27 de setembro de 2007

Línguas, desenhos e cães

A pequena reunião de ensaios intitulada Peso de glória (The weight of glory and other adresses) parece ser uma das obras menos conhecidas de C. S. Lewis. É, entretanto, e a despeito de seu reduzido tamanho, uma coleção valiosíssima. O sermão que dá nome ao livro traz excelentes reflexões sobre a natureza da glória celestial. Uma outra palestra me forneceu, dentre outras coisas, o melhor argumento que já vi contra o autoritarismo, e me indispôs definitivamente contra qualquer forma de concentração de poder. Mas nenhum ensaio me impressionou ou ensinou tanto quanto um chamado Transposição. Conversando outro dia com um amigo, eu disse tratar-se de uma crítica ao reducionismo. Mas logo percebi que essa caracterização é ela própria reducionista, pois não dá conta da profundidade do seu conteúdo. A fim de fazer justiça ao texto, portanto, decidi escrever hoje um resumo do mesmo, embora acrescido de uns poucos comentários meus e disposto, às vezes, numa seqüência diferente da utilizada pelo autor.

Trata-se da transcrição de um sermão pregado numa capela de Oxford num domingo de Pentecostes. Por não se julgar qualificado a discorrer sobre temas mais importantes, Lewis decidiu fazer uma reflexão a partir do dom de línguas, que o apóstolo Paulo, mesmo sem questionar a origem autenticamente espiritual do fenômeno, considerou pouco importante em comparação com outros dons espirituais (para mais detalhes, ver Atos 2.1-13 e todo o capítulo 14 da primeira epístola aos coríntios). Pelo menos no que diz respeito ao Pentecostes subseqüente à morte e ressurreição de Cristo, não se pode, levando a sério a narrativa bíblica, negar o caráter sobrenatural do evento, já que os discípulos falaram em línguas conhecidas pelos ouvintes, mas desconhecidas deles próprios. Nas situações aludidas por Paulo parece não ter ocorrido isso. É uma diferença importante, embora Lewis não faça caso dessa diferença. Mas o ponto relevante para ele é que o estado subjetivo das pessoas atingidas por essa manifestação divina em cada caso pode muito bem ter sido exatamente o mesmo.

A questão a ser encarada é o fato de que esse fenômeno parece ser em tudo semelhante a uma "descarga involuntária de agitação nervosa", explicação que, aliás, muitos cristãos, para não falar nos céticos, considerariam plenamente satisfatória para a maioria das manifestações modernas desse tipo. Lewis chama a atenção para o fato de que esse é um exemplo específico dentre muitos casos em que o que se supõe sobrenatural parece não sê-lo de modo algum, como no caso da linguagem erótica dos escritos místicos medievais, dentre outros: "Se de fato fomos favorecidos com uma revelação sobrenatural, não será muito estranho que o Apocalipse possa guarnecer o céu tão somente com elementos recolhidos da experiência terrena (coroas, tronos, música)? E também que a devoção religiosa não encontre outra linguagem senão a dos amantes e que o rito com que o cristão celebra a união mística não passe do velho e familiar ato de comer e beber?"

A fim de lidar com essa questão, Lewis começa notando que o mesmo problema pode ser notado comparando-se os diversos níveis da experiência cotidiana, não sendo, portanto, manifesto apenas em relação a questões sobrenaturais. Assim, considerando os fatos apenas do ponto de vista de seus resultados concretos, facilmente concluiremos que a sede de justiça nada mais é que desejo de vingança, ou que o amor e o desejo sexual são a mesma coisa. É necessário abrir os olhos para aquelas situações em que experiências de diversos níveis coexistem e são conhecidas por todas as pessoas. E tais situações existem, de fato. Se tentarmos captar introspectivamente a natureza exata da sensação de alegria intensa ou de angústia intensa, não encontraremos nada além de um evento puramente físico: um espasmo no diafragma, uma sensação de calor ou um formigamento no peito. Essas sensações físicas não esgotam aquilo que estamos de fato sentindo; são, antes, apenas a sua concretização. Isso decorre do fato de que a experiência emocional é consideravelmente mais rica que o conjunto de nossas sensações físicas. Conseqüentemente, embora haja uma óbvia correspondência entre elas, não é uma correspondência biunívoca, ou, como diriam os matemáticos, a função não é injetora.

Essa é a transposição a que se refere o título do ensaio: a transposição de um nível superior para um inferior. O caso mais óbvio é o desenho, que representa uma figura tridimensional num plano. E nele também ocorre essa multiplicidade de objetos representados de uma mesma maneira: "A forma que você desenha para dar a ilusão de uma estrada reta que se afasta do observador é a mesma que utiliza para desenhar a ponta de um cone." É relevante notar que a própria existência da transposição só pode ser percebida por quem tem experiência do nível superior, e tal idéia pareceria sem sentido e absurdamente fantasiosa para quem o ignorasse. Objetivamente, o cidadão do mundo bidimensional só veria triângulos essencialmente idênticos onde nós veríamos representações de estradas e cones. Ele poderia até concluir que o tal mundo tridimensional é, no fim das contas, apenas uma fantasia abstrata construída a partir da experiência no mundo conhecido por ele. Da mesma forma, "o indivíduo sensual nunca poderá distinguir, em sua análise, o amor da lascívia; [...] a fisiologia nada verá no pensamento senão contrações da massa cinzenta". A riqueza mesma do nível superior impede que ele possa ser compreendido por quem insiste em reduzi-lo ao inferior para analisá-lo a partir deste. Inversamente, quem consente em enxergar o plano inferior à luz do superior torna-se capaz de apreender corretamente o sentido de ambos. Como disse o apóstolo Paulo, as coisas espirituais se discernem espiritualmente, e o homem espiritual julga todas as coisas sem ser julgado por ninguém.

Eis a crítica do reducionismo a que me referi. Há mais, porém. A noção de simbolismo, entendida como representação de uma coisa por outra, não esgota o significado mais profundo da transposição (e isso independe de o simbolismo ser motivado por alguma semelhança entre as duas coisas ou baseado numa simples convenção). O desenho só pode representar algo do mundo tridimensional porque ele próprio também faz parte desse mundo, e "os sóis e as luzes parecem brilhar nos desenhos só porque os verdadeiros sóis ou as verdadeiras luzes brilham sobre eles, ou seja, parecem brilhar muito porque na realidade brilham um pouco ao refletir os seus arquétipos". O símbolo é, ao mesmo tempo, mais que um símbolo, pois o que o capacita a desempenhar esse papel é justamente o fato de conter em si algo da coisa simbolizada. Algo parecido ocorre na transposição da emoção à sensação: esta é transfigurada por aquela e passa a fazer parte dela, não sendo apenas uma projeção. Em contraste com a relação meramente simbólica, Lewis designa essa, não por acaso, como "sacramental". A transposição não deve, porém, ser confundida com o conceito de desenvolvimento, como se o inferior pudesse ser transformado no superior. Aquele obtém deste um novo e mais elevado significado, que o converte, num certo sentido, em algo distinto do que era, mas, embora contenha algo do que representa, continua sendo infinitamente transcendido por esse algo: "Afirmo, em suma, que são as paisagens reais que entram nos quadros, e não que um dia os quadros vão se converter em árvores e relvados."

O próprio Lewis oferece em seu sermão várias aplicações filosóficas dessa idéia toda. Uma das mais simples diz respeito à relação entre a consciência e o cérebro. Não só é verdade que aquela não pode ser reduzida a este (o que, aliás, é óbvio a partir da constatação de que, nesse caso, nenhum pensamento poderia ser considerado verdadeiro ou falso), como também é desnecessário supor que a cada estado possível da consciência deva corresponder um estado físico do cérebro. Outros exemplos são mais teológicos, como a própria Encarnação de Cristo. Como a sensação física que acompanha a alegria é, num certo sentido, a própria alegria encarnada, assim em Cristo a natureza humana, sem deixar de ser o que é, seria transfigurada ao refletir a presença de uma pessoa divina. Lewis considera ainda sob esse ângulo a doutrina cristã da ressurreição do corpo, conjeturando que, sendo a transposição sempre possível, talvez não haja experiência espiritual ou contato íntimo com Deus que não possua correspondência no plano material. Por conseguinte, não há também justificativa para o desprezo pelo papel do corpo nas questões espirituais.

À parte de todas essas possibilidades teóricas, no entanto, resta fazer duas considerações de grande valor prático. A primeira é um alerta contra o perigo de exagerarmos o papel da introspecção na obtenção de conhecimento espiritual. Lewis argumenta que, se nem nossas emoções se deixam apreender satisfatoriamente por um exame desse tipo, muito menos será possível compreender dessa maneira a ação do Espírito Santo ou mesmo a nossa própria condição espiritual. Na melhor das hipóteses, captaremos o resultado concretizado da transposição dessa ação ou dessa condição para o nosso intelecto, nossas emoções ou nossa imaginação. Mas embora possivelmente ninguém possua tais conhecimentos, existe ao menos um vislumbre da nossa imensa limitação, sempre acompanhado da certeza de que o que buscamos não está neste mundo: "Afirmamos apenas saber que nossa devoção visível, qualquer que tenha sido, não era puramente erótica, e que nosso visível desejo do céu, qualquer que tenha sido, não era mero desejo de longevidade, riqueza ou esplendor social. [...] Desejamos, pelo menos, um arrependimento que não é mera prudência e um amor que não é egoísmo." Já sobre o segundo ponto, relacionado ainda ao problema do reducionismo, eu não vou explicar aqui, limitando-me a transcrever, por sua importância e clareza, parte de um dos parágrafos finais, encerrando assim este resumo:

"Com certeza, você já notou que a maioria dos cães não compreende quando você aponta alguma coisa. Apontamos para um pouco de comida no chão; o cão, em vez de olhar para o chão, cheira o nosso dedo. Para ele um dedo é um dedo, nada mais. Em seu mundo tudo é fato; o significado não existe. Numa época em que predomina o realismo factual, encontramos muita gente que se induz deliberadamente esse tipo de mentalidade canina. Um homem que experimentou o amor dentro de si decidiria analisá-lo por fora e consideraria os resultados de sua análise mais verdadeiros que sua própria experiência. O cúmulo dessa cegueira voluntária é visto nas pessoas que, possuindo consciência, como o resto da humanidade, analisam e estudam o organismo humano como se ignorassem essa consciência. Enquanto perdurar essa deliberada recusa em entender as coisas de cima, mesmo quando esse entendimento é possível, é inútil falar de qualquer triunfo definitivo sobre o materialismo. A crítica feita a partir de um plano inferior contra qualquer experiência, a desconsideração voluntária do significado e a concentração no fato sempre apresentarão a mesma plausibilidade. Sempre haverá provas, provas frescas, todos os meses, de que a religião é apenas psicológica; a justiça, mera autoproteção; a política, simples economia; o amor, pura sensualidade; e o pensamento, nada mais que bioquímica do cérebro."

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