8 de abril de 2007

Um vislumbre do inferno

"Há algo singularmente significativo no uso que o jornalismo faz de seus arquivos biográficos. Ele nunca pensa em noticiar a vida até o momento de noticiar a morte. E ele lida com instituições e idéias da mesma forma com que lida com indivíduos. Depois da Grande Guerra o público começou a ouvir sobre a emancipação de todos os tipos de nações, mas nunca tinham lhe dito uma palavra sobre o fato de estarem escravizadas. Fomos chamados a julgar a justiça dos acordos quando nunca nos haviam deixado ouvir sobre a própria existência das disputas. As pessoas achavam pedante falar sobre os épicos sérvios e preferiam falar sobre a nova diplomacia da Iugoslávia; e estavam muito excitadas com algo que chamavam Tchecoslováquia sem aparentemente jamais terem ouvido falar na Boêmia."

Com estas palavras, Chesterton lançou sua crítica àquele hábito jornalístico que ele denominava "fofoca da história". Tenho mais de uma boa razão para iniciar este post com essa citação, mas não pretendo falar sobre jornalismo, nem sobre a Europa, e tampouco sobre história. Estou começando a perceber (e não estou muito satisfeito com isso) que sou muito bom em começar escrevendo acerca uma coisa qualquer e então mudar completamente de assunto. Mas nisso também sigo Chesterton, que escreveu as palavras acima como introdução a um capítulo de uma biografia de São Francisco de Assis. E, de qualquer forma, isso não deixa de servir ao meu propósito, que é o de apontar que a verdade enunciada por Chesterton é válida em domínios muito mais amplos que o do jornalismo. Nós, enquanto indivíduos temporais e históricos, estamos sujeitos a uma série de contingências que, inevitavelmente, tornam nosso próprio caminhar pela estrada do conhecimento muito mais sinuoso e desordenado do que os livros escolares poderiam dar a entender.

Esse é um dos principais motivos pelos quais eu gosto de relatos autobiográficos (contanto, é claro, que seus respectivos protagonistas tenham algum conteúdo a transmitir). O conhecimento é algo que se constrói ao longo da vida a partir dos diversos níveis da experiência individual. Sendo assim, torna-se de grande importância reconstituir fidedignamente a história das próprias idéias e percepções. E aprender a partir das experiências alheias, seja pela semelhança ou pelo contraste, é no mínimo um exercício interessante e útil (e não apenas do ponto de vista estritamente intelectual). Quem quer que se proponha a fazer isso logo notará a importância que as referências ocasionais a algo que não pertence ao assunto principal do momento, as percepções súbitas e inesperadas e os caminhos alternativos sugeridos pela nossa própria imaginação; enfim, todos esses fenômenos concretos da consciência, que dificilmente poderiam ser adivinhados por um observador externo, são decisivos na formação de uma personalidade.

Assim, o fenômeno que Chesterton denuncia (corretamente, no meu entender) como um aspecto indesejável no jornalismo é, ao mesmo tempo, um fato incontornável no labor filosófico. Conseqüentemente, uma filosofia que não leve em conta esse fato básico que está por trás de sua própria formulação estará, fatalmente, deixando de fora algo importante. O mínimo que se pode dizer é que o perigo de cair num esquema abstrato qualquer, desviando-se cada vez mais do que é relevante ou mesmo essencial, torna-se uma tentação constante. Ao longo da história das idéias, algumas correntes mantiveram-se bem longe desse perigo, enquanto outras caíram nele em maior ou menor grau.

Essas considerações bastam para descrever a única coisa que considero boa no existencialismo: depois de não sei quantas gerações em que reinaram o idealismo, o racionalismo, o positivismo e outras escolas dessa classe, ele representa um movimento saudável de volta à valorização da personalidade e da subjetividade. Nisso, porém, não há nada novo. A subjetividade foi desprezada por amplos segmentos da filosofia moderna, e mesmo os escolásticos puseram de lado, até certo ponto, o aspecto histórico e pessoal da busca pela verdade. Mas a patrística, tanto grega quanto latina, fez muito bom uso dessas características, e assim também o fez a tradição mística da Europa medieval e da Igreja Ortodoxa oriental, só pra citar uns poucos exemplos. Olhado sob esse aspecto, o existencialismo é apenas uma caricatura moderna e mal feita da sabedoria dos antigos. O que há de bom em seus maiores expoentes pode ser encontrado em muito melhor estado nas Confissões de Santo Agostinho.

Sören Kierkegaard, o iniciador dessa coisa toda, tinha em mente um propósito muito nobre: combater o racionalismo estéril e abstrato de Hegel e restaurar o lugar de honra à fé cristã que ele sinceramente professava. O problema é que ele resolveu fazer isso aceitando, contra toda a tradição do pensamento cristão, a contraposição kantiana entre fé e razão, que até hoje quase todos os ateus e agnósticos aceitam como a definição perfeita da essência da religião. É natural e compreensível que eles não saibam do que estão falando, mas é simplesmente lamentável que um cristão inteligente como Kierkegaard tenha feito tamanho esforço na tentativa de escapar de Hegel apenas para, no passo seguinte, cair na armadilha preparada por Kant. Resultou daí a convicção de que a razão é algo que atrapalha, e que os verdadeiramente interessados numa vida de santidade e comunhão com Deus deveriam deixá-la de lado e conformar-se com o absurdo. "Credo quia absurdum" ("creio porque é absurdo"), que antes era apenas um artifício retórico, tornou-se o lema literal da nova teologia. Pela primeira vez na história do cristianismo Cristo deixou de ser a encarnação do Logos divino, e o fundamento último da realidade tornou-se inteiramente absurdo.

Obviamente, esse é o jeito menos promissor possível de se dar início a uma escola filosófica. Mas ainda podia piorar, e foi o que de fato aconteceu. O pensamento de Kierkegaard era uma deformação grosseiramente equivocada da tradição mística cristã, mas ainda era movido por um esforço moralmente genuíno e espiritualmente sincero. No século XX, porém, a linha principal do existencialismo se tornou irreligiosa, e o que havia de bom nesse sentido parece ter se conservado apenas em Gabriel Marcel. Houve a influência de Nietzsche, outro devoto do absurdo que mantinha, além disso, um enorme desprezo pela virtude moral.

Passando por Martin Heidegger, o resultado desastrosamente acabado disso tudo foi visto em Jean-Paul Sartre, que personifica ainda hoje o espírito existencialista. Indo além de Kierkegaard, eles pretenderam construir uma teoria geral sobre o ser baseando-se tão somente nas sensações mais subjetivas e mais dificilmente comunicáveis do ser humano. Aquilo que os racionalistas desprezavam foi considerado pelos existencialistas como a única coisa não desprezível. Na ânsia por escapar do erro daqueles, estes se dirigiram diretamente ao erro oposto.

Esse extremismo se manifesta também em outros aspectos fundamentais do pensamento de Sartre, como na sua defesa apaixonada da liberdade e da responsabilidade do homem por seu próprio destino. Mas essa causa, que poderia ser nobremente defendida não só enquanto experiência concreta como também do ponto de vista puramente moral, acabou sendo defendida por razões essencialmente imorais. A liberdade que Sartre desejava é a do criminoso que não quer ser punido, ou pior, a revolta pura e simples contra o universo. Ele queria se ver livre de tudo que o impedisse de ser seu próprio Deus. É o egoísmo diabólico de Nietzsche ressurreto, o super-homem que se julga acima da misericórdia e da justiça.

A invenção de um conceito ontológico tão absurdo quanto a precedência da existência sobre a essência de fato só se explica mesmo por esse desejo insano de sobrepor-se à própria estrutura da realidade ao invés de submeter-se a ela. Trata-se de uma forma de anarquia que vai muito além da rebelião contra as leis do Estado: é uma rebelião contra as leis da natureza, as leis morais e mesmo as leis da lógica. Levando até o fim esse raciocínio, Sartre chegou à conclusão absurda de que não existe tal coisa como uma "natureza humana", restando apenas a cada homem a tarefa de construir sua própria natureza como lhe parecer mais desejável. E foi Chesterton, mais uma vez, quem definiu corretamente o problema com isso:

"O anarquismo nos pede para sermos artistas audaciosamente criativos e não nos preocuparmos com leis e limites. Mas é impossível ser um artista e não se preocupar com leis e limites. Arte é limitação; a essência de todo quadro é a moldura. Se você desenha uma girafa, deve desenhá-la com um pescoço comprido. Se você, à sua maneira audaciosamente criativa, se mantiver livre para desenhar uma girafa de pescoço curto, realmente descobrirá que não é livre para desenhar uma girafa. No momento em que entra no mundo dos fatos, você entra em um mundo de limites. Você pode livrar as coisas das leis alheias ou acidentais, mas não das leis de sua própria natureza. Você pode, se quiser, libertar um tigre de sua jaula, mas não o liberte de suas listras. Não liberte um camelo do peso de sua corcova: você pode estar libertando-o de ser um camelo."

Quando essas palavras foram escritas ainda não haviam surgido Heidegger e Sartre, e Kierkegaard não era conhecido. Mas munido tão somente do senso comum, como ele gostava de dizer, Chesterton previu e refutou as bobagens que o século XX teria a oferecer. E de fato todo o capítulo de onde retirei essa citação (a começar pelo seu título, O suicídio do pensamento) é quase profético em seu diagnóstico do problema intelectual da modernidade. É correto dizer que o existencialismo não se preocupa muito com a coerência lógica, mas isso não é tudo. Assim como Kierkegaard, Sartre sabia que muitas de suas teses eram ridiculamente autocontraditórias. Seu propósito não era o de entender a realidade, e sim o de impor sobre ela a sua própria vontade. Eis o significado da liberdade em seu pensamento. Eis a razão pela qual, em sua argumentação, as demonstrações lógicas mais rigorosas conviviam pacificamente com as contradições mais evidentes. Isso não é tanto a conformação com o irracional quanto a busca ativa por ele. O sensato pensador à moda antiga, ao se deparar com uma contradição em seu sistema, coçava a cabeça e punha-se, intrigado, a elaborar uma solução. O existencialista, por seu turno, apenas abre um sorriso e exclama: "Quod erat demonstrandum!"

Uma monstruosidade dessas não merece o nome de filosofia, e Francis Schaeffer estava corretíssimo em dizer que se trata na verdade de uma antifilosofia. Do ponto de vista racional, o inegociável subjetivismo torna o existencialismo incapaz de justificar suas próprias afirmações. Pois se tudo o que importa para o conhecimento da realidade é o exame de suas próprias sensações interiores, e visto que ninguém tem acesso direto à subjetividade alheia, não há meios que permitam qualquer generalização. O universal está automaticamente excluído, ainda mais quando se nega a própria existência da natureza humana. Kierkegaard tinha todo o direito de escrever um livro e chamá-lo "O desespero de Sören Aabye Kierkegaard". Estranhamente, porém, ele decidiu dar-lhe o título "O desespero humano". O existencialismo se vê o tempo todo nesse dilema: de um lado estão os que não querem fazer generalizações, e no entanto as fazem o tempo todo; do outro estão os que pretendem construir uma ontologia do ser, mas não dispõem dos elementos que a tornam possível.

Sendo assim, o filósofo existencialista, mesmo que não o perceba, só pode nos oferecer a partir de seus métodos uma análise psicológica e espiritual de sua própria pessoa. Nada garante, em princípio, que sua situação existencial corresponderá à de toda a humanidade. Ao tentar fazer seus juízos sobre o mundo, tudo o que ele consegue é dar ao mundo um retrato de si mesmo. O leitor deve julgar por si se elas correspondem ou não à sua própria realidade interior. E aqui, creio eu, reside a razão pela qual essa doutrina, a despeito de suas óbvias inconsistências, granjeou tanta popularidade numa época como a nossa. Basta examinar os termos com que os existencialistas descrevem suas experiências: o "desespero" de Kierkegaard, a "angústia" de Heidegger, a "náusea" de Sartre, o "abandono" de Jaspers.

Marcel é um caso a parte; ele parece ter sido o único a compreender a natureza humana, embora só tenha podido fazê-lo por ser o menos existencialista de todos. Os outros só têm a oferecer imagens vívidas de sua própria ruína interior. Os grandes filósofos da história sabiam que não poderia haver sucesso na busca pela verdade sem o esforço moral correspondente na mesma direção. Eis a razão pela qual os existencialistas, a despeito de suas pretensões, falharam tão miseravelmente em compreender os elementos fundamentais da natureza humana. A leitura de suas análises existenciais está entre as experiências mais horripilantes da minha vida, porque vejo nelas o que eu, pela graça de Deus, não sou, mas poderia perfeitamente ter sido. Às vezes tenho a impressão de que o inferno não poderá ser muito pior que isso; na verdade, talvez ele consista exatamente nisso. Nem Dante foi capaz de imaginar algo tão horroroso.

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