4 de setembro de 2007

A estrada para o precipício

Nota introdutória: O texto que eu pretendia publicar hoje, sobre uma questão que só em tempos relativamente recentes passou a chamar minha atenção, acabou ficando grande demais para um único post. Decidi, portanto, dividi-lo em dois. Hoje contarei como a minha mente foi preparada para lidar com essa questão ao longo dos anos sem que eu me desse conta disso. No próximo post (que sairá dentro de alguns dias, tão logo eu tenha tempo de revisá-lo) falarei sobre o que aconteceu quando me dirigi a ela conscientemente e qual foi, afinal, o posicionamento a que cheguei.

*******

"Torniamo all'antico; sarà un progresso."

Embora eu não vá falar hoje sobre música, essas palavras do compositor Giuseppe Verdi, em carta dirigida a Francesco Florimo em 1871, resumem bem as minhas impressões sobre um assunto muito diverso. Nos primeiros trinta e quatro textos que postei neste blog jamais falei sobre política, a não ser em menções passageiras. E não pretendo começar a fazer isso a partir de agora, por várias razões. A principal delas é que há uma infinidade de assuntos que considero não apenas mais interessantes como também mais importantes e dignos, no sentido mais absoluto. Até posso entender que, por motivo de consciência, forçado pela conjuntura opressiva de um determinado momento histórico, um formador de opinião (no sentido mais abrangente possível dessa expressão) dedique boa parte de suas palavras a esse assunto. Na verdade, desconfio que essa é a única justificativa possível para tal empreendimento. Mas não posso sentir outra coisa além de desprezo por essa atitude tipicamente moderna de conferir à política o status de coisa mais importante e digna de atenção e envolvimento que existe, atitude essa claramente implícita, por exemplo, na afirmação de Karl Marx (em suas Teses sobre Feuerbach) de que compreender o mundo é menos importante do que transformá-lo. Se há algo que não desejo de jeito nenhum é fazer deste blog um espaço voltado à militância política contra ou a favor de quem quer que seja.

É com relutância, portanto, que passo a escrever hoje sobre o tema, ainda que não muito diretamente. Meu objetivo aqui é menos uma exposição de argumentos em favor da concepção política que vim a adotar do que uma tentativa de explicar como é possível que um sujeito tão apolítico quanto eu tenha vindo, pra início de conversa, a tomar uma posição diante dessa questão. Mas isso não pode ser feito adequadamente, penso eu, sem uma explicação retroativa sobre as razões pelas quais a política sempre me interessou tão pouco, razões essas que agora julgo compreender melhor do que antes. Também será necessário discorrer brevemente sobre a relação entre a política e algumas outras atividades que, como eu disse acima, considero mais dignas; e não vejo maneira de fazer isso sucintamente a não ser contando minha própria história. Colocar esses elementos todos juntos talvez seja um pouco complicado, e acredito que isso tornará o texto inevitavelmente fragmentário. Talvez o que vou dizer tenha mesmo, afinal de contas, mais interesse biográfico do que propriamente político. Ao mesmo tempo, porém, esta breve narrativa parece-me imprescindível para que possa ser entendida em sua perspectiva correta qualquer coisa que eu venha a dizer futuramente sobre o tema (o que, naturalmente, eu espero que seja tão pouco quanto possível).

A razão pela qual nunca achei que a política fosse um assunto interessante não é difícil de entender. Na minha cabeça as coisas eram simples assim: na pior das hipóteses, política era um meio de que certas pessoas se utilizavam para obter privilégios e poder para si próprias, legal ou ilegalmente, ao mesmo tempo em que, como é óbvio, tentavam diminuir o poder de seus concorrentes. E, na melhor das hipóteses, a política era uma disputa entre pessoas honestas que, valorizando sinceramente o bem da sociedade, tinham, contudo, opiniões divergentes sobre qual é a melhor maneira de proporcioná-lo. No primeiro caso, tratava-se de uma mesquinharia sem fim; no segundo, era uma questão altamente técnica sobre administração pública. Nenhum dos dois, de qualquer forma, parecia digno do meu interesse. Nunca tive a intenção de ser rico e poderoso, e nunca gostei de administrar nada; sempre me pareceu óbvio que essa última atividade era um enfado que deveria ser reduzido ao mínimo necessário para garantir a perpetuação de certas coisas boas, e não uma ocupação valiosa por si mesma. Por todas essas razões, a totalidade das discussões políticas que eu presenciara pareciam-me sumamente desinteressantes. Essa foi a minha atitude até a metade da minha adolescência, pelo menos, embora, é claro, eu não fosse capaz, na época, de formulá-la nesses termos.

Depois comecei a perceber que essa concepção era provinciana demais, pois pressupunha um ambiente democrático que nem sempre havia existido e que efetivamente inexiste em uma porção de lugares. Porém, embora eu nunca tenha sido favorável a nenhuma ditadura, fosse aberta ou velada, de direita ou de esquerda, esses exemplos pareciam-me exceções remotas demais, incapazes de merecer que, a fim de pensar nelas mais demoradamente, eu desviasse minha atenção de temas infinitamente mais interessantes. O fato é que nessa época minha vida intelectual estava começando, e minhas idéias posteriores sobre política foram profundamente influenciadas pelo rumo que tomaram meus pensamentos sobre assuntos que, à primeira vista, nada têm a ver com elas. E isso me obriga a fazer uma digressão sobre esses assuntos, que ocuparam e moldaram a minha mente muito antes que eu passasse a ocupar com a política uma pequena parte dela.

Dentre esses fatores, nenhum se manifestou tão cedo quanto a educação cristã protestante que recebi dos meus pais. Hoje acredito, na verdade, que esse foi o elemento mais importante de todos os que me impediram de tornar-me mais tarde um esquerdista ou mesmo um extremista de direita. Digo isso porque a memória das brutais perseguições ao cristianismo sob as ditaduras comunistas e fascistas jamais esteve ausente do meio religioso em que fui criado, embora hoje eu veja que não recebe tanta ênfase quanto deveria. Embora eu não tivesse qualquer noção sobre a natureza das correntes políticas existentes, o caráter ostensivamente anticristão (ou mesmo francamente ateísta) desses movimentos já era motivo suficiente para que eu não simpatizasse com eles. E as histórias sobre os abusos de poder nos regimes ditatoriais foram o germe da minha futura oposição ao excessivo controle estatal do que quer que fosse e por quem quer que fosse. Mas isso também não quer dizer que eu visse o anarquismo com alguma simpatia. Analisando os prós e os contras, seus adeptos nunca me pareceram mais sensatos que os demais revolucionários.

Mas houve um outro aspecto importante da minha formação cristã, que me tornou avesso até mesmo ao liberalismo político reacionário de hoje em dia: a noção de progresso, que ele tem em comum com todos os movimentos revolucionários. Para mim, exceção feita ao aspecto puramente científico e tecnológico da coisa, rejeitar a ideologia progressista sempre foi uma questão de coerência não apenas com os fatos da história humana dos últimos séculos, até onde me era dado conhecê-los, mas também com os princípios elementares da doutrina cristã, que estava em pleno acordo com os referidos fatos. Enquanto o claro ensino de Jesus no capítulo 24 do Evangelho segundo Mateus e no Livro do Apocalipse praticamente inteiro era sobre um futuro tenebroso para a Igreja e para a humanidade em geral, a ponto de que o triunfo completo do mal só seria evitado pela intervenção direta do Cristo glorificado em pessoa, eu não podia levar a sério as linhas escatológicas progressistas dentro do protestantismo, e muito menos aqueles intelectuais seculares que anunciavam confiantemente um mundo melhor a ser fatalmente construído apenas pelo esforço humano. Nessa época sequer me passava pela cabeça que o posicionamento a respeito do progresso pudesse ser decisivo na elaboração de doutrinas políticas. Eu jamais pensei na conexão entre esses dois assuntos até bem recentemente; portanto, minha atitude diante do progresso é que acabou por influenciar minha visão política, e não o contrário. Jamais me pareceu que isso fosse uma questão política, sendo antes uma questão filosófica, teológica e histórica.

Assim, sem jamais pensar em política, eu fui estudando filosofia, história e ciências humanas em geral seguindo o rumo ditado pelas minhas prioridades e possibilidades de cada momento. Esses estudos me levaram cada vez mais para longe dos intelectuais da moda, e fui descobrindo alguns que, embora ignorados por praticamente todo mundo neste país, pareceram-me mais dignos de atenção do que os tidos por mais ilustres no nosso meio acadêmico. Isso sempre foi assim; sempre nadei contra a corrente da opinião majoritária entre os nossos intelectuais, não porque eu fizesse questão disso, e sim apenas porque, sempre que me punha a estudar um assunto qualquer, acabava concluindo que as minorias estavam certas. Acabei me acostumando a não dar atenção ao consenso dos cientistas e intelectuais e a não considerá-los uma classe digna da devoção que tantos conhecidos meus lhes prestam como a uma casta sacerdotal detentora do poder de revelar a verdade aos pobres pecadores. Acredito também que meus amigos se habituaram, enfim, às minhas excentricidades, embora provavelmente ainda achem tudo isso muito esquisito; desconfio que, de vez em quando, eles devem discutir entre si sobre como é possível que eu seja capaz de estudar tanto e ainda assim discordar de quase todas as conclusões das outras pessoas que também estudam. Isso tudo não é irrelevante para a história que estou contando. Depois de alguns anos nessa situação, comecei a desconfiar instintivamente de qualquer idéia que fosse aceita pela maioria dos nossos intelectuais (e, portanto, dos estudantes), e acabei perdendo toda a confiança nos acadêmicos arquetípicos. Foi apenas depois disso que começou a acontecer, finalmente, aquilo que já mencionei brevemente no meu post Ignorância resumida, e que marcou o início de uma nova fase da minha vida intelectual:

"[...] descobri a óbvia conexão da filosofia e da teologia com a política, isto é, entre o que o indivíduo pensa acerca de si mesmo, do homem, do mundo e de Deus e o que ele julga que deve fazer no mundo em decorrência disso. Mais do que isso, porém, a política me interessa por ser um elemento cada vez mais determinante na realidade humana, de modo que, gostando eu ou não, vejo-me obrigado a conhecer o assunto, sob pena de jamais compreender direito a realidade."

Nenhum comentário: