. Não quero encerrar, contudo, sem fazer dois breves esclarecimentos sobre duas questões que não foram abordadas diretamente, mas que estão de algum modo ligadas ao conteúdo do vídeo. Ambas brotam do fato de que a moça que faz a pergunta ao preletor no início do vídeo se identifica como católica. Sendo eu um cristão protestante, acredito que os comentários a seguir devem ser feitos, ainda que de modo breve, pois tocam em questões pertinentes às dissensões internas da cristandade.

O primeiro comentário é a questão da autoridade. Um dos objetivos do preletor muçulmano em sua resposta é mostrar que a Igreja não se manteve fiel à mensagem de Jesus e ao conteúdo da Bíblia em geral. Como expliquei antes, muitos muçulmanos acreditam que a própria Bíblia foi corrompida, mas o fato é que esse preletor não recorre a essa possibilidade. O importante é notar que, logo no início de sua resposta, o preletor explicitamente coloca em dúvida o ensino da Igreja e chama a um exame do próprio texto bíblico como árbitro supremo da questão. Já forneci longamente os motivos pelos quais não concordo com as interpretações bíblicas dele. Não obstante, sendo eu um protestante teologicamente conservador, concordo com ele que o caminho a ser seguido é esse mesmo. Uma das divergências fundamentais dos reformadores, que os levou para fora da Igreja Católica, era justamente sobre o problema de onde se situaria a autoridade máxima, onde está o referencial infalível. Os reformadores defendiam que conhecemos a vontade de Deus lendo a Bíblia e sendo instruídos pelo Espírito Santo a entendê-la cada vez melhor, de modo que a própria Igreja deveria ser julgada à luz da Bíblia. A doutrina católica, porém, sustentava e continua sustentando que a Bíblia só pode ser interpretada corretamente pela Igreja, e que o Espírito Santo não age à parte dela nesse sentido; nesse sentido, a Igreja não pode e não deve se submeter à Bíblia. Acho importante enfatizar essa diferença para deixar claro que, para um protestante como eu, criticar e rejeitar essa instituição chamada Igreja (ou alguma outra igreja) não equivale de modo algum a criticar ou rejeitar o cristianismo. Não considero nenhuma igreja infalível, incluindo aquela a que pertenço. Minha lealdade, no caso, à Igreja Presbiteriana do Brasil se dá na medida em que ela é fiel à Bíblia; essa fidelidade é imperfeita, é claro, mas considero-a substancial; se no futuro isso mudar, não hesitarei em ir para outro lugar. Dessa forma, protestantes e católicos se relacionam de modo muito distinto com a instituição eclesiástica. É exatamente por isso que grande parte da minha crítica ao preletor muçulmano se deu no terreno da interpretação bíblica, e não em considerações sobre a instituição ou a tradição - embora, é claro, estas tenham seu lugar e papel legítimos. Quando ele ataca a autoridade da Igreja, está tocando em um ponto central para a sua ouvinte católica, mas não tão central para mim.

A segunda questão que não pode ser desconsiderada é o próprio pressuposto embutido na pergunta da moça: ela quer saber por que o fato de ela não ser muçulmana é tão relevante para o seu destino eterno; ela quer saber se o fato de ela ser uma pessoa tão boa não deveria tornar menos importantes essas divergências doutrinárias sobre a identidade de Jesus e coisas do tipo. O preletor muçulmano, na verdade, não respondeu a essa parte da pergunta. E essa resposta também remete, de certa forma, à divergência fundamental que provocou a Reforma. No meu entendimento, os reformadores estavam corretos em sua interpretação da resposta bíblica a essa questão. E a resposta bíblica é simplesmente que a premissa da moça católica está errada: ela não é uma boa pessoa. Não há boas pessoas; os que se consideram fundamentalmente bons estão cegos e iludidos. Sem isso, a mensagem bíblica sobre Jesus não tem a menor importância, pois não há sentido em buscar um Salvador se não sabemos do que é que devemos ser salvos: de nossa própria maldade, que nos torna merecedores de uma justa punição da parte de um Deus santo que necessariamente odeia toda forma de mal. É por isso que Jesus disse: "Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento" (Lucas 5.32). O preletor muçulmano não pôde entender essa parte da pergunta porque a concepção islâmica da natureza humana é fundamentalmente falha. Para o islã, tudo se resume a receber de Deus a orientação sobre como agir, e então agir de acordo com ela. Ele não oferece a solução para o mal humano, porque não reconhece a existência do problema. O catolicismo vai na mesma direção até certo ponto, embora não de modo tão consistente. Apenas o Jesus da Bíblia é capaz não só de diagnosticar de modo correto o problema do homem, mas também de resolvê-lo, oferecendo aquela regeneração verdadeira de nossa natureza que não somos capazes de produzir em nós mesmos. E é por isso que depositar nele toda a nossa esperança é necessário. "Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia" (João 6.40).

9 de dezembro de 2016

Profecia e divindade - parte 7

2.3. Filipenses 2.5-11

Nesse trecho clássico de uma de suas cartas, Paulo faz uma bela exposição de uma doutrina bíblica importante, relacionada ao que aconteceu com Jesus quando se encarnou, morreu e ressuscitou. Farei alguns comentários em seguida.

"Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai."

Essa passagem afirma claramente a divindade de Jesus e sua igualdade de natureza com o Pai, mas sua importância vai além disso: ela expõe as doutrinas gêmeas de que a teologia sistemática trata sob os nomes de "doutrina da humilhação de Cristo" e "doutrina da exaltação de Cristo". A encarnação foi um ato de humildade e humilhação pelo qual Jesus voluntariamente abriu mão, em certo sentido, de sua dignidade como igual ao Pai. Mas, após sua morte, tendo cumprido com perfeição a obra que lhe fora confiada, Jesus foi novamente exaltado pelo Pai, não apenas por sua ressurreição, nem apenas por ter se tornado Senhor sobre tudo ("Toda autoridade me foi dada nos céus e na terra" foi uma das últimas palavras do Cristo ressurreto no evangelho segundo Mateus, como já mencionei), mas também porque seu nome seria proclamado como tal e assim reconhecido em todas as partes do mundo. A doutrina da humilhação, declarada nesse texto, também esclarece as várias passagens em que Jesus, durante sua vida terrena, se expressou de modo a sugerir algum tipo de inferioridade sua em relação ao Pai, e explica como isso pode ser conciliado com as claras afirmações da plena divindade de Cristo e sua igualdade com o Pai.

2.4. De volta ao vídeo

Depois de ter examinado brevemente esses três textos bíblicos, e outros relacionados que foram citados de passagem, podemos voltar aos argumentos que o preletor muçulmano levantou contra a ideia de que a Bíblia ensina a divindade de Jesus. Eu havia mencionado que os argumentos eram três, dos quais o segundo já havia sido refutado por pressupor equivocadamente que afirmar a divindade equivaleria a negar a humanidade de Cristo. Chamei também a atenção para o fato de que as três partes do primeiro argumento pressupõem que não pode haver subordinação de Cristo em relação ao Pai. Portanto, todas as três partes são refutadas pelo esclarecimento da doutrina da humilhação de Cristo, que acabo de expor e discutir brevemente com base no texto de Filipenses 2: a subordinação ocorrida durante o estado de humilhação é totalmente compatível com a plena divindade de Jesus e sua igualdade com o Pai, e ambas as doutrinas são claramente afirmadas no mesmo texto.

Sendo assim, resta apenas um argumento: o de que Jesus nunca declarou ser Deus. Antes de responder a isso, é interessante chamar a atenção para uma mudança sutil na estratégia argumentativa do preletor. Até aqui ele citou indiscriminadamente textos de diversas partes da Bíblia, não levando em consideração a identidade do autor. Como já apontei antes, em parte alguma ele se mostrou disposto a afirmar (embora muitos apologistas muçulmanos afirmem) que a Bíblia contém erros; ao contrário, sua estratégia argumentativa precisa pressupor a autenticidade e confiabilidade do que a Bíblia declara sobre Jesus. Ao chegar a este ponto, no entanto, ele põe de lado o que outras pessoas afirmaram na Bíblia sobre Jesus e dá a entender que só o que Jesus afirma sobre si mesmo tem validade. Essa mudança de procedimento não vem acompanhada de nenhuma justificativa, e creio que muitos espectadores nem sequer a notaram. Mas o preletor é enfático nesse ponto, chegando a mencionar que as traduções da Bíblia destacam em vermelho as falas do próprio Jesus, distinguindo-as do restante do texto (na verdade, até onde sei, apenas uma edição da Bíblia faz isso).

Acredito que essa mudança tem uma motivação importante: a evidência bíblica de que os apóstolos e a igreja primitiva em geral criam na divindade de Cristo é esmagadora. Nos próprios textos que citei (e muitos outros poderiam ser citados) isso transparece claramente. Um muçulmano não tem como ler a Bíblia sem ficar profundamente incomodado com essas declarações, que conflitam fortemente com a imagem de Jesus que o Alcorão apresenta. Creio que essa dificuldade está por trás da ampla adesão do mundo islâmico à ideia de que os ensinos de Jesus foram mal interpretados e distorcidos pelos discípulos, e de que Jesus, sendo profeta, não poderia concordar com esses desvios. Já mostrei que o Alcorão afirma isso expressamente. Porém, como também já expliquei, dizer claramente que a própria Bíblia contém distorções, embora não seja problemático para a doutrina islâmica, é problemático para esse preletor específico, pois ele tomou a decisão retórica de não questionar a autoridade bíblica ao tentar convencer a jovem católica que fez a pergunta. Nesse contexto, restringir a discussão às palavras ditas pelo próprio Jesus é um procedimento artificial, pois é um modo de eliminar logo no ponto de partida boa parte da evidência bíblica da divindade de Jesus. Mas isso não poderia ser declarado expressamente, pois a eficácia da estratégia de mudança de foco depende justamente da capacidade de ocultar esse contraste; uma vez vindo à consciência, o encanto se desfaz.

Por ser esse um procedimento ilegítimo e arbitrário, considero que a simples constatação de sua existência, somada à evidência que vim elencando nas seções anteriores, vinda de várias partes do Novo Testamento, bastam para mostrar que a Bíblia ensina claramente a divindade de Jesus. No entanto, darei um passo a mais e mostrarei que, mesmo que nos restrinjamos às palavras do próprio Jesus, como quer o preletor muçulmano, ainda encontraremos evidência da divindade de Jesus. Vários exemplos poderiam ser citados, como as referências de Jesus à sua capacidade de perdoar pecados ou sobre sua relação com o sábado. Mas me concentrarei em um único exemplo.


O momento em que a reivindicação de divindade de Jesus me parece mais nítida está registrado em João 8.56-59. Durante uma discussão com os fariseus, na qual eles questionavam a origem divina de seu trabalho, Jesus disse: "Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se". Seus antagonistas responderam: "Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?" O espanto deles é compreensível, pois Abraão vivera dois mil anos antes. Mas ficaram ainda mais espantados com a resposta de Jesus: "Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!" Há intérpretes que tentam diluir o significado dessa afirmação de Jesus dizendo que o que estava em discussão era apenas a idade de Jesus, de modo que ele estava, na verdade, apenas afirmando sua preexistência. Mas essa interpretação não se sustenta, por várias razões. Uma delas é que, se foi isso o que Jesus quis dizer, achou um jeito muito estranho de dizê-lo. Nesse caso, bastaria dizer "antes de Abraão nascer, eu já existia". Mas por que o uso do verbo no presente? A construção pode parecer estranha para nós, mas era familiar aos judeus da época, de modo que Jesus certamente sabia disso e, como bom professor que era, quis dizer exatamente o que sabia que as pessoas entenderiam. Mas o que seria?

A resposta está no Antigo Testamento, mais uma vez. Para ser mais exato, está em Êxodo 3.13-14, quando Deus aparece a Moisés (no famoso episódio da sarça ardente) e promete libertar o povo de Israel da escravidão no Egito. O texto diz: "Moisés perguntou: 'Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: Qual é o nome dele? Que lhes direi?' Disse Deus a Moisés: 'Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês'." Desde então, a expressão "eu sou", sem objeto direto, tornou-se uma reivindicação de divindade. O que Jesus afirmou sobre si mesmo ia muito além de sua mera preexistência. Jesus sabia muito bem o impacto que sua afirmação causaria, e de fato causou, pois João narra o que aconteceu a seguir nos seguintes termos: "Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo, mas Jesus escondeu-se e saiu do templo". Para aqueles judeus, Jesus havia acabado de cometer publicamente um ato de blasfêmia, de modo que só lhes restava executar a sentença prescrita na Lei: o apedrejamento do blasfemador. Eles não fariam isso se não lhes parecesse que Jesus havia afirmado ser Deus. E Jesus não teria se expressado mal, muito menos quanto a uma questão dessa importância.

23 de outubro de 2016

Profecia e divindade - parte 6

2.1. Hebreus 1

Uma das passagens bíblicas mais esclarecedoras sobre o tema da divindade de Jesus está nas palavras iniciais da carta aos Hebreus. Essa carta não tem preâmbulos: entra direto no seu tema principal, que é a superioridade de Cristo sobre todas as revelações anteriores. Sua primeira sentença é assim: "Havendo Deus outrora falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nesses últimos dias ele nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro sobre todas as coisas e pelo qual também fez o universo". Note-se que tudo se estabelece em termos de um contraste absoluto entre o antes e o agora. A única coisa em comum é que o Deus que se revela (fala) é o mesmo. Mas ele se revelara "muitas vezes e de muitas maneiras", e agora falou de uma única maneira. Antes havia sido "aos pais", isto é, aos antepassados dos judeus que estavam lendo a carta, e agora é "a nós". E o mais importante: antes Deus havia falado através dos profetas, e agora ele falou pelo Filho. A intenção de contrastar o Filho com os meros profetas é evidente. É claro que a oposição não é absoluta, pois Jesus também é chamado de profeta várias vezes no Novo Testamento. O ponto a ser destacado é que ele não é menos que um profeta, mas certamente é muito mais. E, na verdade, basicamente todo o restante do capítulo 1 de Hebreus é dedicado a essa superioridade de Jesus sobre os profetas. O argumento começa já nessa primeira frase, quando, depois de se referir ao Filho, o autor anônimo diz que esse Filho foi constituído por Deus como "herdeiro sobre todas as coisas" e acrescenta a afirmação impressionante de que Deus criou o universo através desse mesmo Filho. Não são coisas que a Bíblia atribua a algum mero profeta.

Mas isso não é tudo. O texto continua falando de Jesus nos seguintes termos: "Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata de seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de haver feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que o deles". Eis, portanto, uma sequência rápida e impressionante de afirmações sobre a identidade de Jesus. Destaco quatro elementos. Primeiro, Jesus é o resplendor da glória de Deus; essa glória se evidencia nele de modo inigualável. Segundo, Jesus é a expressão exata do ser de Deus; quando Jesus disse "quem me vê, vê o Pai", ele não estava afirmando ser o Pai, mas estava afirmando uma semelhança que não encontra paralelo na capacidade de qualquer ser humano comum. Terceiro, ele sustenta todas as coisas "por sua palavra poderosa", como diz uma outra versão (de modo mais claro, mas menos poético). Para os judeus (e cristãos), Deus não é só o Criador de todas as coisas, mas também seu sustentador, ou seja, ele faz com que cada coisa criada continue existindo momento a momento; o autor de Hebreus atribui a Jesus esse poder de sustentar toda a criação. E quarto, ao cumprir sua missão no mundo, Jesus alcançou dignidade maior que a dos anjos. Adiante discutirei outra passagem bíblica que explica isso melhor. O autor de Hebreus gasta o restante do capítulo argumentando, com base em passagens do Antigo Testamento, que Jesus é superior a todos os anjos.

Note-se que todas essas declarações são extremamente ousadas, ou mesmo blasfemas, se o autor da carta estiver falando de alguém que é menos que Deus. Note-se, além disso, que todas essas afirmações bombásticas são feitas em um contexto que trata justamente da história da revelação. É porque Jesus é todas essas coisas que aquilo que ele revela sobre Deus é superior ao que revelaram todos os profetas que o precederam, os quais, afinal de contas, eram apenas humanos. Essa lógica e esses dados bíblicos são exatamente o que o preletor muçulmano precisa ignorar (não sei se conscientemente ou não) para afirmar a visão corânica de que Jesus é um profeta como tantos outros. A superioridade da revelação de Jesus sobre qualquer outra está inquebrantavelmente vinculada à superioridade do próprio Jesus sobre qualquer outro ser humano. Diante do modo como a Bíblia apresenta a perfeição e a natureza de Cristo, a ideia de que uma revelação superior pudesse aparecer mais tarde na história, através de Maomé ou de qualquer outra pessoa, simplesmente não faz sentido. As opções consistentes são apenas duas: rejeitar a pretensão de profetas como esse ou rejeitar o que a Bíblia afirma sobre Jesus.

2.2. João 1

O primeiro capítulo do evangelho segundo João é também muito incisivo quanto à identidade de Jesus. Em alguns pontos, apesar da linguagem peculiar, a mensagem transmitida é a mesma de Hebreus, mas há também alguns acréscimos interessantes e dignos de nota. O evangelho de João começa assim: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (1.1-3). O fato de o evangelho ter início com as palavras "no princípio" é um clara alusão à criação do mundo conforme o relato do Gênesis, que começa com "No princípio criou Deus os céus e a terra". O apóstolo João está dizendo que Jesus estava presente na criação do mundo junto com o Pai ("estava com Deus"). Além disso, o texto afirma explicitamente que o próprio Jesus "era Deus". Mesmo que essa afirmação não estivesse claramente presente, o contexto já seria suficiente para sugerir a mesma coisa. Dizer que alguém estava presente na criação do mundo e participou do ato criador era, para um judeu, uma indicação clara de divindade, pois a doutrina judaica não atribui esse papel a mais ninguém. Isaías 44.24 diz claramente: "Eu sou o Senhor, que fiz todas as coisas, que sozinho estendi os céus, que espalhei a terra por mim mesmo". Portanto, os versículos iniciais de João afirmam que Jesus é tão Deus quanto o Pai e, ao mesmo tempo, que ele e o Pai são pessoas distintas.

Ainda no capítulo 1, João fala também do papel especial de Jesus na revelação. Isso é feito em dois momentos: os versículos 14 e 17-18. O primeiro diz: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai". E os versículos 17 e 18 dizem: "Porque a lei veio por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por intermédio de Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou". Portanto, Jesus é quem revela a glória do Pai. Jesus é superior a Moisés - que, vale lembrar, é o maior profeta do Antigo Testamento. Os leitores judeus de João certamente se lembrariam de um episódio narrado em Êxodo 33.18-20, no qual Moisés pede para ver a glória de Deus. Mas Deus lhe concede apenas uma visão parcial, acrescentando que "Você não poderá ver a minha face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo". Parece que João tinha essa história em mente, pois usa a ideia de ver Deus, ver a glória de Deus, e a comparação com Moisés está claramente em vista no versículo anterior: Jesus conhece a glória do Pai de um modo que ninguém mais conhece, e ele a revela de um modo que ninguém mais revela.

Essa posição de singularidade que Cristo ocupa é afirmada nesses versículos ainda de uma outra maneira: nas duas referências a Jesus como "unigênito", palavra que indica que Jesus é filho único. Essa ideia não costuma ser muito enfatizada, e a religiosidade popular, com chavões como "todo mundo é filho de Deus", tende a atribuir a essa expressão uma conotação mais vaga e diluída, que não corresponde ao uso bíblico - nem, de modo geral, ao uso que se fazia na Antiguidade. Os versículos 12 e 13 expõem isso com muita clareza ao dizer sobre Cristo que, "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus". Note-se que ele não aplica a expressão "filhos de Deus" indistintamente, e sim apenas àqueles que "receberam" Jesus; e diz ainda que esses, tendo-o recebido, "são feitos", ou seja, se tornam filhos de Deus, coisa que não eram antes. Essa ideia é muito importante. Paulo a desenvolve em termos levemente diferentes, falando de uma "adoção", pela qual Deus passa a nos tratar como filhos legítimos, embora não o sejamos por natureza. Isso está em Romanos 8.13-17:

"Pois se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: 'Aba, Pai'. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua glória."

Essa ideia é repetida adiante, nos versículos 22 e 23: "Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo." E, novamente, nos versículos 28 e 29: "Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos." Toda essa linguagem, embora honrosa para os filhos adotivos, deixa claro que existe uma diferença fundamental entre Jesus, o unigênito e filho de Deus por direito, e nós, adotados de forma graciosa e misericordiosa, que somos tratados por Deus com uma honra que não merecemos por nossa própria natureza.

20 de setembro de 2016

Profecia e divindade - parte 5

Nas primeiras quatro partes da presente série (um, dois, três e quatro), sob o título "Relações entre as religiões", expus as semelhanças e diferenças entre judeus, cristãos e muçulmanos quanto à história da revelação divina e as relações entre as religiões monoteístas, motivado em parte por uma análise de um vídeo no qual um preletor muçulmano responde à pergunta de uma jovem católica sobre temas ligados a esse. Darei início agora à segunda metade da exposição, que deverá prosseguir até a oitava e última parte desta série e versará sobre a pessoa de Jesus Cristo e a perspectiva islâmica sobre ele, ainda tendo o mesmo vídeo como pano de fundo.

2. A divindade de Jesus

A questão da identidade de Jesus, sua natureza e seu lugar na história da revelação é outra questão teológica básica em que há severas divergências entre os muçulmanos e a tradição cristã. Dizendo de modo simplificado, o islã considera
(com raríssimas exceções) que todos os profetas são portadores da mensagem de Deus, mas são seres humanos como quaisquer outros. Jesus não é uma exceção a isso, embora o Alcorão reconheça nele certos traços excepcionais. Por exemplo, o Alcorão declara expressamente que Jesus nunca cometeu pecado; além de não afirmar o mesmo sobre nenhum outro profeta, o Alcorão afirma explicitamente que o próprio Maomé pecou. Embora a crença popular islâmica considere Maomé como homem sem pecado, essa crença vai contra o conteúdo expresso do Alcorão, que atribui essa perfeição a Jesus ao mesmo tempo em que a nega a Maomé. Esse fato tem gerado sempre um certo embaraço para os apologistas do islã. Apesar disso, e de algumas outras coisinhas, o Alcorão é muito claro em sua negação da divindade de Jesus ou de qualquer outro profeta. O fato de eles serem humanos, e nada mais que isso, é parte importante da cosmovisão islâmica.

Por exemplo, em 3.64 Allah diz a Maomé: "Dize: 'Ó seguidores do Livro! Vinde a uma palavra igual entre nós e vós: não adoremos senão a Allah, e nada lhe associemos e não tomemos uns aos outros por senhores, além de Allah'. E, se voltarem as costas, dizei: 'Testemunhai que somos submissos'." Na terminologia corânica, "associar" alguém a Allah significa considerar esse alguém como divino, em pé de igualdade com Allah. Para Maomé, associar alguém a Deus equivale a cometer o pecado básico, o da idolatria, e o cristianismo faz justamente isso com Jesus, quebrando, assim, a simplicidade do monoteísmo autêntico. Nessa mesma passagem, a ordem de "não tomar uns aos outros por senhores" é claramente uma reprovação da terminologia neotestamentária, que frequentemente se refere a Jesus como Senhor. Da mesma forma, a sura 5 narra um diálogo entre Allah e Jesus nos seguintes termos, em que Jesus nega ter afirmado sua própria divindade:

"Quando Deus disse: Ó Jesus, filho de Maria! Foste tu quem disseste aos homens: Tomai a mim e a minha mãe por duas divindades, em vez de Deus? Respondeu: Glorificado sejas! É inconcebível que eu tenha dito o que por direito não me corresponde. Se tivesse dito, tê-lo-ias sabido, porque Tu conheces a natureza da minha mente, ao passo que ignoro o que encerra a Tua. Somente Tu és Conhecedor do incognoscível. Não lhes disse, senão o que me ordenaste: Adorai a Deus, meu Senhor e vosso! E enquanto permaneci entre eles, fui testemunha contra eles; e quando quiseste encerrar os meus dias na terra, foste Tu o seu Único observador, porque és Testemunha de tudo."

É em parte por causa dessa interpretação claramente expressa no Alcorão que o preletor do vídeo se dedica a demonstrar que as declarações da própria Bíblia apoiam o ponto de vista corânico, e que a afirmação da divindade de Cristo não tem fundamento bíblico. Mas existe outro motivo além desse: uma questão de consistência com o entendimento islâmico da história da revelação, já discutida na seção 1. Se Jesus é Deus encarnado, torna-se muito estranha a ideia de que a revelação última e definitiva não tenha vindo dele, e sim de um mero ser humano enviado séculos depois. Como já expliquei, a convicção islâmica não se encaixa bem com a ideia cristã de uma revelação progressiva que atinge seu auge em um determinado momento histórico, com a vinda de Cristo; mas essa ideia cristã, por sua vez, só faz sentido porque Jesus não é entendido como um homem qualquer, um profeta semelhante a todos os outros. Para o islã, portanto, negar a divindade de Jesus é simples questão de sobrevivência, ou seja, é fundamental para a plausibilidade de sua própria autoimagem de religião definitiva, precisamente por ser essa uma revelação historicamente posterior à de Cristo. Por isso o Alcorão diz claramente em 3.84: "Cremos em Allah e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaque, e Jacó, e as Tribos, e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e a Ele somos submissos." Note-se a ênfase: "não fazemos distinção entre nenhum deles"; cada um é tão humano quanto todos os outros.

A partir da próxima postagem, passarei a levantar algumas questões em torno dessas divergências e da interpretação que o preletor muçulmano oferece. Antes disso, porém, creio que é bom recapitular e registrar aqui os textos bíblicos que o preletor cita para mostrar que a Bíblia se opõe à ideia da divindade de Jesus. Fazendo um esforço de sistematizar sua argumentação, creio que é justo dizer que o preletor levanta três argumentos, sendo o primeiro dividido em três partes. 1a. Jesus declarou sua inferioridade em relação ao Pai, em João 14.28 ("o Pai é maior do que eu") e em João 10.29 ("Meu Pai [...] é maior do que todos"). 1b. Jesus admitiu que recebeu poder de Deus sobre os demônios; isso está em Mateus 12.28 ("é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios") e em Lucas 11.20 ("é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios"). 1c. a mensagem pregada por Jesus também foi determinada pelo Pai; isso ocorre em João 5.19 ("o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer") e em João 14.24, que o preletor citou erroneamente como 15.24 ("Estas palavras que vocês estão ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou"). Essas três linhas de evidência têm em comum o fato de apontarem para algum tipo de subordinação do Filho em relação ao Pai - uma subordinação que, para os muçulmanos, é incompatível com a ideia da divindade de Jesus.

Mas há outros dois argumentos além desse. 2. Jesus é chamado explicitamente de "homem" em Atos 2.22: "A Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós com maravilhas, prodígios e sinais, que Deus por ele fez no meio de vós"; note que esse versículo também reforça o argumento 1b. Esse segundo argumento é, em minha opinião, o mais fraco de todos, e o único que pode ser prontamente descartado. Afinal, a doutrina cristã diz que Jesus tem duas naturezas, divina e humana, o que significa que ele é ao mesmo tempo homem e Deus. Talvez essa doutrina possa ser criticada (embora eu creia nela), mas o fato é que, se o interesse é o de provar que Jesus não é Deus, não é suficiente citar passagens que afirmam que ele é homem.

3. O terceiro e último argumento do preletor é negativo: ele afirma que em parte alguma do Novo Testamento Jesus declarou ser Deus e exigiu adoração.

Voltarei aos argumentos 1 e 3 depois de explorar brevemente três passagens bíblicas relevantes para que se possa entender a natureza e a profundidade da divergência entre cristãos e muçulmanos com relação a Jesus.

20 de agosto de 2016

Profecia e divindade - parte 4

1.4.3. Questões legais

Os textos bíblicos que o preletor cita para demonstrar que os muçulmanos, e não os cristãos, seguem os ensinamentos da Bíblia e de Jesus se dividem em duas categorias. A primeira é sobre a identidade de Jesus, assunto que discutirei mais extensamente a partir da próxima postagem. Agora vou tratar da segunda categoria, que é a das prescrições práticas e da atitude de Jesus diante da lei. Diante do que expliquei no item 1.2 a respeito da relação entre cristianismo e judaísmo, creio que não será necessário aprofundar muito as explicações neste ponto, sendo suficiente especificar e aplicar alguns princípios gerais já delineados. O preletor do vídeo levanta três supostos pontos de divergência entre Jesus e os cristãos:

Circuncisão: é mencionado que, segundo o evangelho de Lucas, Jesus foi circuncidado; não é fornecida a passagem específica, mas isso de fato está dito em Lucas 2.21. Contudo, a circuncisão era parte da lei cerimonial judaica, que, como expliquei, os apóstolos vieram a considerar como sombras da realidade trazida por Cristo. (Na verdade, a circuncisão foi instituída por Deus nos tempos de Abraão; como os árabes também descendem de Abraão, eles mantêm essa prática até hoje, à parte da tradição judaica.) No caso específico da circuncisão, esse entendimento de que ela era de caráter provisório é expresso no Novo Testamento de modo bastante explícito. Já citei Paulo dizendo que a circuncisão que importa é a do coração, e não a da carne, mas o fato é que todo o capítulo 15 de Atos é dedicado a narrar a controvérsia que esse assunto levantou na igreja primitiva, e de que maneira os apóstolos e a igreja reunida em Jerusalém decidiram a questão: em essência, o argumento que venceu foi que visivelmente Deus estava salvando os gentios e manifestando seu poder entre eles sem que tivessem sido circuncidados, e isso indicava que não era a intenção de Deus que eles se submetessem à lei cerimonial dos judeus. Paulo também discutiu o assunto extensamente na carta aos Gálatas, e sua posição é bastante contundente: os que queriam que os cristãos gentios se circuncidassem estavam implicitamente negando o evangelho ao afirmar que nossa relação com Deus depende do cumprimento da lei, e não da graça que Cristo nos oferece. Veja-se o seguinte trecho do capítulo 5: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem circuncidar, Cristo de nada lhes servirá. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a cumprir toda a lei. Vocês, que procuram ser justificados pela lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a justiça que é a nossa esperança. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor." Parece-me claro, portanto, que o ensino dos apóstolos sobre a circuncisão está de acordo com o ensino geral do Novo Testamento sobre a relação entre Jesus e a lei. O preletor muçulmano ignorou completamente esses ensinos bastante claros, que divergem consideravelmente tanto do judaísmo quanto do islã.

Carne de porco: o Alcorão proíbe explicitamente o consumo de carne de porco, assim como o Antigo Testamento nas passagens que o preletor cita (Deuteronômio 14.8 e Levítico 11.7). Nessas passagens, o porco aparece no meio de uma longa lista de animais que não poderiam ser comidos. De fato, a lei do Antigo Testamento contém uma porção de prescrições desse tipo, incluindo outras que não têm nada a ver com comida (como datas comemorativas, sábado, roupas etc.): proibições e estipulações sobre coisas que não são imorais, mas tinham um propósito didático, ou seja, que tinham uma carga simbólica através da qual Deus pretendia apresentar ao povo representações visíveis de seu próprio caráter; a lei promovia costumes culturais que distinguiriam o povo de Israel dos demais povos e, com isso, reforçava na mente do povo a natureza e a importância da relação que só eles tinham com o Deus verdadeiro. O Novo Testamento prontamente apresenta isso como aspecto cerimonial que perdeu a vigência quando Cristo veio. No caso específico do porco e outros animais considerados impróprios para consumo, o capítulo 10 de Atos traz um relato muito claro, em que Pedro teve a seguinte visão: "Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu. Então uma voz lhe disse: 'Levante-se, Pedro; mate e coma'. Mas Pedro respondeu: 'De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!' A voz lhe falou segunda vez: 'Não chame impuro ao que Deus purificou'. Isso aconteceu três vezes, e em seguida o lençol foi recolhido ao céu." A continuação da narrativa deixa claro que o sentido da visão, além de ser literal, tinha também um propósito didático: Deus estava incentivando a pregação do evangelho aos gentios. Assim como as proibições do Antigo Testamento tinham o propósito de salvaguardar a identidade dos judeus como povo de Deus, a abolição dessas proibições anunciava a universalização do evangelho, rompendo as barreiras entre judeus e gentios. Não há nenhuma passagem no Novo Testamento proibindo o consumo da carne de poco, ou de qualquer outro bicho. Mais uma vez, o preletor muçulmano ignorou completamente a mensagem do Novo Testamento e sua diferença em relação à lei do Antigo Testamento.

Álcool: o Alcorão proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, e o preletor cita duas passagens bíblicas em apoio à sua tese de que Jesus e os profetas bíblicos também o fazem. As duas referências estão erradas. A primeira é Efésios 4.18, mas creio que o que o preletor tinha em mente na verdade é Efésios 5.18, que diz: "Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem, mas deixem-se encher pelo Espírito". A outra passagem citada é Romanos 20.1, texto que não existe, pois a carta aos Romanos só tem 16 capítulos. Suponho que o preletor tinha em mente outra passagem, mas infelizmente não sei qual poderia ser. De qualquer modo, note que o texto citado, ao contrário do Alcorão, não proíbe o consumo moderado e responsável, e sim a embriaguez, que é, esta sim, condenada repetidamente na Bíblia. O argumento ignora que o próprio Jesus transformou água em vinho durante uma festa de casamento em que o vinho havia acabado (João 2); que Jesus usou o pão e o vinho como símbolos da nova aliança que estava inaugurando entre Deus e os homens, e ordenou que todos os cristãos comessem e bebessem; que Jesus tinha uma conduta pública notoriamente diferente de João Batista, fato a que o próprio Jesus aludiu ao criticar a inconsistência de seus inimigos em Mateus 11.18-19: "Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: 'Ele tem demônio'. Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: 'Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores'." E em muitas outras partes, na verdade, a Bíblia fala do vinho sabiamente utilizado como uma grande bênção. Veja-se, por exemplo, o belo poema do Salmo 104, que trata da benevolência de Deus em conceder bênçãos a todas as suas criaturas. Os versículos 13-15 desse salmo dizem: "Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das suas obras! É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor." Uma vez mais, a leitura bíblica do preletor muçulmano é seletiva demais e de péssima qualidade.

Um último ponto que vale a pena mencionar é que essas semelhanças entre os códigos cerimonial e civil judaico e islâmico, ainda quando verdadeiras, são pontuais. O preletor do vídeo faz parecer que a lei do antigo Israel é idêntica à lei promulgada por Maomé, mas isso está muito longe da verdade. Mesmo no espírito geral da lei há divergências fundamentais, embora haja também algumas semelhanças; mas, quando descemos às particularidades, encontramos muito mais diferenças que semelhanças. Por exemplo, a lei mosaica institui milhões de regras referentes ao ofício dos sacerdotes, aos sacrifícios, à construção e manutenção do local sagrado (originalmente uma tenda móvel, mais tarde um templo fixo), celebrações em datas específicas e muitas outras coisas que sequer existem no mundo islâmico. Mesmo uma leitura superficial do Levítico, por exemplo, basta para evidenciar isso. Portanto, ainda que a vinda de Jesus não tivesse abolido os aspectos cerimonial e civil da antiga Lei de Israel, isso não favoreceria em nada a lei islâmica.