23 de junho de 2007

Autocrítica literária

Pretendo escrever algum dia uma breve análise das minhas próprias habilidades e inabilidades intelectuais, no sentido mais amplo possível do termo, com base no que pude aprender sobre mim mesmo através do contato com cérebros diferentes. Mas é notável - e, por enquanto, suficiente - a minha quase total falta de criatividade, especialmente no sentido artístico dessa palavra. Minha mente é racional e analítica demais, e tenho a impressão de que só sou capaz de aprender por imitação e pela análise consciente de diferentes modelos. Em vista disso tudo, tenho um pendor natural para a prosa dissertativa em detrimento da narrativa (a poesia, então, está totalmente fora de questão - acho que uma das minhas maiores frustrações na vida é a minha absoluta incapacidade de escrever poemas, por mais horríveis que sejam).

Faz algum tempo que percebi isso, e fiz uma tentativa de encarar esse fantasma e escrever um conto. Mesmo assim, não pude deixar de seguir conscientemente alguns modelos. O objetivo era aprender a escrever narrativas que tivessem um mínimo de nexo, e de fato não fui além desse mínimo. O resultado foi um conto que chamei de Em busca de respostas: uma história escrita às pressas e muito mal revisada, sem pé nem cabeça, com mudanças súbitas de ambiente, personagens totalmente doidos, piadas satíricas improvisadas e freqüentemente idiotas, conexões mal explicadas e algo surreais. Nada surpreendente, já que tomei como modelos justamente a estrutura narrativa e o substrato psicológico dos sonhos mais esquisitos que já tive. Pelo menos não foi de todo em vão: meus poucos amigos que leram o conto garantiram que deram boas risadas, e eu cumpri meu objetivo principal, que era o de aprender a dar asas à imaginação, numa espécie de brainstorming narrativo, propositalmente inconseqüente. Embora hoje eu veja que algo de minhas idéias (inclusive algumas que então eram apenas incipientes) poderia ser inferido a partir do texto, não havia em minha mente qualquer propósito de transmitir alguma mensagem. Essa total falta de sentido na história é, na verdade, tão evidente que nem o protagonista do conto pôde deixar de percebê-la.

Depois de ter expurgado dessa forma a minha repulsa não intencional pelo gênero narrativo (isto é, no que diz respeito aos meus próprios textos, pois nunca tive objeção alguma aos dos outros), decidi me voltar para coisas mais sérias e sensatas, e foi nesse espírito que escrevi meu segundo conto, intitulado Memórias de um moribundo. O efeito que obtive foi exatamente o oposto do conto anterior. Pois este foi um conto cheio de sofrimento, melancolia, incerteza e até uma certa dose de brutalidade. Talvez alguém pudesse pensar que as crises do personagem principal fossem um reflexo das minhas próprias. Mas isso está muito longe da verdade. Dois leitores do meu conto sugeriram que havia nele uma influência de Tolkien, e nisso não estavam errados, pois ele foi de fato o modelo que adotei enquanto escrevia esse conto. Mas meus amigos estavam pensando primordialmente na riqueza descritiva do texto, pela qual eu não sinto ter qualquer mérito, já que extraí todos os dados necessários à caracterização do ambiente de um livro que nenhum dos meus amigos leu. O que eu tentei imitar no filólogo de Oxford foi, na verdade, algo muito diverso. Foram duas coisas, na verdade. Uma delas é aquilo que ele denominava "eucatástrofe", isto é, a boa catástrofe, aquela dose de dor, de insegurança, de ausência de sentido aparente que é fundamental para que as histórias, ou pelo menos as histórias sérias, tenham algum valor mais profundo. Os contos de fada, as lendas populares, os mitos e mesmo a própria literatura não teriam o valor que têm sem esse elemento psicológico que é parte essencial da constituição e da situação dos seres humanos neste mundo.

Essa influência, sem dúvida, recebi de Tolkien, mas trata-se de uma influência meramente intelectual ou, pra ser mais exato, uma questão de filosofia literária. Mas houve outra influência, mais propriamente metodológica, por assim dizer. Recebi-a ao ler o Athrabeth, um belíssimo diálogo entre uma mulher (Andreth) e um elfo (Finrod), ocorrido ainda na Primeira Era do Sol (portanto mais de seis milênios antes da aventura narrada em O Senhor dos Anéis). Os dois sábios discutiram sobre coisas como a natureza da morte, as diferentes maneiras de enxergar o mundo, os mais profundos recessos da psicologia humana (e élfica) e o fim último da existência. Até onde sei, é o texto mais profundamente filosófico e mais nitidamente cristão que Tolkien já escreveu em conexão com seu universo fictício. Porém, embora meu segundo conto também envolvesse (ou tentasse envolver) grandes questões filosóficas e psicológicas, e também tivesse um fundo cristão evidente, o que aprendi do Athrabeth para utilizar ali foi outra coisa. Pois, embora seja impossível que alguém escreva sobre tais dúvidas e dilemas sem jamais tê-los atravessado, aqui eles não indicam inquietações interiores em seu autor, mas ilustram seu caminho interior rumo a uma solução já atingida e tida como plenamente satisfatória. Tolkien faz isso, no entanto, de um modo manifestamente artístico, o que o distingue de textos puramente dissertativos como os da dialética medieval, e mesmo dos diálogos de Platão. Pois aqui o dilema envolve todo o ser, e não apenas o intelecto (o que ilustra bem a sábia distinção feita por Gabriel Marcel entre um autêntico "mistério" e um mero "problema"), e o autor reconstitui a vivência do mesmo por meio de caminhos totalmente diversos na vida de personagens que atravessaram experiências profundamente diferentes das suas próprias.

Não sei se obtive sucesso nessa minha imitação, mas logo percebi que a própria natureza do método utilizado impede que a apresentação do problema e de sua solução adquira a forma de uma exposição rigorosamente argumentativa. Tudo o que se pode fazer nesse caso é fornecer um vislumbre, um esboço do caminho a ser percorrido. E o sucesso da transmissão da mensagem está condicionado ao grau em que as experiências do leitor correspondem às dos personagens (e, por implicação, às do autor), bem como à sua capacidade de perceber isso fazendo abstração das particularidades acidentais de cada um dos casos. Tentei minimizar esse risco de incompreensão colocando em pauta problemas que me parecem ser inerentes à própria natureza humana e, portanto, presentes na vida interior de cada homem individual. Da mesma forma, sugeri soluções de aplicabilidade não menos universal, embora, naturalmente, não sejam de minha autoria. Lembrem-se, eu sou apenas um imitador.

O resultado foi até satisfatório, mas a descrição do drama do protagonista tornou o texto demasiado pesado e subjetivo, pra não dizer sério e (dependendo do estado de espírito do leitor) até um pouco deprimente, num contraste marcante com o primeiro conto. Aventurei-me então a escrever um terceiro, numa tentativa de reunir o humor inventivo, satírico e absurdo do primeiro à serenidade e ao esforço de transmitir algo valioso que se encontram no segundo. Esse conto eu chamei de Dois filósofos e uma girafa. O exemplo que resolvi seguir não poderia ser mais adequado, pois ele reflete ao mesmo tempo a profundidade literária e intelectual de Tolkien e os inocentes desvarios da mente adormecida. Refiro-me a G. K. Chesterton. No caso, a imitação foi total: foi esse mesmo escritor inglês quem me ensinou, no primeiro capítulo de um de seus livros dissertativos, o Ortodoxia, a parte principal da lição que tentei transmitir, e até algumas das metáforas que utilizei inspiraram-se nesse mesmo capítulo. Paralelamente a isso, extraí de uma ficção policial intitulada O homem que foi Quinta-feira, do mesmo autor, a idéia de apresentar conceitos filosóficos muito sérios por meio de uma narrativa propositalmente absurda ou, melhor dizendo, governada por leis próprias que não são difíceis de intuir, mas que conflitam nitidamente com os da vida real, de modo que a história seria imensuravelmente ridícula caso se desenrolasse de fato no nosso mundo.

O desafio nessa coisa toda é justamente levar o absurdo tão longe quanto possível, ou seja, desenvolver todas as conseqüências naturais e sensatas que decorrem desse absurdo fundamental sobre o qual se baseia toda a história, tratando-o o tempo todo como se fosse a coisa mais normal, respeitável e corriqueira do universo. Aclamado por muitos como o "mestre do paradoxo", mesmo pelo estilo de suas dissertações, Chesterton não tinha a mínima dificuldade em aprontar esse tipo de coisa. Não acho que eu tenha sido muito bem-sucedido na tentativa de imitá-lo, pois no fim das contas a narrativa acabou ficando estática demais, como naquela interessante peça de T. S. Eliot cujos eventos objetivos podem ser narrados em duas ou três frases (refiro-me a Murder in the cathedral). Mas não direi que o esforço foi em vão. Embora o leitor do conto possa não se beneficiar disso, eu mesmo aprendi muito com ele.

Já que estou chegando ao final do post, vou encerrar com um breve comentário sobre os finais dos contos. O que há em comum entre os três é que de nenhum se pode dizer que teve um final feliz. O final do primeiro pode até ser engraçado, e o do segundo pode, talvez, ser animador para alguns leitores, apesar de ser trágico; no terceiro, até onde posso ver, nada de bom pode ser visto, e até o seu caráter ridículo contribui para acentuar a sensação de completa ruína (ou pelo menos essa era a minha intenção). Não sei explicar devidamente a causa dessa estranha coincidência. Talvez seja mesmo mais fácil identificar erros do que propor caminhos saudáveis. Seja como for, não deixa de ser interessante o fato de que tantos finais tristes possam ter brotado de uma mente tão genuinamente feliz quanto a minha. Talvez um dia eu venha a me conhecer o suficiente para compreender a razão disso.

17 de junho de 2007

De volta aos fatos

Ultimamente tenho tido pouco tempo para manter em dia todos os meus compromissos virtuais. Além deste blog, que tento atualizar tão regularmente quanto as condições me permitem, troco e-mails com uma quantidade razoável de pessoas e participo sempre que possível de debates no orkut, geralmente com gente que nunca vi na vida. Este último hábito eu venho mantendo há uns dois anos e meio e, apesar de não estar muito ativo nisso ultimamente, não posso deixar de reconhecer que é uma experiência deveras enriquecedora. Mesmo nos piores casos, isto é, quando o interlocutor é desonesto, burro ou ambas as coisas, essa atividade serve como oportunidade de conhecer melhor as pessoas (e, por extensão, a natureza humana) e tentar fazer algo por elas, além de ser um excelente exercício de paciência, embora eu deva reconhecer que às vezes esse exercício é pesado demais para mim. Mas em algumas discussões o que lucrei foi de fato muito mais que isso, pois aprendi lições importantes sobre outros aspectos da realidade, e só por isso já posso dizer que valeu a pena. Um desses debates terminou há quase um ano, e boa parte das idéias que exponho aqui hoje me ocorreram ao longo ou em decorrência dele.

O nome do tópico em que travei essa discussão é por si mesmo bastante esclarecedor: Determinismo versus livre arbítrio. Quem porventura tenha acompanhado meus textos anteriores certamente já viu referências passageiras ao determinismo feitas em termos nada lisonjeiros. O que pretendo fazer agora é apenas justificar essas menções. É bom esclarecer, porém, que há muito mais que poderia ser dito contra o determinismo, especialmente quanto a suas conseqüências práticas para a humanidade do ponto de vista moral. Algum dia pretendo voltar a esse ponto e completar minha crítica. Por enquanto limito-me a uma crítica puramente filosófica dos seus fundamentos. Mas antes de expor os argumentos, cumpre esclarecer exatamente o que entendo por "determinismo", e assim distinguir o que está em discussão do que não está. Nos debates teológicos, por exemplo, a expressão "livre arbítrio" aparece quase sempre vinculada ao tema da predestinação, por isso é bom que eu esclareça que não a emprego no sentido que adquire nesse contexto. Utilizo-a como afirmação da possibilidade de o homem fazer escolhas reais, ou seja, sem coerção externa absoluta, com todas as conseqüências que isso acarreta.

Esse é o sentido exato do conceito que pretendo abordar aqui. Mas a palavra "determinismo" tem uma outra acepção comum, de modo que convém discuti-la brevemente. Refiro-me ao determinismo em seu sentido mais absoluto, aquele que abordei no post A ciência das causas ocultas, e que abrange, por exemplo, a mecânica de Newton e a interpretação de Einstein da mecânica quântica. Naturalmente, essa concepção está incluída naquilo que pretendo combater aqui, pois se o estado do universo é determinado univocamente em função dos estados anteriores, e se o homem é parte do universo assim como todo o resto, segue-se logicamente que o homem não tem de fato liberdade alguma. Entretanto, seria um equívoco supor que a mera negação desse determinismo no estilo newtoniano implica na existência do livre arbítrio. O máximo que se pode dizer é que o formalismo quântico o torna possível sem exigir uma violação das leis físicas fundamentais. Mas se o homem for constituído de pura matéria, não há nada nele que o capacite a colocar-se acima do processo cego e aleatório da redução do pacote de onda e influenciar as ações de seu próprio corpo. Por isso o materialismo, seja ele determinista ou não no sentido laplaciano, é necessariamente determinista no sentido de que não oferece lugar algum ao livre arbítrio.

Refutar o determinismo resulta, portanto, em refutar o materialismo e, muito embora haja também filosofias deterministas que não são materialistas, como a de Spinoza, a versão materialista tem sido a mais difundida. Essa posição, entretanto, é claramente autocontraditória, pois implica em reduzir a reações químicas ocorridas no cérebro todos os fenômenos da consciência humana, incluindo-se aí nossos pensamentos e sensações de modo geral. Sendo assim, a afirmação de que os processos intelectuais da mente do homem também são meras expressões de fenômenos físicos e químicos é uma conclusão natural e coerente com o materialismo. Mas se todas as sensações são redutíveis à química, também o é a sensação de convicção de que algo é verdadeiro ou falso. A conclusão de que certa idéia é verdadeira não tem, assim, relação alguma com a verdade das coisas, sendo apenas o resultado de uma série de processos químicos inevitavelmente desencadeados no cérebro e que produzem uma determinada sensação. Ao acreditar numa afirmação qualquer, o cérebro materialista está simplesmente sendo uma vítima das circunstâncias. Portanto, visto que nossa sensação de convicção, por mais forte que seja, nada nos diz sobre a verdade de um enunciado, segue-se que não podemos coerentemente afirmar que algum enunciado é verdadeiro. Não podemos afirmar, por exemplo, que o materialismo é verdadeiro. A contradição é óbvia. Se for excluído o elemento imaterial da mente, sua capacidade de atingir a verdade através da comunhão com o Logos, resta apenas o ceticismo absoluto dos velhos sofistas, incapaz de justificar até a si próprio.

Há outras questões, porém. O materialismo, pelo visto, pode ser refutado pela análise de suas conseqüências, a qual resulta num perfeito reductio ad absurdum. Mas refutar o materialismo não é refutar o determinismo e, além do mais, existem outros problemas filosóficos com este último. O principal deles, creio eu, é a falta de consideração pela experiência humana ou, dizendo de outra forma, o apego idolátrico a uma modalidade específica dessa experiência em detrimento de todas as outras. Discuti esse problema num outro texto, Crianças mutiladas, onde expliquei a razão pela qual esse me parece ser o erro fundamental presente em toda forma de reducionismo, materialista ou não. Volto a tocar nesse assunto porque, como eu disse naquela ocasião, o determinismo é apenas um dentre os muitos destinos possíveis a que leva o modo reducionista de pensar.

Existem diversas maneiras de se obter conhecimento sobre os multiformes aspectos da realidade, entre as quais se encontram o método experimental (como nas ciências da natureza), o pensamento abstrato (como na matemática e na metafísica), a atenção ao depoimento de testemunhas (como na teologia, na história e nos julgamentos judiciais) e a experiência subjetiva (como no autoconhecimento, bem como na psicologia e na antropologia filosófica), entendida não apenas no sentido existencialista, mas incluindo, de maneira geral, a apreensão direta da realidade pela consciência individual. Quem prestar alguma atenção, por mais ínfima que seja, a este último ponto e examinar sua própria experiência perceberá imediatamente que o livre arbítrio, a liberdade de escolha, é um traço fundamental do homem, ou pelo menos assim parece. Para contornar esse fato, o determinista precisa subordinar sua experiência imediata de si mesmo a algum método de conhecimento que considera mais confiável, seja este de natureza científica ou filosófica. Fazendo isso, ele pode concluir que não há espaço para a idéia da liberdade humana nesse contexto, e então retornar à sua experiência dessa mesma liberdade para explicá-la como sendo mera ilusão derivada de suas imperfeições cognitivas ou algo do tipo. O rapaz com quem debati, por exemplo, acreditava, citando Spinoza, que nossa sensação ilusória de liberdade deve-se à nossa ignorância acerca das causas reais subjacentes às "escolhas".

Esse tipo de raciocínio é evidentemente uma inversão devida, por um lado, à incompreensão da natureza da própria reflexão filosófica e, por outro, da natureza da experiência subjetiva em discussão. Posso acrescentar ainda um terceiro problema, que é o desprezo pelos elementos conflitantes da constituição humana e da própria natureza, resultando numa dicotomia demasiado radical e no desprezo por um dos seus extremos conceituais. Nos parágrafos seguintes vou explicar melhor esses três problemas, e vou fazer isso na ordem inversa a esta em que acabo de enunciá-los.

O debate entre materialismo e idealismo no século XIX é um bom exemplo dessa opção desnecessária por um extremo em detrimento do outro. Pois enquanto os idealistas levaram a precedência da mente sobre a matéria a ponto de negar a própria objetividade da realidade exterior, ou pelo menos a nossa capacidade de conhecê-la, os materialistas julgaram que a correção desse exagero os autorizava a rejeitar como ilusão idealista qualquer constituinte não material da mente. É o que se vê, por exemplo, nas críticas de Feuerbach e Marx à filosofia de Hegel. No caso, o problema de trocar um extremo pelo seu oposto foi agravado pela ausência da percepção de que os dois extremos eram justamente isso, extremos de uma gradação contínua de posições filosóficas possíveis, e não as duas únicas existentes. Os deterministas freqüentemente cometem um erro análogo (e conceitualmente relacionado) quando supõem que a liberdade, para existir, deve ser tão irrestrita quanto apregoado pelo delírio de Sartre. Naturalmente nenhum defensor minimamente sensato do livre arbítrio jamais negou que há uma infinidade de fatores, tanto internos quanto externos ao indivíduo, que limitam severamente seu campo de possibilidades de ação. Mas seria um absurdo primário deduzir daí que esses fatores representam uma coerção total, absoluta e irremovível em todos os atos humanos. A forma lógica dessa conclusão pode ser descrita assim: "Não sou livre para decidir andar até a lua, portanto também não sou livre para decidir andar até a esquina."

O segundo erro a que me referi acima consiste na confusão entre a experiência e a reflexão sobre a mesma. É o que ocorre quando afirmo que sinto ser livre e o determinista replica que isso se deve à minha ignorância sobre as reais causas de minhas ações. Ora, a minha sensação de liberdade não tem nada de intelectual. É uma experiência de outro tipo, algo mais parecido (embora não do mesmo tipo também) com as percepções provenientes dos sentidos, é algo como um "sentido interno", por assim dizer. Muito poderia ser dito sobre a teoria psicológica implícita na concepção determinista, mas, para encurtar a conversa, apenas assinalarei que esse argumento nada mais é que uma mudança de assunto. A minha sensação de liberdade não é o resultado de uma busca intelectual frustrada pelas causas das minhas ações, e sim algo que precede toda essa racionalização. Que as duas coisas são absolutamente diferentes é algo fácil de perceber mediante a constatação de que há no mundo muitos eventos cujas causas eu desconheço completamente, sem que isso gere em mim alguma sensação de tê-los provocado.

Mas o maior problema de todos, o mais fundamental, é mesmo a excessiva abstração, pela qual os escolásticos são famosos até hoje (e não totalmente sem razão, embora as abstrações dos modernos sejam geralmente mais freqüentes e mais estúpidas, se bem que menos profundas). A filosofia deve ser algo que parte da experiência humana em toda a sua complexidade e mesmo em toda a sua confusão, e então prossegue na tentativa de explicar essa experiência abarcando-a em sua totalidade, e não jogando fora temerariamente parte dela como sendo ilusória. Para ter o direito de acreditar em minha própria experiência mais básica sobre mim mesmo eu não preciso da autorização de um comitê de cientistas ou filósofos. Se a ciência e a filosofia desses senhores contradizem aquilo que conheço diretamente em mim mesmo, tanto pior para elas. Por que eu deveria substituir minha experiência concreta por algo tão abstrato quanto a doutrina materialista ou a lei da "causalidade irrestrita", que não experimento nem em sonhos? Isso seria demasiado parecido com o expediente de rejeitar os fatos porque contradizem nossas teorias prediletas, ou mesmo porque simplesmente se colocam fora do domínio delas.

7 de junho de 2007

Séculos de inadimplência

Um dos primeiros amigos virtuais que fiz na vida foi um gaúcho chamado Elder, um sujeito com quem jamais conversei muito, mas que sem dúvida alguma tem um grande coração. Prova disso é que, mesmo sem me conhecer direito sequer por e-mail, ele se dispôs a me dar um livro de presente, e de fato o fez. Só isso já é suficiente para que eu lhe dedique uma admiração quase incondicional, já que não sou capaz de imaginar um presente melhor que um livro. E, como se não bastasse, o livro em questão é excelente. Foi escrito por Stephen Barr, um católico americano que possui uma qualidade muito rara: é um físico capaz de dizer coisas sensatas e interessantes sobre filosofia, teologia e história. O livro trata justamente da credibilidade da fé cristã diante das descobertas da ciência moderna, e chama-se Modern physics and ancient faith ("física moderna e fé antiga"). Ainda farei neste blog comentários sobre esse livro, pois ele merece atenção.

Hoje, porém, meu objetivo é outro. Depois que li o livro, o Elder, que é, assim como eu, um cristão protestante, enviou-me um e-mail perguntando minha opinião sobre a relação entre a ciência e a fé cristã. Escrevi-lhe em resposta, em novembro de 2005, um texto algo extenso no qual abordei a questão sob dois aspectos distintos. Transcrevo abaixo o trecho relacionado ao que me parece ser o mais importante desses dois aspectos, pois julgo que é um bom resumo da situação. Se eu fosse reescrever o texto agora, mais de um ano e meio depois, certamente deixaria de dizer muitas das coisas que disse, e provavelmente diria várias que não disse. Relendo-o ontem, vi que há nele alguns detalhes com os quais já não concordo, alguns que eu não comentaria de maneira tão simplista e alguns sobre os quais eu simplesmente não tenho mais tanta certeza. Mas resolvo publicar esse texto mesmo assim porque todas as correções que eu faria, por mais que seja trabalhoso justificá-las, são inteiramente secundárias do ponto de vista da tese principal, que permanece inalterada. Não obstante, eu pretendo dedicar futuramente um post (ou mais de um) à correção desses detalhes.

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[...] Uma coisa que percebi é que quando os racionalistas falam em oposição entre ciência e religião, eles podem estar falando de duas coisas muito diferentes. Ou seja, eles vêem dois tipos distintos de oposição. O primeiro tipo, que eu considero mais superficial, baseia-se na idéia de que a ciência tem desvendado mistérios que a teologia explica de maneira sobrenatural, ou que a religião foi refutada pelos avanços da ciência. [...]

Porém, como eu já disse, um racionalista, ao falar sobre a oposição entre religião e ciência, pode ter outra idéia em mente, e essa é uma idéia mais sutil que a que acabo de discutir. Esta consiste em afirmar a contradição entre a religião e os fatos da ciência, enquanto aquela consiste em afirmar a contradição entre a religião e os princípios da ciência. Esse argumento pode ser apresentado de várias maneiras, mas sempre se vincula à noção da oposição entre a razão e a fé, sendo esta última comumente definida como aceitação de uma idéia por um homem sem qualquer participação do lado racional do mesmo.

Assim, ouvimos freqüentemente dos críticos racionalistas declarações como essas: a religião se baseia em dogmas aceitos sem reflexão e sem crítica, enquanto a ciência se vincula ao ceticismo e busca nos fatos empíricos a confirmação ou refutação das teorias propostas. A ciência depende da crença em leis imutáveis que governam o universo, mas a religião, ou pelo menos a religião monoteísta, não permite tal coisa, pois afirma a existência de um ser onipotente que dirige o mundo ao seu bel prazer. A ciência defende que o conhecimento da realidade última do universo é acessível à mente humana, enquanto a religião monoteísta impede esse conhecimento apelando para uma vontade superior inescrutável... Normalmente se acrescenta que as instituições religiosas atravancaram o progresso da ciência: na Idade Média, durante a dominação da Europa pela Igreja Católica, a produção científica esteve ainda mais estagnada que na Antigüidade pagã. Apenas na Idade Moderna, quando o poder eclesiástico começou a enfraquecer, a ciência pôde progredir. Isso ocorreu porque a Igreja não via a ciência com bons olhos, como atesta o caso da perseguição contra Galileu, dentre outros.

Essa opinião, porém, está repleta de erros teológicos e históricos. Uma das concepções equivocadas mais comumente encontradas na mente dos céticos é a idéia de que a religião evita sistematicamente o confronto racional. Carl Sagan, por exemplo, baseou nesse equívoco boa parte da sua argumentação no livro
O mundo assombrado pelos demônios. De fato essa afirmação é verdadeira quando aplicada à maioria das religiões, mas não é válida quanto ao cristianismo, que se ergue sobre acontecimentos objetivos na história, tão passíveis de verificação quanto qualquer outro evento histórico. É verdade que muitos são cristãos por motivos que independem de qualquer motivo racional. Mas o mesmo pode ser dito de muitos ateus e agnósticos. O problema é que muitos racionalistas vêem a fé como um método de conhecimento da realidade, e nesse sentido a consideram o oposto exato do método científico. Mas a fé como a entendemos se relaciona muito mais com a decisão pessoal de seguir Jesus, e não com as causas dessa decisão. Estas variam muito de um cristão para outro, e a história está repleta de pessoas, desde Justino Mártir até C. S. Lewis, em cuja conversão a racionalidade desempenhou um papel essencial.

Da mesma forma, é errado afirmar que a teologia cristã é uma barreira ao desenvolvimento científico. É errado do ponto de vista teológico e também do ponto de vista histórico. No primeiro caso é um erro porque o cristianismo de fato admite um Criador que pode interferir miraculosamente na sua criação, mas isso não equivale a dizer que o universo não possui leis. O milagre é, na verdade uma indicação da existência dessas leis; é a exceção que confirma a regra. O próprio conceito de milagre significa a quebra de uma regularidade; ou seja, o cristianismo pressupõe uma regularidade no funcionamento da natureza.

Longe de impedir o pensamento científico, o aspecto sobrenatural da teologia cristã o encoraja. Isso pode ser visto de outra forma se o cristianismo for comparado ao antigo politeísmo. Pois este concebia um grande número de deuses, nenhum dos quais era eterno ou onipotente. Todas as mitologias começam com um caos primordial, um amontoado de matéria-prima a partir do qual surgiram os deuses, e a partir do qual os deuses moldaram o mundo. Dessa forma, os deuses eram parte da natureza, ao mesmo tempo em que eram os governantes dela. Não havia a distinção tipicamente judaico-cristã entre o natural e o sobrenatural. Um pagão jamais poderia esperar compreender o universo, porque o inescrutável, a vontade dos deuses, era parte do universo. O monoteísmo, sustentando a crença num Deus que, embora incompreensível, está acima e além da natureza, deixou o caminho livre para que a natureza fosse estudada e compreendida. E isso ocorreu bem no centro do cristianismo, enquanto que os filósofos gregos só puderam fazer o mesmo após terem deixado de lado a religião popular.

Porém, o equívoco teológico é seguido de perto pelo equívoco histórico. Eu não sou católico, e não pretendo de forma alguma afirmar a infalibilidade da Igreja Católica ou negar as muitas demonstrações de imoralidade por parte do clero medieval. Mas, quando se trata da questão do desenvolvimento da ciência, eu vejo claramente que muitas injustiças têm sido ditas contra as atitudes da Igreja. Parece-me que a atitude do clero com relação ao desenvolvimento da ciência foi, em geral, muito favorável. Barr fornece numerosos exemplos de teólogos, filósofos e clérigos que deram importantes contribuições à ciência de seu tempo, mesmo na Idade Média. No entanto, o caso de Galileu, a única exceção conhecida, é também o único caso lembrado hoje, mostrando que a propaganda racionalista tem sido muito eficiente nos últimos séculos.

É verdade que na Alta Idade Média o conhecimento científico se estagnou completamente, e até regrediu em relação aos tempos de ouro do Império Romano. Muitos racionalistas atribuem esse fato à ascensão do cristianismo. Porém, o real motivo se encontra na própria história da Europa pré-cristã. A queda do Império Romano, que já começara a declinar antes que o cristianismo se tornasse politicamente significativo, foi um grande golpe sobre a estabilidade da antiga sociedade, e isso em termos políticos, econômicos, sociais e intelectuais. Longe de fomentar a decadência, o cristianismo foi praticamente o único fator de união e estabilidade no mundo romano que se desintegrava, e isso foi o que evitou a ruína completa e permitiu que a antiga sabedoria grega revivesse durante o Renascimento. Além disso, o pensamento cristão foi em parte prejudicado pela intrusão do platonismo, já desde o segundo século; e o platonismo, com sua doutrina idealista e contemplativa, não valorizava devidamente a observação da natureza.

A civilização cristã na Europa, assim como a civilização muçulmana, deu grandes contribuições ao desenvolvimento do pensamento científico. Foi através dos pensadores muçulmanos que os escolásticos puderam entrar em contato com a tradição aristotélica, que foi o impulso de que o cristianismo precisava para se livrar do excesso de platonismo e prestar a devida atenção ao universo físico. Então os teólogos da Baixa Idade Média desenvolveram rapidamente uma teoria do conhecimento que acabou por resultar no pensamento científico: eles propuseram que o universo devia ser governado por leis imutáveis, pois estas leis haviam sido decretadas por um Legislador imutável. Propuseram também que o homem, tendo sido feito à imagem e semelhança desse Deus, deveria ser capaz de descobrir que leis eram essas. Kepler, ao declarar que estava pensando os pensamentos de Deus depois dele, não pensava em um rompimento com a teologia cristã. Ao contrário, estava simplesmente repetindo o que era aceito havia séculos. E Roger Bacon, ainda no século XIII, chegou a incentivar a pesquisa científica, alegando que ela poderia ser um instrumento de apologética contra as crendices populares e as heresias dos pagãos (astrologia, feitiçaria, etc.).

Dessa forma, o pensamento científico surgiu naturalmente a partir da teologia cristã. E isso é exatamente o oposto do que normalmente se pensa atualmente. O mundo foi de tal forma iludido pelo materialismo que este é hoje automaticamente associado ao progresso científico, enquanto a fé cristã é considerada obscurantista. Historicamente, porém, a realidade é exatamente o oposto disso. O cristianismo podia produzir a ciência, e de fato o fez, pois ele proporciona uma teoria do conhecimento adequada para isso. O ateísmo e o agnosticismo não produziram a ciência, e jamais poderiam tê-lo feito, pois não têm nada a oferecer além da negação do sobrenatural.

O materialismo em si não exige um universo decifrável, lógico, que faça sentido. Esse aspecto do materialismo de hoje foi tomado de empréstimo do cristianismo. E os ateus de hoje, como bons inadimplentes, negam que algum empréstimo tenha sido feito. Isso pode ser visto claramente nas apologias da ciência feitas pelos modernos racionalistas: eles demonstram que a ciência é capaz de fornecer uma descrição confiável da realidade apontando para os prodígios tecnológicos que ela proporcionou. Esse é, sem dúvida, um bom argumento. Mas é um argumento que só pode ser usado
depois que a ciência progrediu e mostrou seus resultados, ou seja, depois que alguém acreditou a priori no conhecimento científico. O materialismo nunca teria gerado a ciência, pois ele não pode fornecer essa razão a priori. Isso foi feito pelo cristianismo. [...]

6 de junho de 2007

Ignorância resumida

Depois de escrever neste blog uma porção de textos para falar sobre coisas que sei (ou pelo menos julgo saber), sinto necessidade de mudar por um pouco de rumo e falar sobre o que não sei. A razão disso é simples: agora que concluí a faculdade, tenho sentido cada vez mais fortemente a necessidade de montar um roteiro de estudos que seja adequado ao meu campo de interesses, que não só é razoavelmente amplo como também está em constante crescimento. Pra dizer a verdade, já faz tempo que percebi a necessidade desse roteiro, mas ela vem aumentando consideravelmente na medida em que tomo consciência do tamanho da minha ignorância, e isso tem acontecido de maneira particularmente intensa nos últimos meses. O fato é que a situação tomou proporções tais que tornam impossível resolvê-la facilmente ou mesmo explicá-la num post. A simples listagem dos assuntos a estudar, mesmo resumida, requer um trabalho considerável, de modo que hoje me limitarei a fazer justamente isso, na esperança de que essa lista me ajude a elaborar um plano mais detalhado num futuro próximo. Acho justo avisar desde já que muito dificilmente, segundo me parece, o que vou escrever hoje interessará a alguém além de mim mesmo. Se, apesar disso, resolvo publicar este texto, é apenas porque o próprio ato de escrevê-lo me ajudará a fixar melhor meus objetivos; e, já que terei esse trabalho, não vejo motivo algum para não publicá-lo. O assunto pode não interessar a ninguém, mas também não tem nada de confidencial.

Comecemos, então, pela física. Antes de qualquer outra coisa, eu preciso aprender direito o pouco que deveria ter aprendido durante a graduação. A correria dos finais de semestre, a preocupação com as notas, as disciplinas chatas que exigiam mais atenção do que mereciam e os estudos extracurriculares que impus a mim mesmo constituíram um considerável empecilho ao aprendizado pleno do que realmente interessava do ponto de vista estritamente profissional e acadêmico. O resultado é que não aprendi satisfatoriamente algumas disciplinas, em especial certos tópicos de termodinâmica, mecânica estatística, eletromagnetismo, a teoria especial da relatividade e os formalismos mais recentes da mecânica clássica. Sinto que preciso no mínimo voltar atrás e aprender direito essas e outras coisas. Depois disso poderei voltar-me para o estudo de assuntos um pouco mais avançados que usualmente não são estudados num curso de graduação em física. Minhas pretensões quanto a isso não são muitas. A única coisa que pretendo conhecer em profundidade é a teoria quântica, que considero uma das disciplinas mais belas, agradáveis e interessantes que já conheci. Também preciso conhecer no mínimo os fundamentos da relatividade geral, e um estudo básico de física nuclear e de partículas é inevitável. Sem isso jamais serei capaz de entender qualquer coisa razoavelmente relevante sobre cosmologia, que é um assunto aparentemente interessantíssimo. Se eu conseguir isso, me darei por satisfeito no que diz respeito à física.

Embora eu goste muito de matemática, há pouco nela que me instigue a ir muito além do que já sei. Eu sou, sem sombra de dúvida, um teórico, mas meu gosto pela abstração tem limite, e o curso de física já me proporcionou quase o suficiente para esgotá-lo. Apesar disso, sei que o simples estudo mais aprofundado de física, que descrevi no parágrafo anterior, exigirá conhecimentos de matemática consideravelmente mais vastos que os que possuo atualmente. Mas eu gostaria muito de conhecer mais sobre álgebra linear, bem como um pouco mais sobre métodos de resolução de equações diferenciais, sobre fractais (e tudo o que se relaciona com a teoria do caos) e tensores, bem como alguma coisa sobre teoria de grupos e geometrias não-euclidianas. Mas antes disso tudo preciso corrigir uma falha imperdoável na minha formação atual, que é a quase total ignorância sobre o cálculo envolvendo variáveis complexas.

Com relação a outros campos das ciências naturais, a área onde minha ignorância dói mais é a geologia, em todos os seus ramos; venho adiando o estudo dessa disciplina desde que entrei na faculdade, e o que aprendi a respeito ao longo desses anos caberia tranqüilamente num texto de duas páginas. Isso se relaciona, naturalmente, com meu interesse pela paleontologia, um assunto que também pretendo vir a conhecer muito melhor. E daqui podemos passar diretamente às muitas e problemáticas questões envolvendo a evolução, a genética populacional e questões afins. Também pretendo conhecer mais sobre genética, bioquímica e biofísica. E não posso deixar de lado, é claro, uma das minhas paixões mais antigas, a astronomia, um assunto do qual ando meio enjoado ultimamente, mas ao qual sei que voltarei mais cedo ou mais tarde, como sempre acontece. Mas até mais do que qualquer conhecimento técnico específico das ciências, têm me interessado muito ultimamente as questões históricas e filosóficas relacionadas ao tema. Aliás, considero que a sociedade e a própria ciência progrediriam melhor se certos cientistas, bem como certos leigos, tivessem uma noção mais realista da mesma, e acredito que isso pode ser em grande parte proporcionado por um conhecimento mais aprofundado sobre história e filosofia da ciência.

Porém, uma apreciação decente da ciência moderna do ponto de vista histórico e filosófico passa necessariamente por uma compreensão adequada da Idade Média. Por essa razão, e por muitas outras, considero que o estudo da Europa medieval, em todos os seus aspectos, é uma das minhas necessidades intelectuais mais pungentes. Preciso conhecer a fundo sua cultura, sua arte, sua história, sua sociedade, sua política, sua filosofia e sua teologia, a fim de entender não só os poucos pontos em que ela foi superada pela modernidade, mas principalmente os muitos em que a superou de longe. Em especial, pretendo conhecer os grandes filósofos, teólogos santos e místicos desse período muito melhor do que os conheço agora; homens como Santo Agostinho, Boécio, Santo Anselmo, Pedro Abelardo, São Bernardo de Clairvaux, São Tomás de Aquino, São Boaventura, Duns Scotus e uma infinidade de outros.

A Idade Média exerce sobre mim uma atração especial, mas na verdade não há um único período histórico que eu não precise estudar bastante. Minha ignorância sobre o tema me preocupa, e muito, especialmente quando percebo que não sei coisas que qualquer um com segundo grau completo deveria saber. Eu disse que isso me preocupa, mas na verdade não me envergonha, ou pelo menos não muito, já que meus velhos professores de história estavam menos interessados em transmitir conhecimento histórico do que em encher minha cabeça com lixo ideológico marxista. De qualquer forma, preciso agora reservar algum tempo para consertar essa séria deficiência na minha formação. Necessito urgentemente de um estudo razoavelmente profundo da história de todas as épocas, de todos os lugares, e principalmente das grandes civilizações. Em particular, devo dedicar algum tempo à história brasileira, na qual meu conhecimento é ainda pior que no resto. Mas não pretendo gastar muito tempo nisso, pois não creio que o papel do nosso país na história da humanidade seja algo digno de atenção. Meu interesse pelo Brasil deve-se apenas ao fato de eu ter sido mandado pra cá e nada poder fazer acerca disso.

Quando digo que preciso conhecer a história do mundo, porém, não estou pensando nos grandes acontecimentos de ordem política, social e militar, embora eles também estejam incluídos. Tenho em mente sobretudo os aspectos antropológicos, culturais, intelectuais e religiosos. Nem sei se isso será possível, mas eu gostaria muito de atingir um estado de conhecimento que me permita intuir objetivamente, ainda que de maneira abstrata e algo imprecisa, o modo como pensaram, sentiram e viveram os homens nos mais importantes locais e momentos da história. E isso com respeito a todos os tipos humanos que compõem uma sociedade civilizada: o político, o aristocrata, o soldado, o sacerdote, o artesão, o camponês, etc.

Aqui, naturalmente, cabe ressaltar a importância do estudo das tradições religiosas e intelectuais que formam a espinha dorsal das grandes culturas. É essencial conhecer as obras dos grandes mestres de cada povo: os filósofos, os poetas, os místicos, monges, santos e profetas, e até os homens práticos, governantes e generais. Mais essencial ainda, porém, é conhecer bem as escrituras sagradas das grandes religiões, bem como os mitos de cada comunidade. Pretendo vir a conhecer pelo menos o Alcorão e os hadiths, os Vedas, Upanishads e demais textos sagrados do hinduísmo, o Tripitaka, o cânon páli e outros textos budistas e os grandes livros da religião tradicional chinesa com a mesma profundidade com que atualmente conheço a Bíblia. Não é grande coisa, sem dúvida, mas é suficiente para evitar abordagens simplistas, reducionistas e grosseiramente parciais, abrindo espaço para que os textos falem por si mesmos e exponham suas riquezas.

Acho importante conhecer diretamente os mitos das diversas religiões não apenas pelo aspecto religioso em si, mas também pelo seu valor literário e psicológico, ou seja, enquanto reveladores do espírito dos povos que os compuseram. Aproveito para registrar também, antes de retornar às questões intelectuais e religiosas, que preciso ainda estudar psicologia e antropologia, assim como literatura e disciplinas relacionadas à linguagem. Mas é importante observar que quando falo em psicologia e antropologia não me refiro apenas às modernas escolas científicas ou pseudocientíficas que tratam do tema, embora o contato com elas se me afigure importante e necessário (interessa-me particularmente a psicologia do desenvolvimento); mas refiro-me também ao que se pode encontrar de conhecimento genuíno acerca da natureza humana fora das publicações acadêmicas, como nas tradições religiosas, nos mitos e na literatura. Com relação a esta última há ainda muito que eu preciso conhecer, tanto no âmbito da nossa provinciana modernidade quanto dos clássicos da história literária universal. Provavelmente ainda farei um esforço de aprender a ler em algumas línguas estrangeiras, não apenas pelo meu interesse (ainda não satisfeito) pela etimologia, mas também pelo prazer de ler os grandes textos nas línguas originais. Interesso-me particularmente por literatura inglesa, embora o escritor que eu mais sinta vontade de conhecer a fundo seja Dostoiévski. Mas quero experimentar um pouco de tudo, desde as peças do velho teatro grego até os contos de fadas (que, aliás, ocupam um lugar especial na minha lista de favoritos), sem jamais deixar de lado a poesia em todas as suas manifestações.

O estudo de religiões comparadas também está seguramente nos meus planos. Em particular, interessa-me conhecer mais a fundo a escola perenialista, por sua abordagem da metafísica subjacente aos textos sagrados e por sua aversão ao reducionismo materialista que parece caracterizar muitos dos modernos estudos sobre a religião. Mas a comparação requer o conhecimento dos objetos comparados, de forma que minha ignorância atual não me permite empreender esse estudo. No momento as únicas religiões que me julgo qualificado para comparar são o cristianismo e o judaísmo. Mesmo assim, embora meu conhecimento do pensamento cristão seja muito melhor que o das demais tradições, ele está longe de ser satisfatório. Eu poderia gastar uma vida apenas estudando a teologia protestante, que tem apenas meio milênio de existência, e pretendo de fato vir a compreendê-la muito melhor do que atualmente. Mas também preciso dedicar atenção ao pensamento católico, especialmente aos escolásticos a quem me referi anteriormente. Também pretendo, naturalmente, conhecer a patrística muito melhor do que conheço agora, tanto a latina quanto a grega. Aliás, não sei praticamente coisa nenhuma sobre o sistema doutrinário da Igreja Ortodoxa oriental, e menos ainda sobre as igrejas nestorianas, de modo que também será importante entrar em contato intelectual com esses irmãos remotos.

Mas mais importante que tudo isso é me aprofundar no conhecimento da própria Bíblia, que tenho estudado a vida toda sem jamais ter tido a impressão de que um dia terei estudado o suficiente. Para isso, pretendo lançar mão de todos os instrumentos que estiverem à minha disposição, como arqueologia e história do Oriente Próximo, crítica textual, hermenêutica (e sua evolução ao longo da história) e o aprendizado das línguas originais. Preciso retomar meus estudos de grego, que nunca passaram da superfície (se é que chegaram a atingi-la), e começar a estudar hebraico. Aprender latim também está nos meus planos há algum tempo, embora sua importância para mim resida menos na teologia do que na sua beleza intrínseca, na sua importância para a compreensão da língua portuguesa e no inestimável valor das obras filosóficas que se produziram nessa língua durante a Idade Média.

Por falar nisso, é claro que não posso deixar de dar importância primordial a um estudo mais sério da história da filosofia. O mais importante de tudo, sem dúvida, é conhecer profundamente Platão e Aristóteles; ao menos nada mais poderei fazer enquanto não tiver feito isso. Depois disso poderei passar à patrística e à escolástica, como já apontei antes, sem deixar de lado as contribuições dos grandes pensadores muçulmanos medievais, bem como os hindus. Do hinduísmo, aliás, eu só conheço bem o Vedanta, e mesmo assim não o suficiente; preciso conhecer bem todas as escolas inspiradas nos Vedas. Mas voltemos ao assunto. Uma vez tendo feito isso, não restará muito a estudar. A modernidade ocidental e pós-cristã parece ter contribuído muito pouco para a filosofia. Do século XVII pra cá existem bem poucos filósofos que me parecem dignos de atenção demorada: Leibniz, Husserl, Zubiri e mais um punhado de ilustres desconhecidos. Isso não significa que eu não pretenda estudar o produto de muitas mentes menores, como Descartes, Voltaire, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, Bergson, Sartre e tantos outros cuja fama parece-me absolutamente desproporcional aos seus méritos intelectuais, ao menos se comparados aos dos gigantes que citei há pouco. Mas o ponto é justamente esse: se é verdade que esses homens têm pouco a acrescentar do ponto de vista filosófico, não é menos verdadeiro que conhecê-los é essencial para quem queira compreender a modernidade, que fez pouco além de segui-los em sua decadência.

Aliás, também preciso conhecer melhor a história e o conteúdo das filosofias políticas em voga hoje em dia. Não sou mais um ignorante completo sobre o tema, mas ainda há uma infinidade de dúvidas que preciso solucionar. Não faz muito tempo que descobri a óbvia conexão da filosofia e da teologia com a política, isto é, entre o que o indivíduo pensa acerca de si mesmo, do homem, do mundo e de Deus e o que ele julga que deve fazer no mundo em decorrência disso. Mais do que isso, porém, a política me interessa por ser um elemento cada vez mais determinante na realidade humana, de modo que, gostando eu ou não, vejo-me obrigado a conhecer o assunto, sob pena de jamais compreender direito a realidade. O mesmo, aliás, se aplica à economia, mas quanto a esta ainda sou quase tão ignorante quanto sempre fui.

Encerro aqui estas considerações bastante resumidas sobre a minha própria ignorância. Se eu me estendesse em cada um desses pontos acabaria como um amigo que afirmou que precisaria de um blog inteiro para listar os assuntos que desconhece. Acho provável que eu tenha me esquecido de mencionar algumas coisas importantes que preciso aprender. Mas vou parar assim mesmo. O que foi dito já é suficiente para patentear o caráter desesperador da minha situação. Sei que serão necessárias várias décadas, no mínimo, para que eu consiga estudar tudo isso. Ficarei pra lá de satisfeito se conseguir aprender antes da minha morte uma parcela significativa do que acabo de listar. Mas, de qualquer forma, preciso começar a pedir ao Senhor que instale boas bibliotecas no paraíso.