27 de dezembro de 2007

Tempos de renovação

Num texto que postei aqui em junho, Ignorância resumida, falei brevemente sobre a necessidade que eu tinha de elaborar, num futuro próximo, um roteiro de estudos, a fim de dar conta da imensa quantidade e diversidade de assuntos que sinto necessidade de estudar mais profundamente do que fiz até o momento, ou mesmo começar do zero. De lá pra cá trabalhei um pouco nisso e, agora que um novo ano vem chegando, embora não seja meu objetivo expor meu plano em detalhes, creio ser útil comentar brevemente alguns aspectos do mesmo. Minhas razões para isso ficarão mais claras adiante, mas posso adiantar que este blog, sendo, como expliquei na postagem inaugural, uma parte importante dos meus projetos de aprendizado, será também diretamente afetado pela implementação desse plano.

Vale lembrar, para início de conversa, que a lista de livros que pretendo ler antes de morrer jamais parou de crescer desde que dei início a ela, mais de quatro anos atrás. Em janeiro deste ano, conforme registrei no início do post Versos do além, a lista contava com pouco mais de duzentos e cinqüenta elementos. Atualmente possui trezentos e trinta. Minha primeira tarefa foi, portanto, colocar ordem nessa lista. Dividi-a em vinte e três temas principais, que não abrangem todos os livros, mas ao menos deixam de fora uma fração relativamente pequena. Não sei se ao longo de 2008 eu conseguirei ler alguma dessas categorias em sua totalidade, mas pretendo ao menos dar início à liquidação de meia dúzia delas. As outras dezessete ficarão para um futuro indefinido, juntamente com várias obras que não se encaixam em categoria alguma, e com as quais eu montei a vigésima quarta categoria, "outros assuntos". Além disso, consultando a lista dos livros que já li, incluí sessenta e quatro deles na lista dos que ainda precisam ser relidos, e alguns mais de uma vez (a Bíblia, por exemplo, jamais sairá dessa lista). Selecionei catorze deles para reler em 2008, por se relacionarem a algum dos seis temas acima citados, e deixei os outros cinqüenta para um futuro mais distante.

Porém, foi-se o tempo em que praticamente tudo o que eu queria saber podia ser encontrado nas estantes da livraria ou biblioteca mais próxima, ou em e-books baixados da internet e estocados no meu HD. Atualmente, uma parcela considerável dos conhecimentos que pretendo adquirir encontra-se, total ou parcialmente, em filmes, em documentários, em artigos, em textos menores de revistas, nas cabeças de pessoas que pretendo entrevistar e, sobretudo, em sites da internet. Fiz também uma lista desses assuntos, isto é, aqueles dos quais provavelmente aprenderei total ou predominantemente por meios não-livrescos, e essa lista contém, até o momento, cinqüenta e nove temas, alguns dos quais sendo passíveis de uma quantidade considerável de subdivisões. Vários deles parecem ser menos trabalhosos que a leitura de um punhado de livros, mas alguns provavelmente exigirão esforço equivalente ou ainda maior. E não incluí nessa lista os temas acerca dos quais eu tenho vontade de adquirir conhecimento sem que, no entanto, tenha alguma idéia de onde ir buscá-lo. Minha própria ignorância sobre a maneira de abordá-los foi considerada por mim como um sinal de que não estou maduro o suficiente para ir atrás deles. A experiência tem me mostrado que, quando chega o momento de mergulhar num novo assunto, as portas se abrem naturalmente para me dar uma idéia de como fazê-lo.

Creio que eu não contei isso a ninguém, mas ao criar este blog eu decidi que faria um esforço para manter, por um ano, o ritmo médio de uma postagem por semana, com tamanho próximo a 10kb (quando digitado no meu editor de textos favorito, o Bloco de notas). Não escrevi em todas as semanas, e em algumas eu postei textos que não foram escritos por mim, mas apenas traduzidos, ou que eram meras adaptações de textos que eu já havia escrito antes. Mas pelo menos posso dizer que, em média, obtive sucesso: este é o qüinquagésimo segundo post, e o ano tem cinqüenta e duas semanas e um dia. Não calculei o desvio padrão, mas ele é menos relevante. O que importa é que fiz isso porque queria saber como é o compromisso de escrever com hora marcada, ainda que não muito bem marcada. G. K. Chesterton, que escreveu uma centena de livros, além de milhares de ensaios para jornais e revistas diversos, também publicou semanalmente um artigo no Illustrated London News durante trinta anos seguidos. Dale Ahlquist, presidente de The American Chesterton Society, lançou o desafio: "Se você não está impressionado, tente fazer isso alguma vez". Eu estava impressionado, e jamais tive qualquer intenção de me equiparar em quantidade ou qualidade a um escritor como Chesterton, sobre quem, aliás, correm lendas de que freqüentemente escrevia um artigo ao mesmo tempo em que ditava outro à sua secretária. Mas achei que o desafio de Ahlquist era uma proposta interessante, e resolvi colocá-la em prática, embora de maneira significativamente suavizada, durante um ano.

Eu não esperava que fosse fácil, mas ainda assim foi mais difícil do que eu supunha. A fim de atingir essa meta auto-imposta (conciliando-a, naturalmente, com as exigências da minha vida pessoal), acabei cometendo uma série de deslizes. Há agora uma quantidade razoável de conversas por e-mail que preciso retomar, abandonei discussões numa comunidade do orkut por vários meses, há textos ainda não comentados nos blogs de alguns amigos, assuntos cujo estudo eu acabei deixando de lado e talvez mais algumas coisas que agora me fogem à memória. Não digo que o blog seja o único culpado em cada um desses casos, mas ele ao menos ajudou a agravar o problema em todos eles. Além disso, o próprio conteúdo do blog não saiu ileso: muitas vezes eu escrevi com pressa, não revisei devidamente o resultado ou não ponderei se a forma sob a qual eu apresentava o assunto era a melhor possível, de modo que, relendo os textos alguns dias ou semanas depois, eu fiquei, em muitos casos, com a desagradável sensação de que poderia ter feito melhor.

Levando em consideração tudo o que eu disse nos cinco parágrafos anteriores, e somando a isso o fato de que o ano que se aproxima, embora incerto, tem grandes chances de me deixar ainda menos tempo para coisas desse tipo, creio que será mais fácil compreender o motivo da minha decisão quanto ao que vou fazer com este blog a partir de agora. Eu gostei muito da experiência que ele me proporcionou ao longo de 2007, não mudei de opinião quanto aos benefícios que ele pode me trazer (e tem trazido), conforme as expliquei no post inaugural, e não gosto nem um pouco da idéia de abandonar essa vida de blogueiro. Mas fatalmente, a fim de dar conta da nova realidade que se impõe sobre mim e que acabo de explicar resumidamente, serei obrigado a mudar minha estratégia com relação ao blog, e um dos efeitos mais previsíveis é que a freqüência das postagens diminuirá sensivelmente, embora a qualidade dos textos, segundo espero, melhore em decorrência disso.

Agora pretendo explicar brevemente qual será a minha política editorial. A estratégia que predominou até aqui, isto é, a de postar textos relativamente curtos dedicados a assuntos independentes, não desaparecerá por completo, mas passará para o segundo plano e aparecerá mais raramente. Na minha lista de assuntos a comentar aqui há cento e setenta e três idéias; dificilmente escreverei todas, mas a maioria provavelmente tomará (ou tomaria) essa forma. (Convém destacar, de passagem, esse meu gosto pela confecção de listas de coisas para fazer; começo a achar que eu faria algumas dessas coisas melhor e mais rapidamente se gastasse menos tempo listando-as.) Não desisti da idéia de escrever sobre esses temas, e pretendo, nos próximos tempos, dar atenção especial àqueles acerca dos quais, ao longo de 2007, prometi escrever e acabei não o fazendo. Apesar da demora, não me esqueci das minhas promessas; tanto é que fiz também uma lista delas, e constatei que vinte e oito futuros posts se enquadram nessa categoria. Não posso prometer que escreverei todos eles em 2008, mas prometo que eles ocuparão lugar especial entre minhas prioridades, na medida do possível.

A parcela principal dos esforços despendidos neste blog, entretanto, será dedicada a um tipo diferente de publicação, que consiste em séries mais ou menos longas (e não necessariamente ininterruptas) de postagens abordando assuntos vastos ou complicados demais para caber numa só. Roubei descaradamente essa idéia do meu amigo André Luiz, que já fazia coisas assim em seu blog muito antes que eu pensasse em criar o meu. A vantagem óbvia desse procedimento está no fato de que é a melhor maneira, quando não a única possível, de dar um tratamento minimamente apropriado a certos assuntos. A abordagem de vários deles está nos meus planos há um bom tempo, mas, pelo fato mesmo de que escrever sobre eles é mais trabalhoso, acabo sempre, por preguiça ou por pressa (em virtude do compromisso auto-imposto a que aludi anteriormente), deixando-os sistematicamente para depois e falando de algo mais fácil. Não me arrependo do que fiz até aqui, mas esse é um problema adicional a indicar a necessidade de mudanças.

Entretanto, o parágrafo acima pode dar a entender, falsamente, que essas séries de posts que agora estou planejando têm apenas o objetivo de divulgar e revisar conhecimentos já adquiridos e possuídos por mim. A verdade, porém, é que a maioria dessas planejadas seqüências vincula-se sobretudo ao que eu disse nos parágrafos iniciais. Dos cinqüenta e nove temas a estudar predominantemente fora dos livros, por exemplo, muitos provavelmente resultarão em séries de postagens neste blog, seja por eu acreditar que seus resultados serão úteis ou interessantes aos leitores, seja porque o simples fato de escrever a respeito facilitará meu próprio entendimento dos assuntos em pauta. O mesmo se aplica a boa parte das vinte e três categorias de livros que mencionei. Em alguns casos, escreverei e publicarei minhas conclusões e descobertas na medida em que as for atingindo; em outros, preferirei concluir o estudo do assunto antes de dizer qualquer coisa a respeito dele. Alguns temas têm um roteiro de estudos mais ou menos previsível e bem definido, enquanto outros podem me levar a lugares que nem imagino no momento.

Enfim, de agora em diante não haverá regras de qualquer espécie. Usarei este blog como instrumento de aprendizado, como fiz até aqui, mas de maneira a torná-lo mais facilmente adaptável às necessidades de cada momento. E se tudo der certo, é claro, isso também resultará em maior benefício para os eventuais leitores.

24 de dezembro de 2007

Emergência

Entre os meus planos para a celebração do Natal deste ano estava a publicação, neste blog, de um poema acompanhado de uma breve reflexão pessoal ao menos vagamente relacionada a ele. Tendo esse objetivo em mente, eu havia selecionado e digitado o poema, feito uma tradução do mesmo (já que foi composto em inglês) e escrito minha breve reflexão, deixando tudo pronto antecipadamente para hoje apenas postar o texto. Vejo-me, no entanto, forçado a alterar meus planos, em vista do fato de que, distraído como sempre, ao fazer as malas hoje pela manhã para vir a Piracicaba passar o Natal com meus pais, esqueci de pegar o pen drive onde eu havia cuidadosamente armazenado o texto alguns dias atrás. Nada surpreendente, já que, ao longo desses quase seis anos morando em São Carlos e voltando para casa em média a cada duas ou três semanas, creio que apenas uma vez eu consegui não me esquecer de nada. (E mesmo naquela ocasião, desconfio eu, pode ser que eu apenas tenha tido a sorte de esquecer algo que não me lembrei de procurar quando cheguei aqui, de modo que o segundo esquecimento anulou o efeito do primeiro.) E, não tendo trazido para cá o livro de onde retirei o poema, e tampouco estando com paciência para reescrever minha reflexão, resolvo guardar aquela postagem para o Natal de 2008.

Mas isso não significa que eu pretenda deixar passar em branco este Natal. Apenas fui obrigado a acionar o plano de emergência, que é, no entanto, significativamente semelhante ao anterior, pois consiste apenas em mudar de poema. Este que transcrevo abaixo foi retirado de um livrinho chamado Presente para o menino, um dos primeiros (e infelizmente poucos) livros de poesia que li na minha vida, e que está numa das estantes da casa dos meus pais desde tempos imemoriais (ao menos para mim). Para ser mais exato, o livro contém não apenas vinte e duas poesias, mas também duas dramatizações e sete contos natalinos. A autora, Myrtes Mathias, publicou-o em 1968, com as seguintes palavras, na folha de rosto, que deixam claro o seu objetivo:

Não faças do teu coração hospedaria
onde lugar para Cristo não havia;
dá lugar a Deus neste Natal.

O curto poema que escolhi é o que mais me impressionou quando li o livro, nem sei dizer há quanto tempo, e seu conteúdo me impressiona ainda hoje, por ser parte essencial da sempre surpreendente mensagem cristã. As expressões utilizadas na parte inicial devem muito à linguagem profética do Antigo Testamento, como poderá perceber sem dificuldade o leitor familiarizado com a leitura da Bíblia, enquanto mais para o final aparecem alusões, embora algo mais veladas, a passagens cruciais do Novo Testamento. Mas não me deterei nessas questões estilísticas, e muito menos pretendo explicar o significado do conjunto, que é bastante claro por si mesmo. Farei apenas algumas breves considerações sobre dois aspectos da doutrina cristã expressos nesse poema.

Havia entre os judeus, quando Cristo chegou, uma infinidade de expectativas conflitantes quanto ao sentido em que deviam ser entendidas as velhas profecias sobre o Messias. Devemos reconhecer que cada uma delas tinha algumas boas razões para sustentar-se. E, no entanto, os atos de Jesus contrariaram cada uma, ao menos parcialmente, e houve certos aspectos fundamentais da sua missão que todas essas linhas de interpretação mostraram-se incapazes de prever. Não há necessariamente nenhum demérito nisso, e é bom lembrar que a própria Igreja levou vários séculos para compreender, na medida do possível, a obra de Cristo numa perspectiva histórica adequada. Quanto mais estudo a escatologia cristã e a história do cristianismo, mais me convenço de que temos muito a aprender com os erros dos velhos escribas judeus. Cristo não cumpriu todas as profecias messiânicas; deixou parte delas para o fim dos tempos. Em virtude disso, vivemos no presente uma tênue antecipação da glória futura em constante luta contra as trevas da velha dispensação, cuja derrota já foi decretada, mas ainda não totalmente concretizada; vivemos, em suma, a tensão entre o "já" e o "ainda não", como diz uma expressão clássica da teologia protestante. Mas, enquanto esperamos, vigiamos e oramos, não nos esqueçamos que, assim como ocorreu na primeira vinda, os sinais do futuro retorno podem não corresponder inteiramente às nossas expectativas. Peçamos a Deus que nos dê a capacidade de manter abertos os nossos espíritos para o discernimento desses sinais.

O outro ponto importante aparece na parte final do poema, que contrasta as atitudes e os destinos daqueles que reconheceram em Cristo o fundamento de sua esperança e de suas aspirações mais nobres com a dos que se fizeram seus inimigos. Muitas pessoas hoje em dia suprimiriam, se pudessem, essa porção nada agradável da mensagem cristã. Mas quando nós, cristãos, apregoamos essa parte juntamente com o resto, não o fazemos em tom de arrogância, e tampouco de ameaça, mas sim como o simples reconhecimento de um fato. O sábio Simeão estava certo quando, antecipando as palavras do próprio Senhor, declarou que o menino que tinha nos braços estava destinado "tanto para ruína como para levantamento de muitos". O retorno de Cristo em poder não será agradável aos que não honraram sua primeira vinda, realizada em fraqueza. Compreende-se o motivo pelo qual, no culto de Natal de que participei ontem, na minha igreja em São Carlos, o pregador (o tão querido reverendo Naor) afirmou que só quem teve seu encontro com o Senhor Jesus tem bons motivos para celebrar seu nascimento. Não obstante, muitas pessoas que não tiveram essa experiência pessoal com Deus usufruíram e continuarão a usufruir as bênçãos menores que ela trouxe à humanidade, mesmo que sejam bênçãos tão corriqueiras quanto um feriado alegre na companhia de pessoas queridas. Como disse o padre Antônio Vieira em um de seus mais famosos sermões, a Palavra de Deus faz efeito mesmo quando não frutifica.

Sendo assim, desejo que o Divino Aniversariante, que é a própria Palavra encarnada de Deus, conceda a cada um dos leitores a graça de sua própria presença, que é a melhor coisa que existe, assim como o discernimento necessário para o reconhecimento desse fato. Feliz Natal a todos!

O esperado

Quando Ele vier,
Deus prometeu,
esmagará a cabeça da serpente,
destruirá o mal.

Quando Ele vier,
disseram os profetas,
servirá de refúgio contra a tempestade,
de esconderijo contra o vendaval.

Quando Ele vier,
cantaram os poetas,
terá as nações como herança,
e as extremidades da terra Ele receberá.

Quando Ele vier,
sonhavam os oprimidos,
não apagará a torcida que fumega,
a cana quebrada não esmagará.

Quando Ele vier,
esperava o mundo inteiro,
será Luz dos gentios,
no deserto bravio, uma nova canção,
com lagos e fontes
e, nos vales e montes, paz e união.

Mas quando Ele veio,
sem trono, sem exército,
sem ouro, sem rumor,
nada mais que um Menino,
decepcionou a muitos,
a todos que esperavam um real Senhor.

É certo que os anjos cantaram
e que uma estrela diferente atravessou o espaço,
mas os homens estavam muito ocupados na terra,
para olhar o céu.

Poucos.
Muito poucos O reconheceram.

A estrela percorreu o seu caminho
e desapareceu no tempo;
os anjos terminaram seu canto
e voltaram ao céu.

Só o Menino ficou.
Para crescer e para amar.
Para compreender e lançar os alicerces
do seu incompreendido reino da Paz.

Ficou para morrer.

Para dividir os homens em dois grupos,
nas duas paralelas que atravessam a História
para só se encontrarem
no grande dia da volta,
ajoelhados diante dele.

Quando os simples,
os que olharam o céu
e reconheceram a Estrela;
que ouviram o canto dos anjos
e aceitaram a mensagem,
repetirão seu hino de alegria e gratidão:

"Glória, glória, aleluia,
vencendo vem Jesus!"

Quando os outros,
os que não creram
e não O aceitaram,
erguerão seu alucinante grito de socorro,
sua desesperada e tardia
profissão de fé:

"Eras Tu, Jesus, e não Te recebemos."

7 de dezembro de 2007

Quarta colheita

Ultimamente não tenho tido muitas conversas com amigos em torno dos assuntos publicados neste blog. E, das que tive, apenas uma parece-me digna de ser comentada em público. Mas há outras duas questões relacionadas a posts anteriores que julgo dever comentar, e esses três assuntos bastarão para preencher esse espaço. Justifica-se, portanto, a existência desta revisão, a quarta que publico desde a inauguração do blog.

A primeira coisa que me julgo no dever de fazer é um esclarecimento que tem, na verdade, algo de uma retratação, não tanto pelo que eu disse quanto pelo que eu deveria ter dito. Em fevereiro, publiquei uma análise da letra de Geni e o zepelim, de Chico Buarque, na qual apontei um exemplo do parasitismo moral exercido pelo marxismo sobre a cosmovisão judaico-cristã. Meu grande amigo Gustavo Gama postou então um comentário sobre essa análise dizendo, dentre outras coisas, o seguinte:

"Quanto ao parasitismo, ele é bem calculado sim, com certeza. Acredito que ele tenta dar uma solução para 2000 anos em que os cristãos não conseguiram por em prática um modelo de justiça social. 2000 anos em que eles tinham a solução, tinham a faca e o queijo na mão (além do Deus Todo-Poderoso) e fingiram que não era com eles... Isso é uma especulação, não sei se era isso que passava pela cabeça do Marx enquanto ele elaborava sua análise/proposta de solução dos problemas sócio-econômicos que eram enfrentados por ele e seus contemporâneos."

Poucas semanas depois, ao redigir minha Primeira colheita, em que lidei, dentre outros assuntos, com certas críticas dirigidas contra alguns aspectos secundários da análise feita por mim no texto Assalto ao velho restaurante, eu disse:

"Para entender que isso [o parasitismo do marxismo sobre a tradição judaico-cristã] é assim desde o início, basta notar que Marx foi cristão em sua juventude (como foi muito bem lembrado por meu amigo Gustavo) e era judeu por nascimento. Não pode haver dúvida de que a preocupação social de Marx, por mais distorcida que fosse, inspirou-se nessa tradição (especialmente nos textos dos profetas do Antigo Testamento) para depois se voltar contra ela e acusá-la de ser a fonte de legitimação da injustiça e acomodação diante da mesma."

O que eu pretendia ressaltar nesse trecho é que a própria revolta de Karl Marx contra as condutas abomináveis dos judeus e cristãos só foi possível com base em critérios que são, eles próprios, derivados da moral judaico-cristã. Portanto, ao transformar sua crítica às práticas dos judeus e cristãos em uma rejeição das religiões em si mesmas, Marx teria incorrido numa flagrante inconsistência. Note-se, porém, que eu parti do pressuposto de que a especulação do Gustavo foi essencialmente correta: Marx seria um sujeito que cria na objetividade dos valores morais, e estaria, motivado por esse idealismo moral, sinceramente interessado em eliminar as injustiças e opressões presentes na sociedade em que vivia.

Na verdade eu já tinha, nessa época, razões para suspeitar de que esse quadro não era lá muito verídico. Afinal, eu já lera um livro do pensador católico Auguste Etcheverry que apontava, com citações e tudo mais, para o fato de que a objetividade moral não tinha lugar na doutrina marxista, a qual era, de modo intrínseco e declarado, materialista, determinista e amoral. Na época, apesar da farta documentação, fui impedido, talvez por um esquerdismo residual, de levar totalmente a sério as declarações de Etcheverry. Eu jamais vira críticas tão contundentes ao marxismo, e temi que o autor estivesse exagerando em sua descrição. Foi essa a motivação por trás da minha cautela em discordar abertamente do Gustavo, o que me levou a elaborar uma crítica às idéias de Marx que, embora não menos acertada, foi bem mais fraca do que poderia ter sido. Restringi-me, na verdade, a repetir com minhas próprias palavras a crítica feita pelo escritor cristão Vinoth Ramachandra, do Sri Lanka, no livro A falência dos deuses (Gods that fail), que, aliás, me foi emprestado pelo próprio Gustavo na época em que moramos juntos na saudosa República Vizinhos do Tutan. Isso me leva a crer que tais semelhanças no conteúdo dos discursos não são, na verdade, meras coincidências.

Comecei a perceber que minha crítica ao marxismo havia de fato sido branda demais quando, alguns dias depois, um outro amigo, o André Luiz, enviou-me um e-mail comentando certas declarações feitas por mim no blog. Sobre essa questão específica, as palavras dele foram:

"O marxianismo, isto é, o marxismo tal como descrito nas obras de Marx - deixando-se de lado os seus desenvolvimentos posteriores - é originariamente amoral, baseando-se em uma análise determinista da História. Na propaganda ideológica que se seguiu, o marxismo teve de adotar, de maneira vaga, os valores judaico-cristãos: ou melhor, ressignificá-los, parasitando-os para vencer os embates eleitorais, como você apontou de maneira excelente. Mais tarde é que novas formas marxistas passaram a defender valores em um âmbito moral, voltados a substituir a ética cristã. Para isto são mantidas as aparências enquanto o conteúdo é sistematicamente modificado."

De lá pra cá li um bocado de coisas sobre o assunto, e concluí que o André tem razão. Não pretendo enveredar agora por uma defesa desse ponto de vista. O que importa é ressaltar que seria desonesto de minha parte não me retratar do meu equívoco e reconhecer que errei ao alimentar suspeitas infundadas contra Etcheverry. Num certo sentido, sem dúvida, eu estava ainda mais certo do que supunha quanto ao parasitismo que denunciei em Assalto ao velho restaurante. Conhecendo um pouco mais sobre a proposta de Gramsci quanto a uma "revolução cultural", bem como sobre a Escola de Frankfurt, vejo que esse parasitismo é bem mais profundo do que eu imaginava, inclusive como estratégia política revolucionária sistematizada. Mas eu estava errado quando dei a entender que o marxismo enquanto tal, especialmente em sua forma original, fundava-se em preocupações de ordem moral. Um dia talvez eu exponha isso tudo com mais detalhes aqui, depois que eu tiver estudado um pouco melhor esse tema, que, aliás, está bem longe de ser uma das minhas prioridades no momento.

O segundo ponto que desejo comentar é algo que eu disse na Terceira colheita. Explicando que o objetivo do post A trindade na diversidade era o de definir adequadamente as diferenças entre evolucionismo, criacionismo e design inteligente, escrevi:

"Esse é um problema que me esforcei para resolver, e creio que agora o consegui. Mas não tenho tanta certeza disso, pois um amigo me informou durante uma conversa que Francis Collins, coordenador do famoso Projeto Genoma Humano, defende em seu livro recém-publicado, The language of God, uma concepção que se distingue de todas as três que apresentei aqui. Como eu ainda não li o livro e meu amigo não pôde me dar informações mais detalhadas porque também não havia terminado a leitura, não posso me pronunciar a respeito por enquanto, e limito-me agora a prometer que retornarei ao tema num post futuro se constatar que a minha classificação tripartidária se tornou desatualizada, ou se houver mais algo interessante a ser dito sobre o tema."

O amigo a que me referi era, novamente, o André. Depois de concluir a leitura do livro, ele contou-me que Collins na verdade é um evolucionista teísta como qualquer outro, e é darwinista. As definições que forneci continuam válidas, portanto. Porém, devo também deixar registrado que fui enganado pela minha memória ao redigir o trecho acima. O que o André havia dito, na realidade, era que Collins parecia se opor tanto ao criacionismo e ao design inteligente quanto ao darwinismo, e não que ele se opunha ao evolucionismo em si, do qual o darwinismo é apenas uma corrente, embora, sem dúvida, a principal. O caso, de qualquer forma, também não era esse, mas achei que valeria a pena informar os leitores sobre o desfecho dessa história.

O terceiro ponto, ainda vinculado ao tema da evolução e seus antagonistas, é o comentário do meu amigo Fortes ao meu post Visita a um velho conhecido. Quem quiser pode conferir lá, mas o que ele disse, em resumo, foi que considera o design inteligente pouco científico por ser cômodo. Além disso, ele imagina que o problema da origem da vida poderia ser resolvido postulando-se a presença de catalisadores apropriados, como ocorre na química dos polímeros (assunto que, devo dizer, meu amigo conhece muito bem). Enviei-lhe um e-mail em resposta, e publico seu conteúdo aqui, com leves adaptações, muito embora essa discussão fuja ao tema do post. Não publicarei a resposta do Fortes porque ele não contestou nenhuma das minhas afirmações, limitando-se a prestar certos esclarecimentos que eu havia solicitado.

"Quanto ao seu comentário, devo, antes de respondê-lo, prestar um esclarecimento. Minha preocupação principal nesse post não era a de criticar o evolucionismo ou defender o design inteligente, embora eu possa ter transmitido essa impressão. O objetivo era apenas protestar contra uma crítica absolutamente idiota vinda de um sujeito que ignora absolutamente tudo a respeito do tema, o que, no entanto, não o impede de escrever a respeito com absoluta segurança. Não pude deixar de achar ridícula a pretensão de um professor de literatura (é isso o que Lenny Flank é) de, no mesmo artigo em que demonstra não saber nada sobre química, biologia e estatística, pra não falar em interpretação de textos, acusar um Ph.D. em bioquímica de ser ignorante em sua própria área. O que não significa que não haja pessoas muito mais qualificadas para defender a evolução.

Existe entre os filósofos da ciência um interminável debate sobre quais seriam, afinal de contas, os 'critérios de demarcação', ou seja, quais características distinguem as teorias genuinamente científicas de todas as demais. Nunca ouvi falar, porém, que 'comodidade' ou 'incomodidade' fosse um desses critérios, de modo que não posso concordar com sua afirmação de que o design inteligente é pouco científico por ser cômodo. Aliás, como você sabe, ele incomoda muita gente. Não conheço em detalhes todos as linhas de argumentação envolvidas, mas, pelo menos a mais famosa delas, a complexidade irredutível, poderia ser refutada de maneira muito simples. E o fato de que ninguém tenha feito isso até agora (e quase ninguém tenha tentado) é em si mesmo bastante significativo, se não quanto a qual dos lados tem razão, pelo menos quanto a qual deles está mais acomodado. Afinal, comodismo por comodismo, considero no mínimo igualmente acomodados os darwinistas que, em vez de produzirem uma resposta conceitual e experimentalmente válida ao desafio proposto por Behe e seus amigos, ficam sentados confortavelmente em suas cátedras murmurando desculpas filosóficas como 'criacionismo disfarçado' e 'isso não é ciência'.

É principalmente por causa dessa atitude dogmática e petulante de grande parte da comunidade científica que eu considero o design inteligente uma teoria muito salutar e digna do meu apoio. Embora até o momento, de fato, o argumento deles me pareça mais forte que o dos evolucionistas em certos aspectos, não acho impossível que uma explicação evolucionária qualquer venha a suplantá-lo futuramente, e não tenho quaisquer objeções filosóficas ou teológicas a essa hipótese. Mas, sendo obrigado a julgar as teorias pela evidência presente, e não por hipotéticas descobertas futuras, minhas leituras sobre o tema me convenceram de que há muita coisa muito mal explicada, ou não explicada de maneira alguma, nas teorias evolutivas atuais, e que os cientistas que as defendem, mesmo os mais eminentes e capazes, só o fazem por compromisso ideológico ou por aquele tipo de estreiteza mental institucionalizada contra a qual Thomas Kuhn já nos advertia há mais de quarenta anos.

Não sei quanto você estudou o assunto mas, por via das dúvidas, acho que vale a pena dizer também que os exemplos de sistemas bioquímicos que Behe e outros consideram irredutivelmente complexos não se limitam à questão da origem da vida. Em Darwin's black box, Behe discute uma porção de outros casos, vários dos quais obviamente só surgiram muito depois na história da vida, como o sistema imunológico, a visão, os flagelos bacterianos e os mecanismos de transporte de substâncias através das células. Muitos desses sistemas específicos seriam, segundo a teoria, irredutivelmente complexos em si mesmos, não sendo, portanto, necessário supor que apenas a célula viva como um todo se enquadra nessa categoria. Assim, a resolução do problema da origem da vida seria apenas uma parte, embora provavelmente a mais difícil e importante, da refutação do conceito de complexidade irredutível.

E essa parte, aliás, vai muito mal. Tanto que tem gente oferecendo um milhão de dólares só por uma explicação bem fundamentada para a origem da informação genética nos seres vivos (veja aqui). E isso não é coisa de criacionistas. Não sei nada sobre polímeros, de modo que não posso julgar o valor da analogia que você propôs. Aliás, agradeço muito se você puder me explicar melhor. Mas a idéia de catalisadores já foi muito explorada ao longo da história dos experimentos sobre abiogênese, e até Carl Sagan se meteu a dar sugestões nesse sentido. Para ser mais exato, já se tentou de tudo para gerar as reações químicas apropriadas; desde a utilização de meios argilosos até a teoria do RNA autocatalítico, passando pelos proteinóides de Sidney Fox. Todos têm problemas teóricos sérios, e nenhum produziu resultados experimentais que chegassem perto de serem considerados promissores. Não acho impossível, volto a dizer, que alguém consiga algo do tipo qualquer hora dessas. Mas por enquanto as explicações disponíveis parecem-me puramente imaginativas, sem qualquer conexão com a realidade. Quem quiser acreditar acredite, mas não venham me dizer mais tarde que a teoria está bem fundamentada, faltando apenas acertar alguns detalhes. Como disse Phillip Johnson, é como se alguém achasse que é possível explicar o funcionamento do avião imaginando-se um fusca com asas."

4 de dezembro de 2007

Cinco pontos e mais alguns

Quando, na minha infância, comecei a prestar atenção ao que era dito nos estudos bíblicos promovidos pela minha igreja nas noites de quarta-feira, comecei a tomar um contato um pouco mais profundo com a teologia protestante. Isso me foi muito útil por diversas razões, embora em meados da adolescência eu ainda tivesse dificuldade para entender alguns pontos básicos. Sobre os mais avançados, há inúmeras questões que não entendi direito até hoje, muitas das quais dividem também as opiniões dos teólogos. Lembro-me, porém, de apenas dois desses estudos: um sobre o milênio descrito em Apocalipse 20 e questões escatológicas relacionadas, e o outro sobre a doutrina da predestinação, um dos pontos principais da teologia calvinista. Embora ultimamente eu tenha dedicado algum tempo ao estudo da primeira questão, é sobre a segunda que pretendo falar agora. Poucas doutrinas são tão detestadas pelos críticos do calvinismo, tanto dentro quanto fora da tradição evangélica e cristã em geral. Ao mesmo tempo, creio eu, nenhuma é tão mal compreendida. Muitos a tomam como sinônimo de determinismo ou fatalismo, ou pelo menos consideram que a aplicação coerente dos pressupostos da doutrina calvinista levaria diretamente a uma das duas coisas.

Creio que a melhor forma de desfazer esse equívoco é contemplar o quê, exatamente, diz a doutrina calvinista sobre o assunto. Tentarei fazer isso explicando os assim chamados Cinco pontos do calvinismo, os quais foram formulados e defendidos pela primeira vez no Sínodo de Dort, em 1619, como tomada de posição oficial contra o arminianismo. São os seguintes: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Colocados nessa ordem, resultam na sigla inglesa TULIP (total depravity, unconditional election, limited atonement, irresistible grace, perseverance of the saints), pela qual os cinco pontos também são designados às vezes. Tentarei explicar de maneira resumida o significado desses pontos, bem como a unidade lógica subjacente aos mesmos, e aproveitarei para apresentar o significado de alguns termos e conceitos importantes e sempre presentes na terminologia calvinista.

A formulação desses cinco pontos pressupõe o conceito bíblico da Queda do Homem. Pense cada um o que quiser sobre a literalidade ou não da narrativa do Gênesis; mas permanece o fato de que o homem, como indivíduo e como espécie, é pecador e, por conseguinte, encontra-se naturalmente em estado de inimizade contra Deus, que necessariamente é santo, perfeito e tem horror ao mal. Estamos todos muito aquém do padrão de moralidade considerado aceitável por Deus, e não podemos sair dessa situação a não ser com o auxílio do próprio Deus, que nos salva pela obra redentora de Jesus Cristo. Sem isso, em virtude do contraste mesmo entre a santidade divina e a podridão humana, não podemos ser restaurados à comunhão com Deus que é o principal objetivo de nossa existência. Por isso, pressuponho que o leitor esteja familiarizado com essas doutrinas, que estão entre as mais obviamente expressas no Novo Testamento, e por isso mesmo não constituem desacordo entre as diversas vertentes da teologia cristã.

O primeiro ponto, a depravação total, é o mais importante dos cinco, e é, na realidade, a fonte de todos os debates entre o calvinismo e as teologias de orientação sinergista. Ele significa que o homem, deixado à sua livre iniciativa, jamais obterá a salvação. Isso não é o mesmo que apenas dizer que as boas obras não bastam para obtê-la. Mesmo com a salvação gratuita oferecida em Cristo, o homem continuará incapaz até de desejar ser salvo. A iniciativa de salvar cabe, portanto, ao lado divino, o que nos leva ao segundo ponto. Mas antes convém esclarecer que a depravação total não significa que nada de bom tenha restado no homem. "Total" tem também o sentido de "integral", significando que todos os aspectos da natureza humana, entre os quais a moralidade e a razão, são atingidos e prejudicados pelo pecado. Isso não quer dizer que não possamos efetuar obras realmente boas, ou que não possamos conhecer verdades sobre a realidade, pois nada disso tem a ver necessariamente com a salvação, que é o foco principal dessa doutrina. Ela significa, isso sim, que com a Queda nos tornamos imperfeitos em todos os aspectos do nosso ser; e com imperfeição quero dizer corrupção e decadência, e não apenas finitude e limitação.

Dado que homem algum é capaz de efetuar por si mesmo a reconciliação com Deus, mesmo com sacrifício redentor e tudo, segue-se que a salvação ou perdição não é determinada por qualquer atitude ou característica presente nos indivíduos, que são, sob esse ponto de vista, idênticos. Essa diferenciação não se baseia, portanto, em diferenças de qualquer tipo entre os homens em questão, e sim em critérios não revelados que Deus estabeleceu para si mesmo. Esse é o significado do segundo ponto, a eleição incondicional.

Antes de prosseguir, cabe aqui mais um esclarecimento. Essa idéia da absoluta soberania divina é, na verdade, a doutrina central do calvinismo, e não a predestinação. Esta é um corolário ou, pra ser mais exato, um caso particular daquela. Louis Berkhof e outros sistematizadores da teologia calvinista deram a isso o nome de doutrina dos decretos de Deus. Significa que tudo o que existe e acontece, mesmo os nossos atos livres (incluindo-se aí os maus atos livres) e seus resultados, só podem existir e acontecer porque Deus assim decidiu. Não quer dizer que Deus necessariamente participa de maneira direta ou ativa no ato em si, ou em que sentido o faz. Na verdade, isso é irrelevante. O que importa é que, dada a onipotência e a onisciência divinas, e o fato de que ele nada faz ou permite sem propósito (ainda que só conhecido por ele mesmo), segue-se que nada ocorre sem ter sido previamente decretado por ele (vale lembrar que isso não deve ser entendido num sentido cronológico, conforme já alertei no post A mais grandiosa das aventuras) .

A doutrina da predestinação resulta da aplicação da doutrina dos decretos divinos à questão, muito mais específica, do destino final das criaturas morais de Deus (isto é, os homens e os anjos, até onde sabemos). Ninguém irá para o céu ou para o inferno se essa não for, no fim das contas, a vontade de Deus, pois o contrário seria admitir que seus propósitos foram frustrados. Aqui entra o terceiro ponto, a expiação limitada, que significa que o sacrifício de Cristo foi efetuado definidamente em prol dos eleitos (conhecidos de antemão, como disse o apóstolo Paulo), e não como uma possibilidade aberta primeiro para depois ver quem a aceitaria. Se me for permitido dizer assim, essa doutrina significa que não houve desperdício de expiação.

Nesse sentido, sem dúvida, pode-se falar em uma dupla predestinação, ou seja, que alguns são predestinados à salvação e outros à perdição. Porém, os teólogos calvinistas não costumam gostar dessa expressão, e têm suas razões para isso. Uma delas é que, embora se enquadre como caso especial dos decretos de Deus, a palavra "predestinação" usualmente expressa mais do que isso. Encontram-se embutidas em seu significado pleno as conseqüências lógicas do conceito de depravação total, e este não pode, creio eu, ser logicamente deduzido da doutrina dos decretos divinos. Daí se segue que a concretização do ato salvífico no indivíduo passa necessariamente por aquilo que a teologia calvinista denomina "regeneração", pela qual o homem é tornado capaz de desejar a salvação e, portanto, de recebê-la. A regeneração é o ato do Espírito Santo que produz a fé e, portanto, a antecede.

Ao tocar nesse ponto chegamos, enfim, à dissensão fundamental entre o sinergismo e o monergismo. Na verdade, essa divergência reside na idéia da depravação total, que, mesmo não sendo tão radical quanto alguns dão a entender (os que chamamos às vezes de ultracalvinistas, mais ou menos no mesmo sentido em que chamamos Richard Dawkins de ultradarwinista), ainda é suficiente para tornar inviável, se aceita, qualquer teoria sinergista. As conseqüências lógicas da posição tomada quanto à profundidade e extensão dos efeitos da Queda se manifestam com toda a sua força na hora de sabermos qual é exatamente a participação do eleito na própria salvação. Muitos dos melhores teólogos calvinistas insistiram que o processo todo, embora de iniciativa puramente divina, não chega a violar a liberdade humana. Estou ciente de que muita filosofia, psicologia e antropologia foi produzida pela tradição calvinista na tentativa de lidar com as complicadas questões decorrentes daí, mas quanto a esse tema, pelo simples fato de não conhecer nada disso em profundidade, não tenho direito algum de falar em nome do calvinismo. Eu poderia, no máximo, discorrer sobre minhas especulações pessoais. Mas estas não só fogem aos meus propósitos imediatos com também, não tendo sido devidamente enriquecidas pelo contato com os debates ocorridos entre pessoas muito mais qualificadas para tratar do assunto, não são sequer dignas de atenção.

Do que foi exposto, pode-se compreender facilmente o quarto ponto. À luz das doutrinas da eleição incondicional e da depravação total, conclui-se que, sejam quais forem os meios utilizados, o Espírito Santo regenera eficazmente aqueles que foram eleitos. Isso não quer dizer que seja impossível resistir à regeneração, e muito menos que seja impossível resistir ao Espírito Santo quanto a outras influências que ele pode produzir em nós. Significa apenas que, com relação a essa questão específica da salvação, a qual passa necessariamente pela regeneração, a resistência não prevalecerá indefinidamente. O Espírito não tenta regenerar todos os homens, mas tão somente os eleitos, e estes acabam, no fim das contas, regenerados. Decorre daí o nome do quarto ponto, a graça irresistível.

A regeneração, porém, não é tudo. Ela produz a fé, e a fé produz a justificação. Esta é a reconciliação com Deus propriamente dita, com base unicamente nos méritos de Cristo, e é feita imediatamente. O indivíduo justificado, porém, é ainda um pecador. A partir do instante da justificação tem início uma nova etapa, denominada santificação. Esta, ao contrário daquela, é um processo gradual, e é, podemos dizer assim, sinergística. Ou seja, nela concorrem tanto a ação do Espírito Santo quanto o esforço do indivíduo em questão. Seu efeito é levar o homem regenerado a refletir a glória e a perfeição do Senhor Jesus, e isso em todos os aspectos de seu ser. Os efeitos da santificação, assim como os da Queda, estendem-se por todos os domínios da vida humana. A aquisição de uma vida santa e moralmente perfeita não é, portanto, um pré-requisito para que sejamos aceitos na presença de Deus. A realidade é o oposto exato disso: essa admissão é que é a condição possibilitadora da genuína santidade.

O quinto ponto, a perseverança dos santos, significa que a regeneração e a justificação são processos irreversíveis, ou seja, não é possível, a alguém que tenha alcançado a salvação, perdê-la mais tarde. O mesmo, porém, não é válido para a santificação, que pode regredir também em todos os níveis. Uma vez mais, aqui é possível resistir ao Espírito Santo, mas essa resistência acabará por ser esmagada. As fases do processo que dependem unicamente da ação divina são eficazes e irreversíveis; apenas quando entra em cena a colaboração humana é que as coisas começam a dar errado. Mas, para os eleitos, não para sempre.

Em vista de tudo o que foi dito, fica mais fácil entender a outra razão pela qual a expressão "dupla predestinação" não é muito bem vista no meio calvinista. É que a palavra "predestinação" também subentende, no contexto dessa teologia, uma ação direta de Deus como requisito para a salvação do indivíduo. Não convém entrar numa discussão sobre o que pode ou não ser considerado uma ação direta, mas sem dúvida é algo específico e qualitativamente distinto do mero ato de sustentação com que Deus mantém toda a criação. E essa interferência ativa é algo que ocorre na salvação dos eleitos, mas não na perdição dos reprovados. A eleição e a reprovação, embora sejam termos opostos na terminologia calvinista, não são fenômenos perfeitamente simétricos: o primeiro requer a atividade divina e o segundo a sua passividade, no sentido em questão. Em outras palavras, o calvinismo concebe a humanidade como uma multidão que vai caminhando espontaneamente para o inferno. Deus se coloca deliberadamente no caminho de alguns e os convence a dar meia-volta e caminhar na direção oposta. Os demais continuam caminhando para a perdição, e o fazem com suas próprias pernas.

28 de novembro de 2007

A origem da bagunça

Recentemente, meu amigo André Luiz deu início a um empreendimento realmente admirável, que é a publicação de uma série de postagens em seu blog acerca do velho problema das investigações históricas sobre Jesus. A quem se interessa pelo assunto, não posso deixar de recomendar que acompanhe essas publicações. Conheço meu amigo o suficiente para saber que ele possui um vasto conhecimento sobre o assunto, fruto de um profundo interesse que motiva seus estudos há décadas (embora o André não seja tão velho assim). E os dois posts já publicados confirmaram plenamente minhas expectativas de aprendizado. Inspirado por esse acontecimento, decidi escrever agora sobre um problema relacionado a esse, que já mencionei de passagem anteriormente: o da crítica textual. Também chamada de "ecdótica", termo criado por Henri Quentin em 1926, essa ciência busca reconstituir a forma original de um texto a partir das cópias conhecidas, todas as quais carregam distorções em maior ou menor grau. Andei estudando algo a respeito ultimamente, e achei o tema não apenas bastante interessante, mas também de importância óbvia para a adequada compreensão da mensagem de qualquer texto antigo. Pois todos os esforços de interpretação serão inúteis se não pudermos ter certeza, em primeiro lugar, de que estamos interpretando o texto correto, e não algum outro.

Apesar de meus estudos pessoais sobre o assunto não terem sido muito profundos, o tema em si é complexo demais para um post só. Hoje falarei sobre um aspecto bem definido, isto é, as origens dos erros que se introduzem nos manuscritos ao longo dos sucessivos processos de cópia. Sem isso não será possível abordar outras questões, como os critérios que orientam o julgamento entre variantes de uma determinada passagem ou a história das diferentes tradições textuais. Não posso, porém, falar sobre a crítica textual em geral, pois só conheço superficialmente sua aplicação a dois conjuntos de textos: o Antigo e o Novo Testamento, que, escritos em línguas e épocas distintas, possuem suas peculiaridades do ponto de vista da crítica textual, embora haja também muito em comum. Para a exposição a seguir, embora tenha me utilizado de outras publicações, minha principal fonte quanto à ecdótica neotestamentária é o livro Crítica textual do Novo Testamento, de Wilson Paroschi, uma obra para iniciantes que recebeu elogios até de Bruce Metzger, de Princeton, uma das principais autoridades mundiais no assunto. Para o Antigo Testamento, utilizei um capítulo de um livro de escopo bem mais abrangente, A survey of Old Testament introduction, de Gleason Archer, perito em línguas semíticas antigas. Sem mais delongas, portanto, apresento a seguir as principais fontes de erro na transmissão dos textos.

Em primeiro lugar, temos aqueles erros derivados simplesmente da falta de atenção do copista. Ela pode resultar na troca de posições entre certas letras ou palavras, assim como na substituição de certas palavras por um sinônimo (casos em que o copista foi provavelmente traído por sua memória). Também algumas letras, sílabas ou mesmo palavras inteiras aparecem repetidas em certos manuscritos; em outros, ao contrário, o copista transcreveu apenas uma vez uma seqüência de caracteres que deveria ser repetida. Algumas palavras, é claro, podem ser omitidas por distração, mesmo quando não estão repetidas. Um caso particularmente interessante e relativamente comum é a omissão de certos trechos que se encontram entre duas palavras iguais e próximas. Presumivelmente o copista, tendo memorizado e copiado o texto até a primeira ocorrência dessa palavra, enganou-se ao retornar ao manuscrito original, recomeçando a cópia a partir da segunda, resultando em um novo manuscrito sem o trecho intermediário. Em vários casos, erros assim podem ser prontamente identificados quando se comparam as variantes, pois o erro torna a frase sem sentido em virtude do fato de ela conter erros gramaticais ou não se adequar ao contexto. Mas essa identificação nem sempre é possível, principalmente no hebraico antigo, o qual, não possuindo representação gráfica para as vogais (que só foram inventadas por volta do século VIII pelos massoretas), dá margem facilmente a leituras alternativas válidas em decorrência desses erros de transcrição. Vale lembrar também, em conexão com isso, que na Antigüidade não existiam parágrafos, nem sinais de pontuação e acentuação.

Outra classe de erros provém de dificuldades que podemos chamar de "físicas". Essas podem ser de vários tipos. Por uma questão de economia de espaço ou por qualquer outra razão, a presença de espaços suficientemente nítidos não era algo comum nos manuscritos antigos. Assim, era natural que o copista fundisse duas palavras separadas ou cindisse em duas uma única palavra. Em outros casos, o copista simplesmente não entendia uma determinada letra e a substituía por outra de aparência semelhante. Ele pode ter sido induzido a erros dessa ordem por uma série de fatores: pode ter se baseado em um manuscrito muito velho ou mal conservado; o autor da cópia anterior talvez padecesse de certas inabilidades gráficas (leia-se "letra feia"); ou o copista possuía deficiências visuais que dificultavam a leitura, em particular o astigmatismo e a presbiopia (não nos esqueçamos que os óculos só foram inventados no século XIV). Há ainda situações em que a confusão é de natureza fonética, e não visual. Muitos manuscritos foram produzidos por escribas que não viam o original, o qual ia sendo ditado a eles por outra pessoa. Conseqüentemente, certas palavras eram ocasionalmente substituídas por outras de som idêntico ou semelhante. Todos esses erros eram facilitados, obviamente, caso o copista não dominasse a língua em questão. Deve ser observado ainda que os erros descritos neste parágrafo também podem derivar da pura distração, embora isso seja menos provável que nos casos descritos no parágrafo anterior. O que foi dito ali, aliás, permanece válido aqui: em certos casos o erro é prontamente identificável, mas em outras situações isso não ocorre.

Há outros tipos de alterações que não se encaixam nos dois grupos definidos acima. O copista podia ser enganado pela própria evolução da língua quanto ao som, à forma das letras ou mesmo às regras gramaticais. O grego foi muito mais suscetível a isso que o hebraico, que mudou menos ao longo dos séculos, embora também haja interessantes exemplos de variantes textuais que se explicam dessa forma no hebraico. De qualquer forma, essas mudanças tornavam semelhantes certas pronúncias originalmente diferentes, ou modificavam certos costumes gramaticais ou gráficos e convenções de abreviação, ou alteravam a forma de certas letras (um campo inteiro de estudos é dedicado ao estudo desta última categoria de mudanças: a paleografia, que aliás é muito importante na datação dos manuscritos). De maneiras diversas, esses fatores acabaram sendo responsáveis pela introdução de certos erros, decorrentes da falha do copista em compreender as intenções do autor do manuscrito disponível. Um outro erro, muito diferente desses, embora também vinculado à incompreensão das intenções do copista anterior, diz respeito às anotações marginais feitas por este. Diversos acréscimos ao texto original explicam-se dessa forma: um copista introduziu uma palavra ou frase na margem do manuscrito em que copiava, a título de esclarecimento ou comentário pessoal. Posteriormente, outro copista empregou esse mesmo manuscrito para produzir sua própria cópia e, erroneamente, considerou essa nota marginal como parte do texto original, inserindo-a, portanto, no corpo do seu texto.

Até agora, no entanto, falei exclusivamente de variantes geradas de maneira não intencional. Estas constituem a quase totalidade das variações textuais do Antigo Testamento, mas possuem um papel muito modesto nos manuscritos neotestamentários, tanto em quantidade quanto em importância. A razão disso não é difícil de entender: os judeus tinham uma longa tradição de profundo respeito por seus livros sagrados e, ao que parece, esforçavam-se grandemente por preservar cada palavra deles em decorrência disso. Entre os cristãos primitivos, que se empenharam em transmitir os ensinos e narrações de Cristo e dos apóstolos, dificilmente haveria semelhante reverência pela letra dos textos. Eles consideravam importante transmitir a essência dos textos, e demorou várias gerações até que a tradição se consolidasse e o ambiente psicológico da Igreja estivesse preparado para que fosse atribuído aos textos sagrados o mesmo tipo de valor que os judeus atribuíam aos seus. A essa altura, porém, muitas alterações intencionais já haviam sido introduzidas. Passo a mencionar agora as principais dentre elas.

Quase todas as variantes intencionais são tentativas de harmonização, em algum sentido. Isso ocorre freqüentemente, por exemplo, em passagens que possuem fortes semelhanças entre si, fato que levou certos copistas a introduzir modificações em uma delas para reduzir suas diferenças em relação à outra. O mesmo ocorria em certos trechos nos quais o autor do texto fazia uma citação de outro livro, sem, contudo, preocupar-se em transcrevê-la letra por letra: alguns copistas resolveram fazê-la mais literalmente. Outros fizeram correções com o objetivo de remover contradições que enxergavam entre o texto em questão e outras passagens, ou com fatos históricos e geográficos conhecidos. Em outros casos, certas passagens foram adaptadas para uso litúrgico, e essas adaptações acabaram agindo no sentido inverso, influenciando a redação das cópias. Não poucos copistas corrigiram também erros gramaticais, ou pelo menos modificaram construções e palavras que lhes pareciam erradas, vulgares, ou demasiado incomuns. Certas partes do Novo Testamento contêm muitos hebraísmos que alguns escribas mais cultos gostavam de reescrever numa forma grega mais elegante. O principal problema, porém, reside nas transliterações de nomes estrangeiros, para os quais não havia qualquer convenção estabelecida, e esse fato é responsável por muitas variações. A existência de variações regionais na escrita e pronúncia do grego helenístico, já bastante coloquial pela sua própria natureza, conferia um incentivo adicional ao surgimento de variantes textuais. Há ainda um outro conjunto de alterações efetuadas com o objetivo de atenuar dificuldades de compreensão em certas passagens difíceis (alterações essas que envolviam, é claro, um esforço exegético, nem sempre acertado) ou mesmo de evitar dificuldades teológicas que o texto parecia impor.

O resultado de todos esses fatores, e outros que não mencionei, é uma bela bagunça, embora, no fim das contas, o grau de distorção dos textos não seja tão elevado quanto essa descrição talvez dê a entender num primeiro momento. Pretendo, numa postagem futura, ilustrar com exemplos as categorias que acabo de mencionar, a fim de fornecer maior nitidez ao panorama traçado. Mas isso tudo é apenas a descrição das causas do problema, sem a qual é impossível compreender a solução do mesmo.

23 de novembro de 2007

Calúnia poética

Recentemente, uma amiga reprovou com suavidade o que ela considera minha "obsessão por C. S. Lewis". Ela disse isso por causa da freqüência com que menciono o escritor irlandês neste blog. Não creio que se trate de uma obsessão, e também não me parece que minha amiga tenha dito isso senão metaforicamente. Ocorre que Lewis foi o primeiro escritor e intelectual que fez mais que conquistar meu respeito ou dar provas de que merecia atenção; conquistou também minha admiração. E sendo ele o escritor de quem mais li livros, é relativamente fácil, para mim, usá-lo como exemplo, mesmo quando estou tratando de assuntos não necessariamente vinculados à sua pessoa. É bem verdade que ele me ensinou muitas coisas que eu poderia ter aprendido com outros escritores ou de outras maneiras, caso houvessem se apresentado primeiro. De qualquer forma, a fim de não irritar ninguém com essa mania, prometo solenemente que esta será a última vez que dedico um texto a C. S. Lewis neste ano.

Meses atrás, num post intitulado Dois discursos diabólicos, falei de um aspecto específico da conversão de Lewis do ateísmo ao cristianismo: a percepção do conflito entre as necessidades da natureza humana e a visão de mundo materialista e pessimista que o autor expôs em dois poemas publicados na sua juventude. Hoje tratarei de um outro aspecto dessa conversão, dentre muitos que poderiam ser abordados. Pretendo futuramente (não neste ano, é claro) falar sobre o lado especificamente intelectual, que é muito interessante. Hoje tratarei do seu elemento moral, e farei isso, uma vez mais, recorrendo a um outro poema do mesmo livro onde fui buscar os anteriores, o Spirits in bondage. Assim como fiz na outra vez, disponibilizo aqui não só o poema na língua original, mas também uma tradução feita por mim mesmo, da maneira menos incompetente possível, a fim de permitir que os que não lêem em inglês possam ao menos compreender o sentido do que é dito.


De profundis

Vinde, maldigamos nosso Mestre antes que morramos,
pois todas as nossas esperanças jazem na ruína sem fim.
O bem está morto. Maldigamos o Deus Altíssimo.

Quatro milênios de labuta, esperança e pensamentos
Em que o homem ascendeu laboriosamente e, embora forjasse
novos e melhores mundos, Tu os tornaste em nada.

Construímos cidades jubilosas, fortes e justas,
buscamos conhecimento e reunimos rara sabedoria.
E todo esse tempo zombaste do nosso esmero,

e subitamente a terra escureceu com o erro,
nossa esperança foi esmagada e nossa canção silenciada,
o céu se encheu do som do choro. Tu és forte.

Vinde então e maldizei o Senhor. Sobre a terra
cai pesada escuridão, e mau foi o nosso nascimento,
e de pouco valor os nossos poucos dias felizes.

Mesmo que não seja tudo um sonho vão
- a antiga esperança que ainda se erguerá novamente -
de um Deus justo que se importa com a dor terrena,

contudo, muito além de nossa dolorosa noite,
ele passeia nas profundezas da luz sem fim,
cantando sozinho suas músicas de regozijo;

apenas o eco distante e exaurido de sua canção
pode atingir nossas masmorras e profundas celas,
e Tu estás mais perto. Tu és muito forte.

Ó força universal, eu bem sei,
não é senão fútil tolice se rebelar;
pois tu és Senhor e tens as chaves do Inferno.

Contudo, eu não me curvarei a ti nem te amarei,
pois olhando em meu próprio coração posso provar-te
e saber que este ser débil e ferido está acima de ti.

Nosso amor, nossa esperança, nossa sede do que é certo,
nossa misericórdia e longa busca pela luz,
trocaremos tudo isso por teu inexorável poder?

Zomba então, e assassina. Despedaça todas as coisas dignas,
continua a amontoar tormento sobre tormento para tua alegria -
Tu não és Senhor enquanto há Homens sobre a terra.


De profundis

Come let us curse our Master ere we die,
For all our hopes in endless ruin lie.
The good is dead. Let us curse God most High.

Four thousand years of toil and hope and thought
Wherein man laboured upward and still wrought
New worlds and better, Thou hast made as naught.

We built us joyful cities, strong and fair,
Knowledge we sought and gathered wisdom rare.
And all this time you laughed upon our care,

And suddenly the earth grew black with wrong,
Our hope was crushed and silenced was our song,
The heaven grew loud with weeping. Thou art strong.

Come then and curse the Lord. Over the earth
Gross darkness falls, and evil was our birth
And our few happy days of little worth.

Even if it be not all a dream in vain
-The ancient hope that still will rise again-
Of a just God that cares for earthly pain,

Yet far away beyond our labouring night,
He wanders in the depths of endless light,
Singing alone his musics of delight;

Only the far, spent echo of his song
Our dungeons and deep cells can smite along,
And Thou art nearer. Thou art very strong.

O universal strength, I know it well,
It is but froth of folly to rebel;
For thou art Lord and hast the keys of Hell.

Yet I will not bow down to thee nor love thee,
For looking in my own heart I can prove thee,
And know this frail, bruised being is above thee.

Our love, our hope, our thirsting for the right,
Our mercy and long seeking of the light,
Shall we change these for thy relentless might?

Laugh then and slay. Shatter all things of worth,
Heap torment still on torment for thy mirth-
Thou art not Lord while there are Men on earth.


O poema não necessita de nenhuma explicação adicional, e o que importa nele, para o meu presente objetivo, é justamente o que aparece da maneira mais óbvia possível: a convicção de que Deus, na forma como os cristãos e monoteístas em geral o concebem, não passa de um tirano egoísta e desumano que, sem se envolver jamais com o sofrimento de suas criaturas, valoriza tudo o que há de mais vil e retrógrado (permito-me utilizar esse termo progressista pela carga psicológica que ele adquiriu na linguagem semipopular da elite semipensante de hoje), e pune severamente todos os esforços dos seres humanos que aspiram a valores mais dignos. Sem dúvida, o Deus assim concebido é apenas um ditador totalitário típico em escala imensamente ampliada, que prevalece pela força e não pelo mérito, e por isso mesmo é moralmente inferior àqueles que gemem sob sua tirania. Significativamente, o título do poema, De profundis (expressão latina que significa "das profundezas"), foi extraído das palavras iniciais do Salmo 130, que é uma oração de súplica em meio ao sofrimento e de esperança fundamentada na bondade divina, oração essa que Lewis inverteu e transformou numa declaração de rebeldia. É claro que ele não cria na existência de tal ser; apenas retratou a forma como enxergava a concepção teológica predominante.

Não é meu propósito discutir a acuidade ou mesmo a coerência lógica das concepções do jovem poeta sobre esse tema. A contradição que pretendo apontar é de natureza algo diferente. Ela salta aos olhos quando comparamos a concepção de Lewis sobre a natureza humana, delineada no poema, com sua própria conduta pessoal nessa fase de sua vida. A revolta contra Deus em De profundis só faz sentido porque a tirania e a insensibilidade divinas contrastam fortemente com a bondade essencial dos homens que, a despeito de todas as limitações (impostas, em última análise, pelo próprio Deus), estão empenhados na busca pelo bem, pela virtude e pelo conhecimento, e interessados em produzir algo de bom a partir disso. Os termos com que Lewis lisonjeia nossa própria espécie chegam a ser comoventes.

Mas quando examinamos a vida do próprio autor nesse período, pelo que se pode depreender de sua autobiografia escrita décadas depois, encontramos um contraste quase patético entre as idéias defendidas no poema e as atitudes do mesmo poeta diante da vida. Essa verdade transparece em diversos momentos do livro. Quando fala de seu primeiro contato com os textos de G. K. Chesterton, por exemplo, Lewis afirma que apreciava a virtude moral desse escritor, mas logo esclarece que isso não significa que ele próprio tivesse qualquer interesse em ser virtuoso. Parece, portanto, que havia um considerável grau de hipocrisia na acusação lançada pelo poeta à face de Deus. E num certo sentido, sem dúvida, havia mesmo. Mas creio ser mais adequado descrever esse interessante fenômeno como decorrente de uma certa inconsciência ou, para ser mais exato, de uma falta de autoconsciência. Na história da conversão de Lewis (e, creio eu, de qualquer conversão autêntica), um papel fundamental é desempenhado por essa percepção progressivamente mais nítida da frivolidade, vileza e maldade do indivíduo em questão, percepção que parece estar totalmente ausente no poema acima.

Os elementos que contribuíram direta ou indiretamente para essa tomada de consciência sobre sua própria condição moral são muitos e variados, mas cabe ressaltar o exemplo dado por muitas pessoas. Isso inclui, por um lado, escritores como Chesterton e Platão, mas também envolve o testemunho eloqüente, embora freqüentemente silencioso, de amigos pessoais; especialmente, no caso em questão, de amigos como Owen Barfield e Bede Griffiths, que nem eram cristãos. Houve ainda algumas novas convicções filosóficas empurrando no mesmo sentido. Mais do que as vias de acesso, no entanto, importam os resultados a que conduziram: um dia, cedendo finalmente à crescente pressão de sua consciência para que passasse do amor teórico pela virtude à prática da mesma, Lewis conta-nos o resultado nas seguintes palavras: "Pela primeira vez examinei a mim mesmo com um propósito seriamente prático. E ali encontrei o que me assustou: um bestiário de luxúrias, um hospício de ambições, um canteiro de medos, um harém de ódios mimados. Meu nome era Legião."

Quando existe uma contenda entre duas partes e nós tomamos irrefletidamente o partido errado, a constatação do equívoco freqüentemente tem início com a percepção de que, à parte do assunto em disputa, aqueles que apoiamos não são tão bons quanto julgávamos que fossem. Daí podemos levar mais a sério a possibilidade de que talvez o outro lado não fosse tão ruim quanto pensávamos. Isso é, no mínimo, um interessante fato psicológico. E no caso de Lewis foi exatamente isso o que aconteceu. Foi apenas depois, e não antes, de ter se livrado daquela presunção autolisonjeira que expressara em termos coletivos no seu poema da juventude, que Lewis pôde reconhecer, por contraste, a bondade divina.

Essa constatação ajuda a compreender também certos aspectos dos seus escritos cristãos produzidos na maturidade. Assim, por exemplo, Lewis não começa sua exposição da doutrina cristã no livro Mere christianity sem antes defender filosoficamente a objetividade das leis morais e apontar a nossa incapacidade de agir em perfeito acordo com ela. O autor não estava apenas sendo coerente com a doutrina cristã, cuja oferta de salvação não poderá ser aceita por um indivíduo que não saiba do quê precisa ser salvo. É mais do que isso: Lewis expôs magistralmente a força da lei moral porque ele próprio a sentiu da maneira mais intensa possível. Da mesma forma, quando disse que "um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom, [mas] um homem completamente mau pensa ser completamente bom", ele não estava senão aludindo à sua experiência pessoal, cristalizada num enunciado universal com amplo respaldo na história da humanidade, especialmente nesses últimos séculos.

Lewis não foi capaz, nas profundezas em que se encontrava aos vinte anos, de enxergar a realidade sobre Deus e sobre si próprio. Mas foi plenamente capaz disso pouco mais de dez anos mais tarde, e agiu da única maneira apropriada diante das verdades que descobrira. As palavras abaixo, com as quais encerro este texto, não se referem ainda à sua conversão ao cristianismo, mas marcam o início de seu compromisso com o teísmo em todos os aspectos de sua existência. Nelas, reconhecendo a bondade de Deus e sua própria maldade, Lewis retratou-se pela calúnia cometida nos versos de seu primeiro livro:

"O leitor precisa imaginar-me sozinho naquele quarto em Magdalen, noite após noite, sentindo - sempre que minha mente se desviava por um instante que fosse do trabalho - a aproximação firme e implacável dEle, aquele que com tanta determinação eu desejava não encontrar. Aquilo que eu temera tanto pairava afinal sobre mim. Cedi, enfim, no período letivo subseqüente à Páscoa de 1929, admiti que Deus era Deus, e ajoelhei-me e orei: talvez, naquela noite, o mais deprimido e relutante convertido de toda a Inglaterra. Não percebi então o que se revela hoje a coisa mais ofuscante e óbvia: a humildade divina, que aceita um convertido mesmo em tais circunstâncias. O Filho Pródigo pelo menos caminhou para casa com suas próprias pernas. Mas quem é que pode adorar devidamente esse Amor que abre os portões a um pródigo que é arrastado para dentro esperneando, lutando, ressentido e girando os olhos em torno, à procura de uma chance de fuga? As palavras compelle intrare, forçá-los a entrar, foram tão violentadas por homens impiedosos que chegamos a estremecer diante delas; mas, entendidas de forma correta, elas determinam a profundidade da misericórdia divina. A dureza de Deus é mais bondosa que a suavidade dos homens, e sua coerção é nossa libertação."

17 de novembro de 2007

Briga de família

O assunto de que vou tratar hoje é um tanto complicado pela multiplicidade de seus aspectos. Quem já conversou comigo a respeito sabe que sou um dos protestantes menos anticatólicos que existem. Pretendo agora explicar 1. o que quero dizer precisamente com isso, 2. como vim a adotar essa posição, 3. por que acho que devo permanecer nela, 4. por que acho que seria bom se mais protestantes concordassem comigo, 5. as razões pelas quais acredito que isso não ocorre e 6. quais as conseqüências que isso pode trazer para o corpo de Cristo; não necessariamente nessa ordem, é claro. Farei apenas algumas considerações avulsas, em parte teóricas e em parte autobiográficas, na esperança de lançar alguma luz sobre o tema. Sendo este, aliás, um terreno bastante escorregadio, farei um esforço para não me desviar demais dele, deixando para ocasiões futuras o aprofundamento de certos pontos que porventura pareçam importantes.

Antes de começar, porém, creio que convém fazer dois importantes esclarecimentos, a fim de evitar interpretações equivocadas sobre minhas intenções em relação a este texto. O primeiro é que, embora o próprio objetivo a que me proponho me leve naturalmente a enfatizar os pontos de acordo, isso não significa que não haja de minha parte desacordos razoavelmente severos com relação à Igreja Católica, tanto em sua teologia quanto em certas atitudes dela, ou de parte dela, frente a certos acontecimentos. Minhas objeções ao catolicismo são basicamente todas as que podem existir da parte de um protestante razoavelmente bem informado, e isso é o máximo que posso ter a pretensão de ser. Apenas acho que, numa escala puramente relativa, as posições que temos em comum são mais importantes que aquelas nas quais discordamos. Conseqüentemente (e essa é a minha segunda observação preventiva), a despeito das minhas simpatias pelo catolicismo, sou contrário a qualquer ecumenismo, especialmente se ele envolve alguma tentativa de unificação administrativa ou mesmo litúrgica. Não creio que haja, de nenhum dos dois lados, maturidade suficiente para que a concretização dessa hipótese possa trazer algum bem. Sou favorável ao diálogo amistoso (ou mesmo à briga amistosa), ao esforço sincero de compreensão mútua e à aliança em defesa de interesses comuns, mas podemos perfeitamente fazer tudo isso fora dos horários das missas e cultos.

Nem sempre pensei assim, naturalmente. As razões que me levaram a isso foram surgindo tão discreta e gradualmente que seu efeito se acumulou de maneira quase imperceptível ao longo dos anos. Não, é claro, que eu tenha alguma vez me sentido inclinado a pensamentos, atos ou sentimentos rancorosos. Isso jamais ocorreu, nem encontrei qualquer incentivo nesse sentido por parte da minha família ou da minha igreja. Mas, aos seis anos de idade, a única conclusão a que pude chegar a partir do que me foi ensinado foi a de que a humanidade dividia-se nitidamente em dois grupos: os membros das igrejas genuinamente cristãs, que iam para o céu, e os demais, que iam para o inferno. O critério em questão era, evidentemente, a ortodoxia teológica. É claro que não era necessário ser presbiteriano para ser salvo. Era possível sê-lo mesmo não batizando as crianças ou não crendo na predestinação. Mas os limites do admissível não iam muito além disso.

Embora essa concepção possuísse um horizonte nitidamente estreito, como não poderia deixar de ser vindo de uma criança, ela já continha em si o germe do seu futuro crescimento: a percepção de que ao menos alguma pluralidade de idéias e de instituições era possível dentro do cristianismo autêntico. Já no fim da adolescência, estudando história, descobri que a doutrina não nasceu pronta, e que a formulação de muitos pontos dela foi fruto de intensos debates, em boa parte dos quais não havia razão para duvidar que ambos os lados eram defendidos por cristãos sinceros e piedosos. Mesmo com relação à Reforma e todos os debates e contendas que se produziram em torno dela, logo vi que era ingênua demais a suposição de que um lado contava com todos os cristãos sinceros, inteligentes e bem intencionados e o outro com todos os hipócritas, estúpidos e egocêntricos. E, estudando melhor a história dessas controvérsias, bem como o pensamento católico em geral, logo fui obrigado a abandonar também a noção de que todos os clérigos que permaneceram fiéis ao Papado o fizeram apenas por ignorância, comodismo ou covardia, muito embora esse reconhecimento não tenha me levado a concordar com eles.

Na verdade, a presença contínua do corpo de Cristo, a Igreja invisível, neste mundo, desde a ascensão do Senhor até seu futuro retorno, é um ponto explícito na teologia protestante. Isso bastaria para concluir, diante da inexistência de protestantes até o século XVI, que provavelmente houve ao longo da história muitos nestorianos, ortodoxos e católicos romanos que desfrutaram de uma real comunhão com Deus. E se tais existiam até meio milênio atrás, não há razão para que não possam continuar existindo, já que o conteúdo doutrinário dessas igrejas permanece essencialmente o mesmo. Mas só percebi isso bem depois de ter constatado o óbvio, ainda no começo da minha adolescência: a existência de pessoas com concepções teológicas impecáveis que, não obstante, estavam muito longe de conhecer e viver de fato aquilo que pregavam. Tendo notado que a correlação entre ortodoxia e proximidade em relação a Deus, num sentido mais amplo, não era tão alta quanto eu supunha, pude finalmente deduzir que, se há tantas pessoas com idéias corretas e vidas erradas, é bem possível que haja também pessoas com idéias erradas e vidas corretas, ou seja, atitudes corretas diante de Deus, embora acompanhadas de algumas noções equivocadas a respeito dele, noções essas que ele próprio, por alguma razão qualquer, não julgou necessário corrigir, ao menos de imediato.

Mas essa conclusão é justamente o passo que muitos protestantes não ousam dar, e que no meu próprio caso levou muito mais tempo do que seria necessário. Só pude dá-lo depois que tomei contato com alguns grandes escritores e intelectuais católicos, cuja sabedoria me fez parecer mais fácil duvidar da presença de Deus na minha própria vida do que na deles. E não me refiro apenas aos antigos, mas também aos modernos. Hoje, tendo conhecido J. R. R. Tolkien, G. K. Chesterton, Peter Kreeft, Auguste Etcheverry, Gustavo Corção e Olavo de Carvalho, para mencionar apenas alguns exemplos, sou forçado pelos fatos a reconhecer que há, sim, cristianismo verdadeiro e sabedoria espiritual genuína, enfim, que Cristo está presente também dentro da Igreja Católica, e que seu alcance é muito maior do que eu supunha na infância. Neles, e em vários outros, reconheci membros antes ignorados do mesmo corpo a que também pertenço.

Nesse quadro todo também contribuiu um elemento psicológico que não deve ser desprezado, pois também é responsável em parte pelo atual estado de incompreensão entre protestantes e católicos. Quando eu era criança, as diferenças entre as duas partes pareciam constituir um abismo intransponível pelo simples fato de que abarcavam praticamente toda a diversidade de idéias que eu então conhecia. Entretanto, depois de ter conhecido não só algumas seitas pseudocristãs, mas também o espiritismo, o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo, o budismo, o taoísmo e, principalmente, o agnosticismo e o ateísmo, quando voltei minha atenção novamente para o catolicismo, ele pareceu muito menos monstruoso do que parecia quando eu era criança. Isso se fez sentir tanto nos meus estudos filosóficos e teológicos pessoais quanto na minha vida pública, em especial depois que cheguei à universidade. Ali, a profusão de idéias tolas e doutrinas insensatas era tanta que eu não pude jamais deixar de me sentir satisfeito quando encontrava um católico praticante e sincero.

Eu disse que esse efeito é psicológico, mas obviamente há nele um elemento objetivo, pois é um reflexo direto do fato de que, por mais que as desavenças entre protestantes e católicos possam ser importantes em si mesmas, são relativamente insignificantes dentro do quadro geral das idéias em conflito no mundo de hoje. Creio que essa é a percepção que falta a muitas pessoas, ao menos nas igrejas protestantes tradicionais, para as quais o catolicismo parece ser a doutrina mais diferente da sua própria que pode existir, ao menos na prática, isto é, a mais diferente dentre as mais atuantes e significativas dentro do seu campo de visão. Porém, mesmo no século XVI, época em que já floresciam o humanismo racionalista e cultos neopagãos diversos, esse diagnóstico não seria muito exato. Atualmente, numa sociedade muito menos cristã em todos os aspectos, com inimigos se levantando por todos os lados para combater o cristianismo culturalmente, quando não fisicamente, manter essa idéia é um erro completo. No entanto, é isso o que fazem muitos membros das igrejas protestantes, e mesmo alguns de seus líderes: ignoram praticamente todo o resto e combatem com veemência as relativamente pequenas diferenças da Igreja Católica, como se fossem a coisa mais anticristã que já passou pela cabeça de alguém.

O risco que todos, de ambos os lados, corremos com isso é enorme. Se não aprendermos a discernir o estado atual da cultura moderna, se não superarmos o que resta do rancor decorrente das velhas perseguições mútuas (e esse rancor não é tão grande assim; ao menos é bem menor do que a maioria dos que observam de fora normalmente imagina) e, principalmente, se não aprendermos a ouvir a voz de Cristo também do lado de lá das trincheiras que cavamos uns contra os outros, seremos todos presas fáceis da modernidade, e nossas diferenças serão facilmente canalizadas contra nós mesmos por alguns espertalhões totalitários que odeiam o cristianismo sem distinções denominacionais. É loucura ficarmos remoendo as velhas perseguições levadas a cabo pelos inquisidores não sei quantos séculos atrás quando temos diante de nós, agora mesmo, um inimigo comum e pior que mil inquisições (é claro que o mesmo vale para as perseguições movidas por nós contra os católicos). Seremos todos esmagados de repente pelo verdadeiro adversário, que tomou nossas outrora inexpugnáveis fortalezas enquanto estávamos distraídos e desperdiçando todas as nossas energias numa briguinha de família.

11 de novembro de 2007

Bobagem quadrúpede

Dentre as várias objeções que podem ser feitas à doutrina do progresso, entendida como a idéia segundo a qual a humanidade caminha inexoravelmente rumo a um estado cada vez melhor (seja lá o que for esse melhor, já que as diversas correntes progressistas não chegam jamais a um acordo quanto a esse detalhe), poucas me parecem tão evidentes quanto o fato de que elas ignoram o poder das bobagens, em particular o das bobagens perversamente motivadas. Muitos progressistas com os quais tive contato o são por acreditarem inocentemente no poder da verdade para desalojar e exterminar o erro. Não nego que, em última instância, a Verdade tem mesmo esse poder, nem que ela o manifestará plenamente no fim dos tempos, quando tudo o mais tiver fracassado por completo. Enquanto isso não acontece, porém, o fato é que essa confiança plena na rota automática da humanidade em direção à verdade ignora um dos fatos básicos sobre a natureza humana. A falsidade de uma idéia raramente chega a ser um grande obstáculo à sua popularidade, e menos ainda à sua utilização para fins que convenham politicamente a algum grupo. Ao contrário, é perfeitamente conforme a natureza da própria situação que aqueles que têm os melhores argumentos confiem na suficiência do poder da verdade enquanto tal, e assim se disponham a vencer pela argumentação. Enquanto isso, seus opositores, possuindo uma desvantagem óbvia nesse campo, tratarão de contornar os debates e fazer prevalecer suas posições por outros meios. Só assim se explica que uma quantidade aparentemente infindável de idéias flagrantemente absurdas possa ganhar mais força a cada nova demonstração de sua imbecilidade essencial.

O caso de que vou tratar hoje, o do relativismo cultural, é um ótimo exemplo dessa situação. Como todas as outras formas de relativismo, ele é intrinsecamente absurdo por pretender-se absoluto. A forma assumida pela contradição nesse caso específico é que o relativismo cultural propõe que a moralidade é apenas uma construção cultural. Não havendo critério para decidir o que é certo ou errado além do consenso da comunidade, segue-se que é errado julgar moralmente outras culturas. Para notar a incoerência dessa idéia, basta imaginar o que dirá o defensor dessa idéia diante de uma cultura que considera certo fazer esse tipo de julgamento moral. Como se vê, esse relativismo é uma impossibilidade lógica pura e simples, e não são necessárias mais de três linhas para demonstrar isso. Embora seja inútil como descrição da realidade, porém, ele é útil para outros fins, já que oferece orientações práticas, ou melhor, justificativas postiças para a adoção de certas práticas. Sim, pois a utilidade de todos os relativismos, assim como de todos os ceticismos, reside justamente no fato de que na prática eles jamais são empregados imparcialmente contra todos os lados envolvidos numa disputa. E o relativismo cultural, em virtude de sua própria esterilidade intelectual, converte-se automaticamente em instrumento de propaganda ideológica contra as culturas opressoras, tirânicas, imperialistas, e em favor das injustiçadas, minoritárias e perseguidas. Em outras palavras: contra a cultura judaico-cristã, européia, norte-americana e capitalista, contra a cultura islâmica tradicional e em favor de todas as demais, em especial as indígenas de todo o mundo, tão caras aos antropólogos modernistas.

Assim, nota-se que, em virtude dos fins políticos a que se propõe, o relativismo cultural é levado naturalmente a uma dicotomização das culturas que é, em teoria, o oposto exato dele mesmo. Não possuindo qualquer valor racional, ele opera no plano da mera retórica (na acepção vulgar do termo, e não no seu nobre sentido aristotélico) que, tendo dividido as culturas em duas categorias, "boas" e "ruins", tende a compará-las entre si através do justíssimo expediente de ressaltar tudo o que há de bom nas primeiras e de ruim nas últimas. O resultado é o que considero uma das mais pueris de todas as dicotomizações da realidade humana: a dos bons contra os maus, que jamais deveria exceder o universo dos filmes de bangue-bangue. É algo no mínimo aparentado ao mito do "bom selvagem", tão ardorosamente defendido por Rousseau que quase convenceu Voltaire de que o melhor a fazer era andar de quatro (segundo declaração, obviamente irônica, desse farsante iluminado). Tal concepção, muito ao gosto de diversas modas culturais e intelectuais que têm surgido no Ocidente ao longo dos últimos séculos, perpetua-se por meio das mais flagrantes omissões, distorções e inconsistências, das quais darei a seguir apenas uns poucos exemplos:

1. O conquistador espanhol Hernán Cortez é até hoje lembrado como um genocida cruel a serviço de uma nação de gananciosos, que colocou os povos indígenas uns contra os outros e provocou a destruição de uma linda e próspera civilização. O que pouca gente sabe é que a destruição dos astecas foi realizada, contra a vontade de Cortez, por iniciativa dos próprios índios que se aliaram a ele, os quais gemiam sob o pesado jugo daqueles. Dezenas de milhares de vidas humanas eram sacrificadas anualmente nos rituais religiosos astecas, e as vítimas eram recolhidas dentre esses mesmos povos vizinhos que depois auxiliaram os espanhóis. Mas é claro que, relativisticamente falando, o império espanhol era terrível, e o asteca era maravilhoso.

2. Aqui mesmo no Brasil o infanticídio é praticado freqüentemente, tendo resultado na perda de duzentas e uma vidas humanas entre 2004 e 2006, apenas entre os ianomâmis, um dos treze (ou mais) grupos indígenas que mantêm esse costume. Tendo sido cruelmente desalojados de suas terras pelos invasores brancos, e possuindo uma cultura diferente de qualquer outra, os nativos encontram-se livres da obrigação de submeterem-se à Constituição que rege a vida de todos as demais pessoas presentes no território nacional, brasileiras ou não. A Funai e certos antropólogos politicamente corretos consideram isso perfeitamente justo, ao mesmo tempo em que condenam qualquer um que se atreva a tentar impedir tais práticas, mesmo que através do diálogo ou da assistência médica às vítimas. Em contrapartida, o relato bíblico sobre o sacrifício de Isaque por seu pai Abraão (que, aliás, nem chegou a acontecer), é de uma maldade inominável.

3. Por falar em infanticídio, a monstruosa ignorância dos inquisidores medievais, que queimavam mulheres porque criam tratar-se de bruxas, é uma coisa lamentável com conseqüências terríveis, enquanto o costume de certos povos da Nova Guiné de eliminar um dos filhos gêmeos, com base na crença de que era um demônio disfarçado, é apenas uma interessante curiosidade antropológica.

4. Contrasta também com a maldade desses mesmos inquisidores para com as pobres bruxas a atitude de muitos dos nossos antropólogos e sociólogos frente ao candomblé e outras lindíssimas religiões afro-brasileiras que incluem em seu corpo de rituais alguns que, garantem seus praticantes, são eficazes em produzir a morte de indivíduos indesejados. Mas nisso, pelo menos, nossos relativistas são coerentes: tanto no caso antigo quanto no contemporâneo, eles estão sempre do lado das bruxas.

Evitei propositalmente, nos exemplos acima, falar de aspectos culturais referentes a condutas sexuais, direitos de propriedade, tratamento dispensado às mulheres, escravidão e muitos outros, para concentrar-me apenas nas violações do direito à vida, que é evidentemente o mais fundamental dentre todos os direitos humanos. Cabe ressaltar, aliás, que essa posição privilegiada do direito à vida em relação aos demais só é conhecida e aceita no Ocidente por ser esse um valor herdado do cristianismo, e desconhecido por completo em quase todas as demais culturas, antigas ou modernas, civilizadas ou não, inclusive essas que são hoje tão ardorosamente defendidas pelos relativistas de plantão. O fato é que eles são obrigados a utilizar os valores centrais do cristianismo para condenar a cultura cristã, já que dificilmente poderiam fazê-lo a partir dos valores centrais das culturas que defendem. Se tentassem fazê-lo, resultaria daí um relativismo cultural autêntico que, embora não fosse menos contraditório, seria inútil para fins de propaganda ideológica e, portanto, politicamente inócuo. A própria condenação das mortes causadas pela civilização ocidental só é possível porque ela possuía um conceito da dignidade humana ausente em quase todas as demais culturas, assim como só se pode chamar de "roubo" a colonização européia das Américas porque os europeus tinham o conceito de soberania dos estados nacionais, coisa que jamais passou pela cabeça dos ameríndios, os quais viviam de fazer guerras e tomar territórios uns dos outros sem qualquer preocupação dessa ordem. Embora poucos o percebam, na própria condenação proferida pelos relativistas existe uma homenagem velada às culturas amaldiçoadas por eles.

É essa desproporção dos julgamentos, essa duplicidade na aplicação dos valores, que considero terrível acima de tudo. E, de certa forma, as condenações a um dos lados são menos condenáveis que as absolvições do outro. Posso compreender perfeitamente, e concordar em muitos casos, quando alguém critica as Inquisições, os conquistadores espanhóis, os colonizadores europeus em geral e muitas outras pessoas, grupos e atitudes. Posso entender, embora não concorde, quando se afirma que todos eles eram maus. O que não consigo entender de jeito nenhum é a idealização quase idolátrica do outro lado, como se todos os que se opusessem aos "maus" se tornassem bons apenas por isso. A guerra entre Hitler e Stalin é a melhor demonstração histórica de que dois homens podem lutar entre si sem que seja necessário supor que um deles é sequer minimamente bom ou bem intencionado. Quem imagina que os povos primitivos são habitantes tardios do Jardim do Éden, que andam sem roupas por serem inocentes como eram Adão e Eva antes da Queda, que não se preocupam senão em levar uma vida virtuosa e em harmonia com a natureza entre uma baforada e outra do cachimbo da paz, que se conduzem pela mais pura sabedoria e vivem numa sociedade absolutamente igualitária, que praticam uma religião simples e inofensiva, simplesmente desconhece a realidade desses povos, assim como desconhecem a realidade os que preferem as versões mais civilizadas, como o Império Asteca. O relativismo cultural é tanto causa quanto conseqüência da decadência da inteligência e da virtude. No dia em que todos se convencerem dessas bobagens, estaremos próximos de um destino muito pior do que andar de quatro.