8 de julho de 2007

Ao fim pelo meio

Durante esta semana encontrei numa pasta quase esquecida do meu computador três textos que eu mesmo produzi há algum tempo, e resolvi publicá-los aqui no blog, uma vez feitas as devidas adaptações. Explico: a pasta em questão contém todos os trabalhos, relatórios, figuras, apostilas, materiais de estudo, códigos de programação (na boa e velha linguagem Fortran), documentos e outras coisas que fui produzindo e reunindo ao longo do curso de graduação, ou pelo menos desde que comprei o computador. Depois que concluí a faculdade, naturalmente, esse material todo só poderia mesmo cair no esquecimento até que eu decidisse abrir a pasta para lembrar do que havia dentro, como de fato aconteceu há poucos dias.

Os textos em questão foram escritos entre outubro e dezembro de 2005 para avaliação na disciplina Filosofia e ética, a segunda das três disciplinas do Departamento de Filosofia que cursei para fugir um pouco das ciências exatas. Antes de publicar os textos, porém, devo advertir que minha nota final nessa disciplina foi 9, o que certamente significa que deixei de aprender no mínimo 10% do que devia. Digo "no mínimo" porque provavelmente foi muito mais. Infelizmente não levei o curso com a seriedade que seu tema merecia, em vista do fato de que a professora, apesar de dar ótimas aulas (embora eu tenha estado ausente em boa parte delas), facilitou consideravelmente as coisas no que diz respeito à avaliação; isso se nota, por exemplo, no fato de que ela nos autorizou a redigir em casa os textos exigidos, e é por isso mesmo que os tenho no computador. De modo geral, eu não fui um aluno relaxado na faculdade, mas, tendo naquele semestre disciplinas muito mais preocupantes, vi-me forçado a dedicar mais tempo a elas e reduzir ao mínimo necessário o estudo das que ofereciam pouco ou nenhum risco de reprovação. Essa é uma situação corriqueira da vida universitária, e não houve um semestre em que eu não tenha precisado fazer esse tipo de coisa. Digo tudo isso não apenas para desabafar por não ter podido então estudar um assunto que se me afigurava muito interessante (como, aliás, até hoje), mas também para advertir quanto a prováveis erros que os textos devem conter, em vista do fato de que faltei a várias aulas, li correndo os textos recomendados pela professora e não empreendi desde então nenhum estudo mais aprofundado que me permita identificar e corrigir esses erros agora.

Publico, portanto, os textos com algumas adaptações e expansões, destinadas apenas a corrigir certas imprecisões lingüísticas e tornar mais claros certos conceitos apresentados, além de tornar os textos esteticamente um pouco mais apresentáveis. Cada um deles responde a uma questão acerca da concepção de moralidade defendida por um dos três filósofos estudados, sem, no entanto, ter a pretensão ser um resumo da filosofia moral do pensador em questão, ou mesmo do texto em que a mesma é exposta. A professora foi bastante perspicaz ao elaborar perguntas específicas que, embora não exigissem um resumo da obra, requeriam um bom entendimento geral da mesma para serem corretamente respondidas. O primeiro filósofo estudado foi Aristóteles, que delineia suas idéias sobre moral no célebre tratado Ética a Nicômaco.

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"A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática." (Ética a Nicômaco, Livro II, capítulo 6)

Este breve texto se propõe a esclarecer a definição de "virtude" oferecida por Aristóteles, conforme a citação acima, através da explanação dos termos usados, de acordo com as definições e os esclarecimentos meticulosamente dados pelo próprio Aristóteles em sua valiosa obra Ética a Nicômaco.

Em primeiro lugar é necessário esclarecer que, para Aristóteles, a virtude genuína se manifesta na vida do indivíduo através de ações justas e corretas efetuadas por ele. Isto é, pessoas virtuosas necessariamente praticam atos virtuosos. Não há espaço para uma concepção meramente teórica da virtude, isto é, que não se traduza numa conduta correspondente e objetivamente verificável. Além disso, cumpre ressaltar que a persistência em praticar esses atos é não apenas um indicador da virtude do agente, mas também é requisito para se atingir e manter o caráter virtuoso. O hábito exerce um papel fundamental tanto na aquisição quanto na posse plena desse caráter, de modo que não há, na verdade, uma dicotomia rígida entre os meios e os fins (de maneira geral, aliás, não encontramos dicotomias rígidas no pensamento de Aristóteles, e é esse um dos fatores importantes que o distinguem de seu mestre Platão). Apesar disso, porém, a virtude verdadeira não se reduz à pura prática de ações exteriores. O homem bom não é aquele que apenas faz o bem, e sim o que se compraz em fazê-lo. Boas ações e bons pensamentos são, para ele, uma fonte de felicidade. Inversamente, a prática do mal lhe traz infelicidade, isto é, sua consciência moral está a tal ponto desenvolvida que seus deslizes, mesmo raros, causam-lhe pesar e desconforto. É a esse modo interior de ser que Aristóteles se refere quando diz que a virtude deve ser vista primordialmente como uma "disposição de caráter".

O Filósofo considera que a felicidade é o sumo bem, pois é o único bem que almejamos como um fim em si, e não como um meio para se conseguir outra coisa. Ao contrário, todas as demais coisas que buscamos são, no fim das contas, apenas meios que visam a esse fim. Mas a felicidade só pode ser atingida através de meios compatíveis com a constituição humana, ou seja, em conformidade com a nossa natureza. Esses meios, portanto, incluem o uso adequado das faculdades racionais. A razão do homem pode e deve guiá-lo em suas escolhas. Aristóteles nos diz que o homem sábio e virtuoso é aquele que sabe tomar as decisões corretas tendo em vista o fim último. As escolhas sábias requerem um correto senso de prioridade, e são sempre orientadas para a determinação dos meios, e não dos fins. Pois o homem precisa, antes de qualquer coisa, escolher uma meta, para então, dentro de suas possibilidades concretas, fazer escolhas que o levem até ela. Sendo assim, as escolhas só podem ser guiadas pela razão se houver a definição prévia de um fim a ser atingido, o qual é determinado não pela própria razão, mas pelo desejo.

Assim, virtude consiste tanto em ter em vista os fins adequados quanto em saber atingi-los pela escolha racionalmente correta e eficiente dos meios, na medida em que as condições externas o permitam. Isso significa que o termo "felicidade", no sentido estrito, não é aplicável a seres desprovidos de razão. A felicidade não se confunde com o mero prazer e o bem estar, buscados instintivamente pelos animais, sendo antes um fim mais elevado, desejado apenas pelo homem e acessível através das escolhas certas feitas por ele. A escolha é necessariamente um ato voluntário, uma vez que envolve deliberação, isto é, ponderação seguida de decisão consciente, o que é impossível em ações involuntárias. Entretanto, nem toda ação voluntária é uma escolha, pois um ato pode ser voluntário sem ter sido deliberado. Uma ação voluntária impensada, isto é, não guiada por uma deliberação prévia, dificilmente contribuirá para a aproximação do fim último.

Relacionada de perto com a questão das escolhas corretas está a disposição que Aristóteles chama de "sabedoria prática". Esta pode ser definida como a capacidade que um homem tem de fazer escolhas acertadas tendo em vista o seu próprio bem estar, dadas as condições em que se encontra. A sabedoria prática requer a capacidade de avaliar bem a situação concreta e tomar, dessa forma, decisões realistas. Aristóteles não ignora que o homem está, na sua vida prática, sujeito a uma série de contingências que independem de sua vontade e de seu poder, e essa relativa fragilidade humana diante das circunstâncias é um fator que não pode ser desconsiderado por uma filosofia moral, pois esta não terá valor algum se não puder orientar o indivíduo na sua conduta prática. Diante disso tudo, a sabedoria prática é a aptidão intelectual necessária ao progresso na busca da virtude e, portanto, da felicidade; mas, considerada em si mesma, não possui qualquer componente moral. Embora seja de natureza puramente intelectual, porém, é inteiramente independente de qualquer conhecimento técnico ou científico, não se vinculando a cultura, erudição ou aptidão artística.

O Filósofo concebe a virtude como consistindo essencialmente em um equilíbrio entre vícios opostos. É a isso que ele se refere como "mediania". O homem é feito de diversos componentes opostos entre si, e o excesso de qualquer deles, o predomínio de alguns sobre os demais, é, para Aristóteles, prejudicial à natureza humana, e conseqüentemente afasta o homem da virtude. Assim, por exemplo, a coragem é o justo meio entre a covardia e o destemor insensato, que são vícios opostos entre si. Da mesma forma, muitas outras virtudes e vícios podem ser identificadas em casos análogos, e é dever do sábio buscar sempre essa mediania virtuosa. Não se trata, porém, de um conceito rigidamente matemático, pois não é possível fazer abstração dos elementos concretos da realidade humana sem incorrer justamente no erro que Aristóteles denunciava em Platão. É necessário levar em consideração as particularidades das circunstâncias e dos indivíduos envolvidos no contexto de uma determinada escolha. O homem deve ter em conta sua situação e seus interesses para, no momento oportuno, reprimir ou dar vazão às suas paixões em conformidade com eles, mantendo-as sob controle de sua razão. O sábio é aquele que tem domínio completo de si, governando seus instintos e não sendo governado por eles. Só a conquista desse poder capacita o homem a atingir a felicidade, e isso só é possível pela perseguição do equilíbrio. A filosofia moral de Aristóteles é, assim, sumamente sensata: ele sabia que só se pode atingir o fim passando pelo meio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá André, boa tarde!
Primeiramente, PARABÉNS pelo texto claro, posicionado e reflexivo!
Inclusive, o utilizarei como sub-base para a minha resenha sobre as tão famosas "ações voluntárias" aristotélicas. Posso?

Agradeço a leitura!

Dayane(liberday@gmail.com)