7 de junho de 2007

Séculos de inadimplência

Um dos primeiros amigos virtuais que fiz na vida foi um gaúcho chamado Elder, um sujeito com quem jamais conversei muito, mas que sem dúvida alguma tem um grande coração. Prova disso é que, mesmo sem me conhecer direito sequer por e-mail, ele se dispôs a me dar um livro de presente, e de fato o fez. Só isso já é suficiente para que eu lhe dedique uma admiração quase incondicional, já que não sou capaz de imaginar um presente melhor que um livro. E, como se não bastasse, o livro em questão é excelente. Foi escrito por Stephen Barr, um católico americano que possui uma qualidade muito rara: é um físico capaz de dizer coisas sensatas e interessantes sobre filosofia, teologia e história. O livro trata justamente da credibilidade da fé cristã diante das descobertas da ciência moderna, e chama-se Modern physics and ancient faith ("física moderna e fé antiga"). Ainda farei neste blog comentários sobre esse livro, pois ele merece atenção.

Hoje, porém, meu objetivo é outro. Depois que li o livro, o Elder, que é, assim como eu, um cristão protestante, enviou-me um e-mail perguntando minha opinião sobre a relação entre a ciência e a fé cristã. Escrevi-lhe em resposta, em novembro de 2005, um texto algo extenso no qual abordei a questão sob dois aspectos distintos. Transcrevo abaixo o trecho relacionado ao que me parece ser o mais importante desses dois aspectos, pois julgo que é um bom resumo da situação. Se eu fosse reescrever o texto agora, mais de um ano e meio depois, certamente deixaria de dizer muitas das coisas que disse, e provavelmente diria várias que não disse. Relendo-o ontem, vi que há nele alguns detalhes com os quais já não concordo, alguns que eu não comentaria de maneira tão simplista e alguns sobre os quais eu simplesmente não tenho mais tanta certeza. Mas resolvo publicar esse texto mesmo assim porque todas as correções que eu faria, por mais que seja trabalhoso justificá-las, são inteiramente secundárias do ponto de vista da tese principal, que permanece inalterada. Não obstante, eu pretendo dedicar futuramente um post (ou mais de um) à correção desses detalhes.

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[...] Uma coisa que percebi é que quando os racionalistas falam em oposição entre ciência e religião, eles podem estar falando de duas coisas muito diferentes. Ou seja, eles vêem dois tipos distintos de oposição. O primeiro tipo, que eu considero mais superficial, baseia-se na idéia de que a ciência tem desvendado mistérios que a teologia explica de maneira sobrenatural, ou que a religião foi refutada pelos avanços da ciência. [...]

Porém, como eu já disse, um racionalista, ao falar sobre a oposição entre religião e ciência, pode ter outra idéia em mente, e essa é uma idéia mais sutil que a que acabo de discutir. Esta consiste em afirmar a contradição entre a religião e os fatos da ciência, enquanto aquela consiste em afirmar a contradição entre a religião e os princípios da ciência. Esse argumento pode ser apresentado de várias maneiras, mas sempre se vincula à noção da oposição entre a razão e a fé, sendo esta última comumente definida como aceitação de uma idéia por um homem sem qualquer participação do lado racional do mesmo.

Assim, ouvimos freqüentemente dos críticos racionalistas declarações como essas: a religião se baseia em dogmas aceitos sem reflexão e sem crítica, enquanto a ciência se vincula ao ceticismo e busca nos fatos empíricos a confirmação ou refutação das teorias propostas. A ciência depende da crença em leis imutáveis que governam o universo, mas a religião, ou pelo menos a religião monoteísta, não permite tal coisa, pois afirma a existência de um ser onipotente que dirige o mundo ao seu bel prazer. A ciência defende que o conhecimento da realidade última do universo é acessível à mente humana, enquanto a religião monoteísta impede esse conhecimento apelando para uma vontade superior inescrutável... Normalmente se acrescenta que as instituições religiosas atravancaram o progresso da ciência: na Idade Média, durante a dominação da Europa pela Igreja Católica, a produção científica esteve ainda mais estagnada que na Antigüidade pagã. Apenas na Idade Moderna, quando o poder eclesiástico começou a enfraquecer, a ciência pôde progredir. Isso ocorreu porque a Igreja não via a ciência com bons olhos, como atesta o caso da perseguição contra Galileu, dentre outros.

Essa opinião, porém, está repleta de erros teológicos e históricos. Uma das concepções equivocadas mais comumente encontradas na mente dos céticos é a idéia de que a religião evita sistematicamente o confronto racional. Carl Sagan, por exemplo, baseou nesse equívoco boa parte da sua argumentação no livro
O mundo assombrado pelos demônios. De fato essa afirmação é verdadeira quando aplicada à maioria das religiões, mas não é válida quanto ao cristianismo, que se ergue sobre acontecimentos objetivos na história, tão passíveis de verificação quanto qualquer outro evento histórico. É verdade que muitos são cristãos por motivos que independem de qualquer motivo racional. Mas o mesmo pode ser dito de muitos ateus e agnósticos. O problema é que muitos racionalistas vêem a fé como um método de conhecimento da realidade, e nesse sentido a consideram o oposto exato do método científico. Mas a fé como a entendemos se relaciona muito mais com a decisão pessoal de seguir Jesus, e não com as causas dessa decisão. Estas variam muito de um cristão para outro, e a história está repleta de pessoas, desde Justino Mártir até C. S. Lewis, em cuja conversão a racionalidade desempenhou um papel essencial.

Da mesma forma, é errado afirmar que a teologia cristã é uma barreira ao desenvolvimento científico. É errado do ponto de vista teológico e também do ponto de vista histórico. No primeiro caso é um erro porque o cristianismo de fato admite um Criador que pode interferir miraculosamente na sua criação, mas isso não equivale a dizer que o universo não possui leis. O milagre é, na verdade uma indicação da existência dessas leis; é a exceção que confirma a regra. O próprio conceito de milagre significa a quebra de uma regularidade; ou seja, o cristianismo pressupõe uma regularidade no funcionamento da natureza.

Longe de impedir o pensamento científico, o aspecto sobrenatural da teologia cristã o encoraja. Isso pode ser visto de outra forma se o cristianismo for comparado ao antigo politeísmo. Pois este concebia um grande número de deuses, nenhum dos quais era eterno ou onipotente. Todas as mitologias começam com um caos primordial, um amontoado de matéria-prima a partir do qual surgiram os deuses, e a partir do qual os deuses moldaram o mundo. Dessa forma, os deuses eram parte da natureza, ao mesmo tempo em que eram os governantes dela. Não havia a distinção tipicamente judaico-cristã entre o natural e o sobrenatural. Um pagão jamais poderia esperar compreender o universo, porque o inescrutável, a vontade dos deuses, era parte do universo. O monoteísmo, sustentando a crença num Deus que, embora incompreensível, está acima e além da natureza, deixou o caminho livre para que a natureza fosse estudada e compreendida. E isso ocorreu bem no centro do cristianismo, enquanto que os filósofos gregos só puderam fazer o mesmo após terem deixado de lado a religião popular.

Porém, o equívoco teológico é seguido de perto pelo equívoco histórico. Eu não sou católico, e não pretendo de forma alguma afirmar a infalibilidade da Igreja Católica ou negar as muitas demonstrações de imoralidade por parte do clero medieval. Mas, quando se trata da questão do desenvolvimento da ciência, eu vejo claramente que muitas injustiças têm sido ditas contra as atitudes da Igreja. Parece-me que a atitude do clero com relação ao desenvolvimento da ciência foi, em geral, muito favorável. Barr fornece numerosos exemplos de teólogos, filósofos e clérigos que deram importantes contribuições à ciência de seu tempo, mesmo na Idade Média. No entanto, o caso de Galileu, a única exceção conhecida, é também o único caso lembrado hoje, mostrando que a propaganda racionalista tem sido muito eficiente nos últimos séculos.

É verdade que na Alta Idade Média o conhecimento científico se estagnou completamente, e até regrediu em relação aos tempos de ouro do Império Romano. Muitos racionalistas atribuem esse fato à ascensão do cristianismo. Porém, o real motivo se encontra na própria história da Europa pré-cristã. A queda do Império Romano, que já começara a declinar antes que o cristianismo se tornasse politicamente significativo, foi um grande golpe sobre a estabilidade da antiga sociedade, e isso em termos políticos, econômicos, sociais e intelectuais. Longe de fomentar a decadência, o cristianismo foi praticamente o único fator de união e estabilidade no mundo romano que se desintegrava, e isso foi o que evitou a ruína completa e permitiu que a antiga sabedoria grega revivesse durante o Renascimento. Além disso, o pensamento cristão foi em parte prejudicado pela intrusão do platonismo, já desde o segundo século; e o platonismo, com sua doutrina idealista e contemplativa, não valorizava devidamente a observação da natureza.

A civilização cristã na Europa, assim como a civilização muçulmana, deu grandes contribuições ao desenvolvimento do pensamento científico. Foi através dos pensadores muçulmanos que os escolásticos puderam entrar em contato com a tradição aristotélica, que foi o impulso de que o cristianismo precisava para se livrar do excesso de platonismo e prestar a devida atenção ao universo físico. Então os teólogos da Baixa Idade Média desenvolveram rapidamente uma teoria do conhecimento que acabou por resultar no pensamento científico: eles propuseram que o universo devia ser governado por leis imutáveis, pois estas leis haviam sido decretadas por um Legislador imutável. Propuseram também que o homem, tendo sido feito à imagem e semelhança desse Deus, deveria ser capaz de descobrir que leis eram essas. Kepler, ao declarar que estava pensando os pensamentos de Deus depois dele, não pensava em um rompimento com a teologia cristã. Ao contrário, estava simplesmente repetindo o que era aceito havia séculos. E Roger Bacon, ainda no século XIII, chegou a incentivar a pesquisa científica, alegando que ela poderia ser um instrumento de apologética contra as crendices populares e as heresias dos pagãos (astrologia, feitiçaria, etc.).

Dessa forma, o pensamento científico surgiu naturalmente a partir da teologia cristã. E isso é exatamente o oposto do que normalmente se pensa atualmente. O mundo foi de tal forma iludido pelo materialismo que este é hoje automaticamente associado ao progresso científico, enquanto a fé cristã é considerada obscurantista. Historicamente, porém, a realidade é exatamente o oposto disso. O cristianismo podia produzir a ciência, e de fato o fez, pois ele proporciona uma teoria do conhecimento adequada para isso. O ateísmo e o agnosticismo não produziram a ciência, e jamais poderiam tê-lo feito, pois não têm nada a oferecer além da negação do sobrenatural.

O materialismo em si não exige um universo decifrável, lógico, que faça sentido. Esse aspecto do materialismo de hoje foi tomado de empréstimo do cristianismo. E os ateus de hoje, como bons inadimplentes, negam que algum empréstimo tenha sido feito. Isso pode ser visto claramente nas apologias da ciência feitas pelos modernos racionalistas: eles demonstram que a ciência é capaz de fornecer uma descrição confiável da realidade apontando para os prodígios tecnológicos que ela proporcionou. Esse é, sem dúvida, um bom argumento. Mas é um argumento que só pode ser usado
depois que a ciência progrediu e mostrou seus resultados, ou seja, depois que alguém acreditou a priori no conhecimento científico. O materialismo nunca teria gerado a ciência, pois ele não pode fornecer essa razão a priori. Isso foi feito pelo cristianismo. [...]

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