13 de maio de 2007

O triunfo do carpe diem

Escrever comentários sobre obras de literatura é algo difícil, especialmente se eles forem dirigidos a leitores que não necessariamente leram o livro comentado. Não, é claro, que seja difícil escrever algo que simplesmente leve os outros a terem vontade de ler o livro, ou mesmo a terem vontade de passar longe dele. Mas fazer uma análise justa e completa do mesmo, dizer exatamente o que se aprendeu com ele sem aludir às especificidades da narrativa é algo freqüentemente difícil, se não impossível. Essa é uma das principais razões pelas quais decidi escrever hoje um breve comentário sobre o Admirável mundo novo (Brave new world), o livro mais amplamente conhecido de Aldous Huxley: além de ser uma excelente ficção literária, tem essa rara característica que faz com que a lição mais importante a extrair dele não se baseie em nenhum acontecimento específico na vida dos personagens, mas sim no próprio ambiente em que os acontecimentos se desenrolam.

Utilizo aqui a palavra "ambiente" no sentido mais amplo possível, e o autor o descreve de maneira muito inteligente e precisa. Ainda assim, não deixa de ser verdade que abordarei o livro de uma perspectiva apenas parcial, embora eu creia que se trata de sua parcela mais importante. Não é meu objetivo comentar as idéias do autor, sobre as quais eu conheço bem pouco e não gosto quase nada do pouco que conheço. Aliás, Huxley escreveu um outro livro, Regresso ao admirável mundo novo, no qual expõe suas opiniões sobre uma série de questões intelectuais sérias abordadas ficcionalmente no livro. Mas não li esse segundo livro, e essa é uma das razões pelas quais não me animo a discorrer sobre as idéias do autor; limito-me a contar uma das coisas que aprendi lendo um de seus livros. Embora eu tenha a impressão de que ele concordaria ao menos com a essência da minha conclusão, esse fato não possui importância alguma no momento.

O Admirável mundo novo pode, creio eu, ser considerado uma obra de ficção científica. Não que as descrições dos avanços científicos e tecnológicos estejam em primeiro plano. Mas eles formam o substrato sobre o qual se assenta toda a realidade imaginada pelo autor, a qual consiste numa sociedade futurista em que a ciência logrou eliminar praticamente todos os sofrimentos (não direi todos os males, porque os dois conceitos são obviamente muito diferentes). Todos os seus habitantes desfrutam de prosperidade, prazer à vontade e estabilidade em todos os aspectos. Não há miséria, nem violência, e as doenças foram controladas. A velhice é bem disfarçada de modo que as pessoas mantêm a aparência e a saúde da juventude até os sessenta ou setenta anos, quando finalmente morrem. Até incômodos menores como a gravidez foram abolidos, pois os novos seres humanos são produzidos em verdadeiras linhas de montagem. Por isso mesmo, inclusive, não existem famílias nem qualquer coisa equivalente, e portanto nada que possa trazer aquele tipo de sofrimento que deriva dos atritos normais causados pela intimidade entre as pessoas. Também não há, é claro, relacionamentos amorosos estáveis, de modo que todos podem desfrutar devidamente dos prazeres sexuais sem qualquer restrição moral ou mesmo social. As ciências da mente e do corpo também progrediram incrivelmente, tornando possível um planejamento eficiente e orgânico da sociedade, de forma que cada um tem uma função útil a desempenhar e se satisfaz com ela. Assim, por exemplo, os indivíduos destinados a se tornarem ascensoristas recebem desde a infância uma educação e um tratamento psicológico (cujos métodos, aliás, são muito mais poderosos que os que utilizamos hoje) que os levam a se sentirem bem em ambientes apertados e com iluminação totalmente artificial, enquanto um futuro administrador é induzido a gostar de trabalhos que exigem bastante da inteligência e é tratado de forma a adquirir a capacidade intelectual necessária. A conseqüência natural disso é a divisão da sociedade em castas, pois a especialização e a divisão de trabalho são essenciais para o funcionamento de qualquer organismo. E, caso alguém ainda consiga se sentir ocasionalmente frustrado ou entediado, a despeito de todos os prazeres disponíveis e do condicionamento psicológico que faz com que cada um adore ser quem é, estar onde está e fazer o que faz, resta sempre o recurso às drogas, nas quais se diluem todas as ansiedades restantes.

É esse o cenário contra o qual se desenvolve a narrativa, que consiste na complicada história de umas poucas pessoas que, por razões diversas, não conseguem se ajustar bem a esse elegante sistema. Mas a narrativa parece-me muito menos interessante que o cenário, chegando a parecer que aquela não é muito mais que um pretexto para a apresentação deste. Muito poderia ser dito acerca do mundo imaginado por Huxley do ponto de vista filosófico, científico, psicológico, antropológico, teológico ou mesmo político. Em especial, seria interessante saber se nosso mundo caminha para algo parecido com isso ou para algo totalmente diferente (como, por exemplo, a realidade retratada no 1984, de Orwell) ou diferente em apenas alguns aspectos, restando, portanto, discutir quais seriam eles. Ao menos um esboço dessa análise poderia ser feito através da comparação do mundo atual com o de 1932, data da publicação do livro. Talvez um dia eu me aventure a fazer uma análise desse tipo. Não a faço agora simplesmente por considerar essa tarefa muito superior à minha capacidade. Minha proposta imediata é muito mais modesta, porque o tema que desejo considerar é muito menos abrangente.

A questão é que há um contraste marcante entre o grau de prosperidade e felicidade alcançado naquela sociedade e a reação que sua descrição desperta no leitor. Os gênios que planejaram aquele mundo conseguiram resolver todos os problemas, reduzindo a praticamente zero não só as mazelas sociais como também todos os tipos de sofrimento que o homem pode experimentar. Ali os habitantes se gabam de viver numa sociedade em que todos são felizes. E eles têm razão: do ponto de vista da satisfação pessoal, é difícil levantar uma só objeção contra aquele estado de coisas. As pessoas são felizes, úteis umas às outras, vivem uma vida de muito prazer e praticamente nenhuma dor. O mundo funciona tão bem quanto um relógio, tanto no todo quanto em cada uma de suas partes. Se o bem comum, a felicidade, entendida como ausência de sofrimento, é o critério pelo qual a vida humana deve se pautar, então o leitor de Huxley tem diante de si a solução perfeita. A ciência, devidamente orientada e aplicada, resolveu todos os problemas. Alguns de nós podemos não gostar de certos aspectos daquela sociedade, como a ausência da vida em família, a libertinagem do sexo e das drogas ou mesmo a incontornável desigualdade entre as pessoas de diferentes castas. Mas o cidadão imaginário desse mundo teria todo o direito de rejeitar essas objeções como mero sentimentalismo retrógrado. Afinal de contas, a supressão da intimidade e da igualdade e a glorificação do prazer serviram para resolver todos os problemas: agora todos são felizes e satisfeitos, enquanto que no nosso mundo reina um imensurável sofrimento. Obviamente, concluiria aquele cidadão, esse foi um preço que valeu a pena pagar.

Entretanto, esse argumento prático irrespondível não convence. Tenho a impressão de que muito pouca gente preferiria viver num mundo assim. Mas nisso, é claro, só posso falar por mim mesmo. O mundo novo de Huxley não tem, para mim, muito que se possa admirar. Cabe ressaltar que eu o descrevi de maneira um tanto resumida, seca e direta, mas o autor, que dispunha não só de muito mais espaço como também de uma habilidade literária muito superior, faz essa mesma descrição de maneira muito mais detalhada, vívida e contínua. O resultado que ela produziu em mim foi uma sensação crescente de confinamento e escuridão. Não duvido, é claro, que eu poderia ser feliz naquele mundo, desde que fosse submetido ao mesmo preparo psicológico que seus habitantes enfrentavam. Mas para isso, é claro, seria necessário abrir mão de algum elemento constituinte da minha natureza.

Na verdade, essa é talvez a única objeção que se pode levantar contra aquele sistema: ele só funciona porque desumaniza o ser humano, o reduz a alguma outra coisa, interfere na sua natureza e a transforma em algo mais adequado a propósitos muito mais estreitos: a eficiência do mundo, entendida como a prosperidade e felicidade de seus membros, o que no fim das contas é apenas multiplicar o prazer e eliminar a dor. Mas sendo impossível, dentro do conjunto de pressupostos dessa filosofia grosseiramente hedonista, moldar o mundo de modo a satisfazer os anseios do homem, torna-se necessário moldar o próprio homem, condicionando-o a satisfazer-se com o que lhe é oferecido e esquecendo quaisquer aspirações superiores que ele pudesse ter até então. Para funcionar tão perfeitamente quanto um relógio, a sociedade precisou tornar-se tão banal quanto um relógio, tanto no todo quanto em cada uma de suas partes. O resultado é uma sociedade em que todos são de fato felizes, a comunidade realmente é bem estruturada e progride eficientemente, mas os elementos humanos deixaram de fazer parte disso tudo há muito tempo. Os homens são apenas um pouco mais felizes que as formigas, e o progresso da sociedade humana não é muito superior ao de um formigueiro. Isso no sentido meramente quantitativo, é claro. Qualitativamente não há diferença alguma.

No entanto, qualquer ser humano que saiba algo minimamente relevante acerca de si mesmo compreende que somos maiores que tudo isso, e que temos diante de nós possibilidades de sucesso ou fracasso, de felicidade ou pesar, de prazer ou sofrimento, que não são acessíveis a uma comunidade de insetos. O Admirável mundo novo retrata a pobreza intelectual e espiritual à qual a humanidade se expõe ao perder a consciência de si mesma, adotando como verdadeira uma teoria que não vai além da superfície do homem, deixando de se dar conta de tudo o que há de mais importante na sua natureza. E não se trata de um risco filosófico abstrato; conheço pessoas que realmente crêem que a busca do prazer deve ser tomada como princípio norteador da vida humana. Parece não haver, no horizonte da experiência de vida dessas pessoas, nenhum elemento mais precioso e digno. E se você afirma a existência desse elemento, elas franzem a testa e continuam sem saber do que você está falando. O que Huxley nos apresenta nada mais é que um esboço de uma humanidade desumanizada, totalmente conquistada por essa forma terrível de pobreza. Talvez se possa sustentar que ali todos são felizes, mas só poderá dizer isso quem não tiver nenhuma experiência da verdadeira felicidade.

Um comentário:

Sérgio Santos disse...

Olá, André.

Muito interessante sua abordagem do romance de Aldous Huxley. Admiro muito sua capacidade analítica e, sobretudo, a consciência que você sempre demonstra dos limites que sua análise pode alcançar. Certamente se pode contribuir muito mais com uma dada leitura de uma obra se escolhemos focar um aspecto apenas e não abarcar toda sua totalidade, o que é, em todo caso, impraticável.

Nesse sentido, também percebo nessa assunção do limite da análise, nessa confissão de não ter lido mais a respeito do que se propôs a comentar, o que implica objetivos de análise mais modestos, uma demonstração de honestidade intelectual. Isso é algo que prezo bastante em você.

Penso que sua leitura de "Admirável mundo novo" é mais cuidadosa que a minha. Você tem o cuidado de desfiar a trama narrativa diante do leitor, de modo que sua avaliação da obra torna-se para este algo mais compreensível que a minha. Entenda: não faço aqui o elogio fácil ou falso, só para agradá-lo. De fato reconheço as precauções que você toma para não ficar apenas no comentário superficial e você mesmo deve ter a consciência desse processo, uma vez que, para expressar-se por escrito, acaba por produzir textos relativamente extensos, apesar de não ser o caso deste especificamente. Digo-o também sem falsa modéstia. No geral, agrada-me o ato de escrever, mas julgo que me atenho a registrar impressões sobre os livros que leio e não comentários analíticos propriamente. Trata-se de uma operação um tanto mais emocional, que, para mim, representa uma forma de conservar na memória os sentimentos que me invadiram durante a leitura.

Concordo com você que a única objeção séria ao mundo imaginado por Huxley seja a que você apontou: a inexistência de elementos humanos. Tudo aquilo que remete ao humano é ali suprimido.

Mas não creio que qualquer solução encontrada pelo homem possa fazer surgir um mundo como esse, marcado pelo prazer sem limites e destituído de todo sofrimento. Se tal fosse possível no mundo real, seria justificável o anúncio da morte de Deus. Penso que Deus não seria mesmo necessário em um mundo em que todos se sentissem plenamente felizes e onde não houvesse o sentimento de angústia diante da finitude da vida.

Sabemos para onde nos conduziu todas as ideologias que prometeram um mundo melhor...

Obrigado pela troca de experiências e pela amizade.

Um grande abraço!