24 de outubro de 2007

Democracia intelectual

"Fé na razão não é somente fé em nossa própria razão, mas também - e ainda mais - na razão dos outros. Dessa forma, um racionalista, mesmo acreditando ser intelectualmente superior aos outros (o que lhe é difícil julgar), apenas o será na medida em que aprender, por criticismo, bem como pelos próprios erros e os alheios, pois que só se aprende, neste sentido, se se levar a sério os outros, como também seus argumentos. O racionalismo está, portanto, ligado à idéia de que a outra pessoa tem o direito de ser ouvida, e de defender seus argumentos."

Meus contatos com a filosofia de Karl Popper não foram muito intensos. Li apenas dois de seus livros: o clássico Logik der forschung (A lógica da pesquisa científica), que o tornou talvez o mais influente filósofo da ciência do século XX, e sua autobiografia intelectual, Unended quest (algo como "a busca não encerrada"), interessante não só pelos dados biográficos como também pela amplitude muito maior dos assuntos analisados, embora a própria natureza da obra inevitavelmente torne essas análises bastante superficiais. Além disso, li uma entrevista que ele concedeu pouco antes de morrer ao autor de um livro que só vale mesmo pelas entrevistas nele reproduzidas. O resto são referências em livros de divulgação científica ou sobre temas relacionados à história e à filosofia da ciência, os quais geralmente não fazem justiça às posições e intenções do filósofo austríaco, e tampouco à qualidade dos argumentos com que as defendeu. O fato de eu estar dizendo isso não significa, porém, que eu tenha grande simpatia pelas suas idéias. É verdade que ele deu várias contribuições no mínimo interessantes no seu campo de especialidade, e em muitos momentos revela uma sensatez nitidamente acima da média da filosofia contemporânea. A despeito disso, parece-me que há sérias inconsistências em certos aspectos do seu pensamento e pesadas limitações no seu conjunto. Está longe do meu objetivo imediato fazer uma análise de suas posições, embora eu pretenda fazer algo parecido com isso em outra ocasião. Independentemente do valor objetivo das concepções filosóficas de Popper, no entanto, há um sentido no qual eu o admiro profundamente. Como eu disse, não conheço em profundidade suas idéias ou sua vida, mas considero-o, dentro dos limites dos meus conhecimentos, um exemplo raro de honestidade pessoal e intelectual, especialmente no trato com pensadores com idéias opostas às suas e seus respectivos argumentos. Não posso deixar de apreciar a consideração e a cavalheiresca cordialidade com que ele os trata. Popper pode até estar errado, e freqüentemente está, mas nunca pareceu indigno do meu respeito.

A citação com que dei início a este post põe à mostra um desses momentos de lucidez intelectual a que me referi. E ela exprime bem uma coisa importante que aprendi há algum tempo. Na verdade, não é exagero dizer que é uma das coisas mais importantes que já aprendi em toda a minha vida. Não digo que aprendi isso com Popper, pois nessa época eu ainda não havia lido trecho algum do livro onde essa idéia aparece, o Logik der forschung, e mesmo o autor era ainda uma figura demasiado distante, da qual eu só ouvia falar indiretamente através dos debates travados nos anos 70 e 80 sobre criacionismo e evolucionismo, o primeiro assunto que estudei com razoável profundidade na vida. (Isso porque uma das preocupações centrais de Popper foi o estabelecimento de um critério de demarcação nítido entre as teses propriamente científicas e as demais; daí decorre a importância de Popper para os criacionistas e evolucionistas, que se apoiavam no critério proposto por ele, o da falseabilidade ou refutabilidade, para acusarem-se mutuamente de defender hipóteses extracientíficas, como, aliás, continuam a fazer até hoje.) Mas, embora não tenha sido Popper quem me ensinou tão importante lição, foi ele quem a expressou com maior clareza, e o fez justamente no trecho que transcrevi. Não é necessário preocuparmo-nos com o sentido dos termos "racionalismo" e "racionalista" nessa passagem, os quais não se referem necessariamente às correntes cientificistas desses últimos dois séculos (que, aliás, usurparam o termo de maneira bastante inapropriada), e tampouco aos antípodas do empirismo dos dois séculos anteriores. Pretendo agora apenas basear-me nessa passagem para explicar por que considero a lição embutida nela um elemento indispensável ao crescimento intelectual de quem quer que seja.

A idéia exposta por Popper é, em si mesma, muito simples, consistindo em levar os outros a sério, deixar que exponham e defendam suas posições sobre o assunto e levar isso tudo em consideração no ato de assumir uma posição própria sobre o mesmo assunto. É, portanto, uma idéia essencialmente democrática. Mais do que isso, porém: é uma concepção fundamentalmente humilde, assim como todas as idéias que funcionam, dentre as quais o exemplo mais evidente é, talvez, a própria democracia. Essa associação entre humildade e democracia, aliás, evoca quase que automaticamente a memória daquele que pode ter sido o mais perfeito exemplo ambulante de humildade intelectual: Sócrates, o grande mestre de Atenas, cuja sabedoria autêntica contrastava com a sabedoria falsa de seus antagonistas principalmente por ter como ponto de partida a consciência de sua própria limitação. Sócrates encontrou a verdadeira sabedoria ao tentar entender, profundamente intrigado, por qual razão o oráculo de Delfos o considerara o homem mais sábio de Atenas, e terminou por descobrir que era justamente porque ele não se julgava sábio, ao contrário de tantos cuja falsa pretensão de sapiência ele foi desmascarando pelo caminho. Há, porém, uma diferença importante entre a situação de Sócrates e a nossa: ele foi um dos pais fundadores, pioneiros, desbravadores da filosofia, e não tinha muitas pessoas a quem recorrer a fim de se orientar na busca pela verdade. Hoje em dia, para qualquer assunto que decidamos conhecer, há uma lista imensurável de pessoas altamente capacitadas (ou nem tanto) que empreenderam estudos a respeito. É aqui que entra a necessidade da democracia intelectual defendida por Popper, e é aqui também que se faz necessária a humildade como pré-requisito para ela.

Tudo começa com a percepção do fato óbvio de que nossas reflexões pessoais são ao menos parcialmente condicionadas por nossa experiência de vida, e esta, por mais rica e diversificada que seja, não pode jamais dar conta da imensa variedade de perspectivas que a própria realidade tem a oferecer. Estamos todos restritos a um certo ambiente cultural, intelectual e mesmo espacial e temporal, e até esse ambiente foge às nossas tentativas de abarcá-lo em sua totalidade. Isso que estou dizendo não é uma defesa do historicismo ou de qualquer forma de relativismo, pois creio que a meta primária de qualquer um que queira conhecer a verdade é constatar essas dificuldades e buscar um meio de superá-las. E não existe meio mais óbvio que esse do qual estamos falando desde o princípio. Ao indivíduo que é humilde o suficiente para perceber e admitir as limitações de sua própria perspectiva só resta buscar enriquecê-la absorvendo as idéias de outros que, ao longo da história humana, pensaram sobre o mesmo problema e forneceram suas próprias contribuições para a sua solução. Essas contribuições podem ser boas ou ruins, conforme o caso, mas é a própria multiplicidade de ângulos dos quais elas partem que faz com que as restrições do ambiente e limitações da nossa própria experiência individual e subjetiva possam, afinal, ser transcendidas rumo a um conhecimento mais seguro do objeto estudado. Pelo contato com a tradição de estudos e debates sobre o tema em pauta, absorvemos as experiências e idéias de muitos outros, e assim transcendemos, de certa forma, as fronteiras da nossa própria vivência pessoal.

O conhecimento objetivo de qualquer aspecto da realidade passa quase necessariamente, portanto, pelo conhecimento de uma tradição de reflexões, estudos e experiências a respeito do tema estudado. Quando Chesterton chamou a tradição de "democracia dos mortos", não estava estabelecendo um vínculo arbitrário entre coisas inteiramente distintas. A tradição é o lugar onde se encontram efetivamente a humildade e o respeito aos mais velhos a fim de permitir que o sujeito receba conhecimentos e, quem sabe, produza alguns novos. Sim, pois a tradição permite-se progredir, mas para isso é preciso que aquele que traz o progresso a absorva para melhorá-la a partir de dentro. É necessário conhecer aquilo que comumente se denomina o status quaestionis, o estado da questão. Se alguém pretende ser o portador da verdade sobre um assunto sem dar atenção ou sequer conhecer o que foi dito antes dele sobre o mesmo assunto por algumas das melhores mentes da história humana, podemos estar certos de que se trata de mais um charlatão desprezível que pode ser ignorado sem qualquer prejuízo para o nosso crescimento. Essa atitude arrogante e presunçosa é um exemplo específico daquele fato de ordem mais geral, segundo o qual a verdade se fecha a quem não a busca com o necessário comprometimento moral.

Para praticar essa humildade intelectual é suficiente que adotemos o pressuposto, ainda que para fins puramente metodológicos, de que as outras pessoas podem ter idéias ao menos tão boas quanto as nossas. E, se viermos a descobrir que não é o caso, ao menos não teremos negado a ninguém a oportunidade de expor e defender suas opiniões. O tradicionalismo é algo inteiramente humilde, e essa forma específica de humildade tem servido de fundamento a todas as civilizações que já existiram. Mesmo no Ocidente, até não muito tempo atrás, era considerado culto e educado o homem que conhecia ao menos os textos mais importantes produzidos pela nossa civilização e suas antepassadas diretas. Mas a presunção modernista, empenhada em opor-se a todas as tradições ou em progredir à margem das mesmas, acabou fatalmente, pela sua própria natureza, produzindo mais ignorância e ruína cultural, moral e mesmo material do que qualquer problema que ela tenha se proposto a resolver.

21 de outubro de 2007

Resposta a um vago desafio

Recentemente, dois de meus melhores amigos, Otávio e Nelson, lançaram-me um desafio. Trata-se de uma espécie de corrente, na qual cada um que o cumpre deve lançá-lo sobre outras sete pessoas. Nunca gostei nem participei de correntes desse tipo por achar que sempre há coisas mais interessantes a fazer. Além disso, sempre pensei que fazer algo pelo simples motivo de ter sido desafiado a fazê-lo é coisa de adolescente, embora eu jamais tenha sido tão adolescente assim. Por isso, sinto-me na obrigação de explicar por quê resolvi aceitar esta empreitada. São basicamente dois fatores. Um deles é que achei que seria uma boa oportunidade de contar acerca de mim mesmo fatos que de outro modo jamais entrariam neste blog, nem poderiam ser deduzidos por quem lesse meus textos. Mas se a primeira razão fez parecer-me vantajoso aceitar o desafio, a segunda tornou essa decisão irresistível: é que nenhum dos dois desafiantes soube me dizer com absoluta certeza em quê ele consiste. Vendo-me solicitado a fazer algo que não sei exatamente o que é, só me restou tomar a mesma decisão que Gabriel Syme, personagem de O homem que foi Quinta-feira, ao ver-se confrontado por situação semelhante. E a resposta dele foi: "Seu oferecimento é tão insensato que não merece recusa". Mas isso tudo é apenas um pequeno exagero. Meus dois amigos souberam definir com razoável precisão o que eu deveria fazer, já que eles próprios já tinham feito a mesma coisa. Quem quiser pode conferir nos seus respectivos blogs, que estão na seção de links ao lado. Pelo que entendi, devo contar sete coisas sobre mim mesmo, sejam elas de que tipo forem. Pouco importa que se refiram ao passado ou ao futuro, a acontecimentos dados no mundo exterior ou restritos à esfera da subjetividade, que sejam eventos localizáveis no tempo ou modos de ser permanentes. Antes de dar início, porém, devo fazer um breve aviso: não aceitei o desafio completamente. Contarei sete coisas sobre mim mesmo, mas não desafiarei sete pessoas a fazer o mesmo. Se algum leitor tem um blog e acha a proposta interessante, sinta-se livre para realizá-la. Consinto em fazer parte da corrente, mas não como seu propagador. E não me sinto culpado por isso, pois, tendo aceitado a parte difícil do desafio, sinto-me no direito de recusar a parte fácil. Sendo assim, aqui vão as sete primeiras coisas que passaram pela minha cabeça agora há pouco.

1. Nesses vinte e três anos e três meses de vida morei em nada menos que vinte casas diferentes. Embora em um ou outro caso essas mudanças de residência não tenham acarretado uma substituição correspondente do meu círculo de amigos, na quase totalidade das vezes foi exatamente isso o que ocorreu. Provavelmente foi isso o que me impediu de ter amigos de infância; de modo geral, aliás, nenhuma das pessoas que hoje fazem parte da minha vida estava presente quinze anos atrás, exceção feita a alguns parentes (os que têm mais de quinze anos, obviamente). Cada vez que eu me acostumava a um novo bairro ou cidade e às novas companhias, ou mesmo antes que isso acontecesse, lá íamos nós de novo para uma nova aventura. Lembro-me de ter chorado por causa disso umas duas vezes, sendo a última quando eu tinha doze anos. O lado positivo disso tudo é que essa experiência me fez mais facilmente adaptável a novos ambientes e circunstâncias. Mas desconfio que esse modo de vida trouxe também um outro efeito sobre a minha personalidade posterior, que é a quase total incapacidade de sentir em grau considerável a falta de quem está longe, embora eu jamais tenha deixado de me importar com alguém por esse motivo. Não acho isso particularmente ruim, mas ainda não consegui arrumar um jeito agradável de dizê-lo às pessoas. Algum tempo atrás, quando tentei explicar isso a uma colega enquanto almoçávamos juntos, ela retorquiu: "Então quando eu for embora você não vai sentir a minha falta?". Surpreendido por esse rumo inesperado que a conversa tomou, tive de responder que era algo mais ou menos assim mesmo. Sem dúvida minha interlocutora não ficou muito satisfeita, mas nada havia que eu pudesse fazer. Se eu tivesse dito "Não, você é uma exceção!", além de não ser verdade, poderia parecer que eu estava dando em cima da moça. Preferi, portanto, deixar as coisas como estavam.

2. De todos os jogos de computador que apreciei na vida, que não foram muitos, provavelmente nenhum me divertiu tanto ou por tanto tempo quanto o Warcraft II: tides of darkness (com exceção, é claro, do imbatível Campo minado). Caso alguém não conheça, é um jogo de estratégia militar medieval fantástica, na qual homens, elfos, gnomos e anões se juntam para combater orcs, trolls, goblins, mortos-vivos e outros. Eu não só fiquei razoavelmente bom nesse jogo e suas sutilezas estratégicas a ponto de ser capaz de fazer frente ao computador com um exército quatro vezes menor (o que, admito, não era tão difícil assim), mas também traduzi todos os textos que apareciam na introdução de cada uma das 28 fases, a fim de compreender toda a história da guerra que se desenrolava. Foi a primeira vez que traduzi algo por livre vontade, e o fiz com grande dificuldade, em meados da minha adolescência. Eis o que houve de positivo nisso tudo. Foi tudo muito divertido, mas essa etapa da minha vida passou sem que eu me apercebesse disso. Na última vez em que tentei jogar, há cerca de dois anos, descobri que não tenho mais a mínima paciência para pensar em estratégias, esperar o momento certo de atacar ou mesmo simplesmente analisar adequadamente o terreno. Simplesmente fiz um monte de soldados e os mandei para o front desordenadamente, terminando por obter uma vitória sofrível com um exército várias vezes superior ao que teria sido preciso alguns anos antes. E assim terminou, sem glórias nem lamentos, uma brilhante carreira militar.

3. Quem me conhece sabe que pareço terrivelmente distraído. O que pouca gente sabe é que na verdade sou mais distraído do que pareço, pois também estou voando em muitas situações nas quais pareço estar perfeitamente atento ao que se passa. Descobri há algum tempo que meu cérebro parece ser organizado de modo a absorver melhor o que entra pelos olhos do que o que ingressa através dos ouvidos. Assim, por exemplo, dificilmente me distraio lendo um livro. Sou até capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo (como ler vários textos, escrever um e-mail e conversar pelo MSN) alternando a atenção entre as diversas atividades sem perder a linha de raciocínio em nenhuma delas. Em relação aos ouvidos, ao contrário, uma atividade só já é muito. Dificilmente consigo escutar uma música inteira, por exemplo. Assistir aulas e palestras sem me distrair pelo menos cinco vezes é algo quase impossível, por mais curtas e interessantes que sejam. Isso se aplica também aos sermões e às orações proferidas em voz alta na igreja. E às vezes ocorre até mesmo em conversas pessoais. Essa última situação é, aliás, a pior de todas, especialmente se eu sou o único suposto ouvinte. Não sei se tenho algum distúrbio neurológico, mas, de qualquer forma, peço que tenham paciência comigo. E sugiro a quem porventura tenha algo muito importante a me dizer que o faça por e-mail.

4. Quando eu tinha seis ou sete anos minha professora resolveu que faríamos aquela célebre atividade de plantar grãos de feijão em caixas de ovo, com diferentes materiais em cada cavidade: algodão, terra, areia e assim por diante. Gostei tanto da idéia que, encerrada a atividade, resolvi plantar feijões no canteiro de casa. A empolgação não durou mais que alguns dias, em vista da minha impaciência para esperar que os brotos crescessem. E, quando finalmente cresceram, eu havia perdido completamente o interesse no assunto, embora me lembre de ter colhido algumas vagens e me sentido muito orgulhoso quando minha mãe as cozinhou e serviu no jantar. Mas o fato é que não tive mérito algum além de jogar os grãos no canteiro e cobri-los com terra; jamais os reguei, a despeito do tempo seco e das admoestações da minha mãe. O resultado é que, pouco depois de terem dado os primeiros frutos, as plantinhas murcharam e secaram, embora não tenham morrido. Eu não me importei com isso. Mas quando um bando de formigas construiu uma imponente edificação no mesmo canteiro e começou a se alimentar dos meus pés de feijão, dando-lhes a única utilidade que poderiam ter depois do meu péssimo comportamento, aí sim fiquei furioso. Fingindo (até para mim mesmo) que estava preocupadíssimo com as plantas, destruí o formigueiro e enchi o canteiro de água. Foi só algumas horas mais tarde que percebi que na verdade tudo o que eu queria era ver aquele edifício de terra desmoronando, torturar as formiguinhas e vê-las se debatendo na água. Há muitos aspectos da maldade humana exemplificados nesse episódio, e ele demonstra que eu tinha dentro de mim todo o potencial necessário para me tornar um Mao, um Stalin ou um Hitler quando crescesse.

5. Eu poderia encher dez desafios como este contando coisas que me aconteceram em sonhos. Mas não posso deixar de mencionar aquilo que mais me apavora em alguns deles. Já sonhei com fantasmas, zumbis, alienígenas, índios canibais, bandidos armados, ninjas, bruxas, ogros, animais perigosos, batalhas e até mulheres sem sentir nenhum medo. Mas lembro-me de alguns sonhos que me deixaram apavorado, e eles consistiam simplesmente na perda do controle sobre meu próprio corpo. Houve uma ocasião em que eu queria subir uma escada, por alguma razão qualquer, e descobri que subitamente eu havia me tornado pesado demais até para conseguir me arrastar. Em outro sonho eu voava tão facilmente como os personagens do filme O tigre e o dragão, mas não era jamais capaz de pousar onde eu queria. E o pior de todos, pelo que me lembro, foi um em que havia um amigo meu apanhando a poucos metros de mim. Eu tentava me aproximar para ajudá-lo, mas na verdade meus pés mal tocavam o chão. Eu estava, de repente, tão leve que precisava me esforçar para não ser levado pelo vento.

6. O primeiro computador que tive em casa foi comprado pelo meu pai em 1996, já usado. Apesar disso, só quatro anos depois me tornei usuário da internet. Destaco uma dentre as diferenças que isso fez na minha vida: dei adeus definitivamente ao hábito de pensar longamente antes de dormir. Desde criança eu funcionava melhor à noite, acordava sempre tão tarde quanto minha mãe me permitia e estava quase invariavelmente sem sono quando ela me mandava para a cama. Não podendo decidir por mim mesmo o horário de ficar na cama, eu permanecia lá pensando em milhões de coisas até que o sono viesse. Com a descoberta da internet, passei a gastar esse tempo na frente do computador, só indo dormir quando o sono se tornava irresistível. E pouco tempo depois saí de casa para estudar, o que me permitiu manter o hábito de não ir para a cama sem ter sono. Embora em muitas ocasiões eu tenha aproveitado bem essa liberdade, acredito que o resultado geral foi negativo, pois eu perdi o horário fixo (de uma ou duas horas) no qual não tinha outra coisa a fazer além de pensar, que é seguramente uma das atividades mais saudáveis que existem. Hoje tento recuperar esses momentos quando estou indo ou voltando do trabalho, ou da igreja, ou entre um capítulo e outro de um livro, ou quando estou em alguma fila, ou ainda quando estou viajando. O resultado é que, apesar de eu não saber se a qualidade dos meus pensamentos melhorou ou não nos últimos sete anos, posso dizer com certeza que a quantidade deles diminuiu.

7. Ainda guardo na casa dos meus pais a maior parte dos melhores brinquedos que me divertiram na infância. Não sei exatamente qual é a razão pela qual faço isso, mas o fato é que ainda não consegui me livrar deles. Mas quando digo "melhores brinquedos", não me refiro aos mais caros, nem aos de melhor qualidade, e tampouco aos mais bonitos. Foram-se todos os carrinhos cheios de luzes ou guiados por controle remoto e muitos outros brinquedos que agradam aos adultos mais que às crianças. A quase totalidade dos meus brinquedos que não se quebraram foi gradualmente doada a crianças cujos pais não podiam comprar coisas semelhantes. Mas minha mãe, a quem cabia sempre essa iniciativa, jamais doou algum deles sem o meu consentimento. Dei quase todos, mas não aqueles que me proporcionaram mais momentos de saudável diversão, e com os quais eu brincava quase diariamente: os homenzinhos de todas as procedências, os animaizinhos de plástico ou borracha, os times de futebol de botão (meu irmão e eu ainda planejamos realizar uma partida qualquer hora dessas), os conjuntos de montar e poucas coisas mais. Dou destaque especial ao que provavelmente é o meu brinquedo mais querido, e um dos primeiros de que tenho lembrança: um cachorro de plástico com rodinhas nas patas que, por meio de um engenhoso arranjo de peças de ferro em seu oco interior, abana o rabo e a cabeça quando anda. Ele está todo ralado e desbotado, perdeu as orelhas ao ser atropelado por uma bicicleta e o rabo foi reenxertado após um acidente semelhante, mas nada neste mundo me fará jogá-lo fora. E o que mais me espanta é que só agora, enquanto escrevo estas palavras, me ocorre que jamais pensei em colocar-lhe um nome.

18 de outubro de 2007

Novas criações

Eu gostaria de ter publicado o texto de hoje durante a semana passada, de preferência na sexta-feira, Dia das Crianças. Mas a viagem a João Pessoa, os afazeres que se acumularam por aqui nesses dias de ausência e um pouco de preguiça acabaram impedindo que o texto saísse antes de hoje. Mas o esforço da leitura compensa, apesar do atraso, inclusive porque o texto não é meu, e sim de um escritor muito melhor e mais digno de atenção. Esse breve artigo, que se tornou um dos meus preferidos tão logo o li, foi encontrado numa coletânea de ensaios e poemas de G. K. Chesterton chamado Brave new family, em alusão ao Brave new world de Aldous Huxley. Publicado em 1990, esse volume traz textos curtos sobre a família, o casamento, o divórcio, os pais, os filhos, o marido, a esposa e outros temas relacionados a esses em diversos aspectos. É daí que traduzi o texto que agora reproduzo neste blog. Fala sobre as crianças ou, mais precisamente, sobre o modo como as crianças são e sobre o modo pelo qual as enxergamos e tratamos. Escrito no estilo inconfundivelmente belo da prosa de seu autor, o ensaio dá ainda uma amostra da razão pelo qual Chesterton é considerado por muitos o mestre do paradoxo. Assim como os demais textos do escritor inglês, este também contém inúmeras lições importantes em forma embrionária. Transparece ainda o imenso amor de Chesterton pelas crianças, sem, contudo, que surja o mais leve sinal de frustração pelo fato de que ele e sua esposa jamais puderam ter filhos.

Não me delongarei nestas palavras introdutórias, mas há ainda um ponto que merece menção. A edição do Brave new family que encontrei na biblioteca da UFSCar e onde fui buscar esse artigo não era inglesa ou americana, e sim uma tradução espanhola, que recebeu o título El amor o la fuerza del sino ("o amor ou a força do destino", em referência às seguintes palavras do papa João Paulo II: "O amor é um constante desafio que o próprio Deus nos lança, e creio que ele o lança para que desafiemos a força do destino"). A importância disso reside, naturalmente, no fato de que o que estou apresentando é a tradução da tradução de um texto cujo original nunca vi e não fui capaz de localizar, de modo que a probabilidade de haver erros consideráveis não pode ser desprezada. Mas não creio que isso chegue a comprometer seriamente o conteúdo daquilo que Chesterton intentava nos transmitir, como de fato o fez de modo tão admirável.

Em defesa do culto à criança

As duas coisas que tornam as crianças tão atraentes para quase todas as pessoas normais são: em primeiro lugar, que são muito sérias; e em segundo que, conseqüentemente, são muito felizes. São alegres com aquela perfeição que só é possível na ausência de humor. As escolas e os sábios mais insondáveis não alcançaram jamais a gravidade que mora nos olhos de uma criança de três meses de idade. É a gravidade de seu assombro diante do universo, e assombro diante do universo não é misticismo, e sim um senso comum transcendente. O fascínio das crianças consiste em que com cada uma delas todas as coisas são feitas de novo, e o universo se põe novamente à prova. Quando passeamos pelas ruas e vemos abaixo de nós essas deliciosas cabeças bulbosas - três vezes maiores que os corpos - que definem esses cogumelos humanos, deveríamos sempre e em primeiro lugar recordar que dentro de cada uma dessas cabeças há um novo universo, tão novo quanto foi o sétimo dia da criação. Em cada um desses orbes há um novo sistema estelar, nova erva, novas cidades, um novo mar.

Sempre há na mente sã uma obscura sugestão de que a religião nos ensina a escavar mais do que a escalar; uma insinuação de que, se pudéssemos entender de uma vez o barro comum da terra, entenderíamos todas as coisas. De maneira similar, abrigamos uma sensação de que, se pudéssemos destruir de um golpe o hábito e ver as estrelas como as vê uma criança, não nos faria falta nenhum outro apocalipse. Esta é a grande verdade que sempre respaldou o "culto à criança" e que o apoiará até o final. A maturidade, com suas energias e aspirações sem fim, pode facilmente convencer-se de que encontrará coisas novas para apreciar; mas nunca ficará convencida de que soube apreciar apropriadamente aquilo que já encontrou. Podemos escalar os céus e encontrar inumeráveis estrelas novas, mas sempre restará a nova estrela que não encontramos, aquela na qual nascemos.

É-nos forçoso, de fato, remodelar nossa conduta segundo essa teoria revolucionária do caráter maravilhoso de todas as coisas. Ainda quando somos perfeitamente simples ou ignorantes, a verdade é que tratamos a linguagem das crianças como algo maravilhoso, o andar das crianças como maravilhoso e a inteligência normal das crianças como algo maravilhoso. O filósofo cínico se agrada em pensar que nessa questão ele é superior, que pode rir-se quando demonstra que as palavras ou as brincadeiras da criança são coisas bastante comuns e ordinárias. Mas o fato é que é aqui que o culto à criança está profundamente certo. Qualquer palavra e qualquer brincadeira é assombrosa se vinda de um monte de barro; as palavras e brincadeiras da criança são assombrosas; e também é justo dizer que as palavras e brincadeiras do filósofo são igualmente assombrosas.

A verdade é que nossa atitude frente às crianças é correta, ao passo que nossa atitude frente aos adultos está equivocada. Nossa atitude frente aos da nossa idade consiste em uma solenidade servil que encobre um grau considerável de indiferença ou desprezo. Nossa atitude face às crianças consiste em uma indulgência condescendente que encobre um respeito insondável. Inclinamo-nos diante dos adultos, tiramos o chapéu para eles, abstemo-nos de contrariar seus planos, mas não os apreciamos adequadamente. Fazemos nossas crianças de bobas, damos-lhes sermões, puxamos-lhes as orelhas, mas as respeitamos, gostamos delas e as tememos. Quando respeitamos algumas coisas na pessoa madura, costumam ser suas virtudes ou sua sabedoria, o que é bem fácil. Mas respeitamos as faltas e os desatinos das crianças.

Provavelmente chegaríamos muito mais perto da verdade sobre as coisas se tratássemos todos os adultos, de qualquer título ou tipo, precisamente com esse carinho obscuro e respeito deslumbrado com que tratamos as limitações infantis. É difícil para a criança realizar o milagre da fala, e conseqüentemente nos parece que seus equívocos são tão maravilhosos quanto seus acertos. Se adotássemos a mesma atitude frente ao primeiro-ministro ou ao ministro da fazenda, se afavelmente os mimássemos em seus balbuciantes e divertidos intentos de falar como seres humanos, nossa visão seria muito mais sábia e tolerante. Uma criança tem astúcia para fazer na vida experimentos que em geral são saudáveis quanto aos seus motivos, mas freqüentemente intoleráveis na comunidade doméstica. Se pudéssemos tratar todos os comerciantes ladrões e tiranos presunçosos da mesma maneira, se reprovássemos com suavidade suas brutalidades como se fossem pitorescos equívocos no desempenho da vida, se lhes disséssemos simplesmente que "entenderão quando forem maiores", estaríamos provavelmente adotando a melhor e mais esmagadora atitude que pode haver frente às debilidades da humanidade. Em nossas relações com as crianças demonstramos que o paradoxo é de todo verdadeiro, que é possível combinar uma anistia muito próxima do desprezo com uma adoração muito próxima do terror. Perdoamos as crianças com o mesmo tipo de blasfema delicadeza com que Omar Khayyam perdoava o Todo-poderoso.

A retidão essencial de nossa atitude frente às crianças se encontra no fato de que sentimos que tanto elas quanto seu modo de comportarem-se são sobrenaturais, enquanto que, por alguma misteriosa razão, não temos o mesmo sentimento sobre nós nem sobre nosso modo de nos comportarmos. A própria pequenez das crianças torna possível que olhemos para elas como se fossem prodígios maravilhosos; dá-nos a impressão de que estamos lidando com uma nova raça que só se pode ver ao microscópio. Duvido que alguém com um mínimo de ternura e imaginação possa ver a mão de uma criança sem ficar um pouco assustado. É tremendo pensar na essencial energia humana que move algo tão diminuto; é como imaginar que a natureza humana pudesse viver na asa de uma borboleta ou na folha de uma árvore. Ao contemplar vidas tão humanas e apesar disso tão pequenas, sentimos como se nós próprios tivéssemos inchado até alcançar dimensões vergonhosas. Sentimos, frente a essas criaturas, o mesmo tipo de obrigação que poderia sentir uma divindade se houvesse criado algo que não pudesse entender.

Talvez o aspecto engraçado das crianças seja o mais carinhoso e atraente de todos os vínculos que mantêm coeso o universo. A pesada dignidade de suas volumosas cabeças é mais enternecedora que qualquer medida de humildade. Sua solenidade oferece-nos mais esperança por todas as coisas que mil carnavais de otimismo. Seus olhos grandes e brilhantes parecem conter em sua admiração todas as estrelas. A ausência fascinante do nariz parece dar-nos a insinuação mais perfeita do humor que nos aguarda no reino dos céus.

17 de outubro de 2007

Memórias litorâneas

Sinto que hoje preciso quebrar um pouco a rotina deste blog, tão afeita a dissertações filosóficas, teológicas e literárias, dentre outras, para produzir um texto algo mais narrativo. Para ser mais exato, pretendo contar algo da viagem que fiz na semana passada a João Pessoa. Chesterton disse certa vez que "um homem bem pode ser menos convencido de uma filosofia por quatro livros do que por um livro, uma batalha, uma paisagem e um velho amigo". Embora essa viagem que fiz não tenha me convencido de filosofia alguma, não deixa de ser verdade que experiências mais concretas como essa contribuem significativamente para o enriquecimento pessoal, mesmo em se tratando de sujeitos altamente teóricos para os quais o aprendizado através dos livros é sempre mais fácil, como é o meu caso. Além disso, o simples fato de ter sido a primeira vez, em toda a minha vida, que saí do estado de São Paulo já basta para explicar em parte o motivo pelo qual essa viagem foi tão marcante, bem como o fato de eu desejar falar sobre ela enquanto as memórias estão frescas em minha mente.

O caráter excepcional dessa coisa toda começou ainda muito antes que eu pusesse os pés em algum lugar mais distante do meu local de nascimento, pois eu também nunca havia andado de avião. O vôo de ida foi noturno, de modo que não deu para ver nada de lá de cima. Ainda assim, achei a experiência muito boa. A decolagem é melhor que o pouso, e para mim o melhor momento foi quando senti que estávamos saindo do chão. De resto, fiquei com a impressão de estar num ônibus enorme que, embora andasse por uma estrada um pouco esburacada (sim, pois as ocasionais trepidações me faziam pensar se não havia de fato buracos no céu), tinha a inegável vantagem de contar com moças servindo lanchinhos, sucos e refrigerantes. Como meus companheiros de viagem resolveram cochilar, passei as quatro horas do vôo entretido com os sudokus da revistinha que me forneceram. A volta foi bem mais complicada e cansativa: com o vôo cancelado por problemas no avião, ficamos seis horas no aeroporto esperando que resolvessem o que fazer conosco. Mas pelo menos foi graças a isso que decolamos na tarde subseqüente à madrugada em que deveríamos ter decolado, de modo que pude ter uma vista inesquecivelmente bela do mundo lá embaixo.

Do evento que motivou a nossa viagem, o Encontro Nacional de Química Analítica, não tenho muito que falar. Apresentei um painel sobre um tema em que trabalhei na Embrapa no semestre passado, a diferenciação de variedades de citros usando espectroscopia de fluorescência, que suscitou o interesse de quatro pessoas. Não tive, porém, a mesma sorte que elas, pois nos meus passeios por entre os painéis não encontrei um único que me interessasse. Química já não é um assunto dos meus preferidos, e não cheguei sequer a entender parte dos títulos que li. Creio que os únicos trabalhos que poderiam me ser úteis eram os de quimiometria, mas infelizmente não pude vê-los porque todos os painéis dessa área foram apresentados no mesmo horário em que eu apresentei o meu.

Houve outros pequenos infortúnios. A caipirinha de lá não é muito boa; em compensação, tomei sucos de frutas das quais nunca havia ouvido falar, dentre as quais destaco a mangaba. Choveu no coquetel de abertura do congresso, molhando todos os salgadinhos, que se encontravam expostos sobre as mesas ao ar livre; pelo menos eu já havia comido bastante quando isso aconteceu. Quando meu amigo Metralha e eu fomos ao ponto mais oriental do continente, o Farol do Cabo Branco, para ver o sol nascer, também o tempo nublado nos frustrou, embora a paisagem tenha, ainda assim, feito valer a pena a caminhada de uma hora. E choveu também quando fomos ver o pôr-do-sol na margem do Rio Paraíba (a Praia do Jacaré) ao som do Bolero de Ravel. Não vimos o sol declinar, mas garanto que foi, pelo menos, o crepúsculo mais belo que já ouvi.

O clima de João Pessoa é, aliás, surpreendente por si mesmo, e merece descrição mais detalhada. O calor é intenso, e o sol queima mesmo em tempo nublado; que o digam minhas canelas, onde esqueci de passar o protetor solar em um dos passeios pela praia. A sensação de calor é, porém, significativamente atenuada pelos ventos fortes e constantes que parecem jamais cessar. Houve chuva em todos os dias, várias vezes por dia, embora só uma das chuvas que vi tenha persistido por uma hora. E a combinação de uma longitude significativamente menor com um fuso horário idêntico ao de Brasília produz um fenômeno que me surpreendeu, a despeito de sua obviedade: nesta época do ano o sol nasce lá pelas quatro e meia da manhã e se põe antes das cinco e meia da tarde. A fim de ver o sol nascer, precisei acordar às três e pouco da madrugada. Por falar nisso, cabe observar que, mesmo nessas caminhadas noturnas, não vi nem ouvi falar de qualquer sinal de assaltos, prostituição e outras coisas que é de se esperar que existam em lugares assim, especialmente numa cidade com seiscentos mil habitantes. E as praias são limpas.

Não fiz novos amigos no local, e minhas companhias (muito agradáveis, aliás) foram mesmo os colegas de trabalho que foram comigo até lá: o Metralha, a Vivian, a Ana Flávia e a Lucimar. Apesar disso, não pude deixar de apreciar profundamente o povo da cidade, por sua charmosa simplicidade e sua extraordinária amabilidade. Se houvesse encontrado essa recepção apenas por parte dos funcionários do hotel poderia até achar normal, pois eles são pagos para isso (embora não por mim, no caso, pois minha bolsa jamais me permitiria pagar um hotel como aquele, para não falar nas passagens de avião). Aliás, não pude deixar de ficar um tanto encabulado ao ser subitamente jogado nesse ambiente com dezenas de pessoas prontas a me servir nos mais mínimos detalhes, como se eu fosse alguém importante. Mas o fato é que encontrei uma atitude parecida entre o povo da cidade, desde os vendedores das lojinhas e garçons dos quiosques até os taxistas e as pessoas que estavam na praia, com destaque especial para os motoristas, que não hesitavam em parar à menor sugestão de que pretendíamos cruzar a faixa de segurança. Quem está acostumado com o trânsito em São Paulo, mesmo no interior, pode facilmente imaginar o tamanho da minha surpresa diante desses acontecimentos, que se repetiram durante toda a semana sem causar qualquer declínio na minha estupefação. Também chamou a minha atenção a ausência total de descendentes de orientais entre os habitantes da cidade: todos os que vi por lá eram de longe, a começar pela minha amiga Vivi; assim como o sotaque característico, nitidamente nordestino sem deixar de ser completamente inteligível (ou quase). Não nos era possível esquecer que estávamos no nordeste. A não ser em uma ocasião em que, andando na praia em direção ao sul, escutei um funk, ao invés do forró que imperava absoluto; por um momento me ocorreu que talvez eu tivesse distraidamente caminhado um pouco demais e ido parar nas praias do Rio de Janeiro.

Mas não posso encerrar este post sem falar da coisa mais grandiosa e óbvia que vi por aquelas bandas: o mar. Para alguns talvez seja difícil entender minha empolgação com esse fato, e confesso que eu mesmo não esperava sentir isso. Mas é compreensível se for levado em consideração que, antes dessa viagem, eu havia visto o mar uma única vez, há sete anos, quando permaneci duas ou três horas numa praia do litoral norte paulista, que não se compara às de João Pessoa. Desta vez, porém, tive tempo de sobra para sentir a água batendo nas minhas pernas, ver a areia indo e vindo, observar os bichinhos estranhos na areia e, acima de tudo, ouvir o som constante e eternamente repetitivo daquela bela e monstruosa massa de água. Há algo no som da água e no seu aspecto, nesses ambientes naturais, que traz uma estranha espécie de tranqüilidade, ao mesmo tempo em que estimula igualmente a razão, a imaginação e a emoção. Não sei explicar; só sei que ali é um excelente lugar para pensar na vida e elevar a alma até Deus. Contemplando em silêncio aquela areia e aquela água que enchiam meus sentidos, não pude deixar de dizer, intimamente embevecido: "Obrigado, Senhor, por ter feito o mar".

Pode-se, talvez, levantar objeções a esses meus sentimentos religiosos enquanto tais ou à importância espiritual dos mesmos, mas permanece o fato psicológico de que a proximidade do oceano trouxe um efeito enormemente benéfico (eu poderia dizer "terapêutico") sobre a minha mente. É bem possível e até provável que esse efeito seja, no fim das contas, puramente orgânico. De qualquer forma, penso que essa experiência não é só minha, não só porque pessoas que conheço já relataram sensações parecidas, mas também porque naquele momento não pude deixar de me lembrar que Tolkien parece ter falado dessa mesma coisa ao seu próprio modo, literário e mitológico, no Ainulindalë, o conto da criação de Arda. É dito que quando Ilúvatar, o Todo-poderoso, mostrou à multidão dos Ainur (seres celestiais criados por ele) uma visão do mundo vindouro, inspirada nos temas da música que eles próprios haviam acabado de entoar, a reação deles foi de perplexidade, por entenderem, pela primeira vez, que a Música tinha outro propósito além de sua própria beleza. E prossegue:

"Já os outros Ainur contemplaram essa habitação instalada nos vastos espaços do Universo, que os elfos chamam de Arda, a Terra; e seus corações se alegraram com a luz, e seus olhos, enxergando muitas cores, se encheram de contentamento; porém, o bramido do oceano lhes trouxe muita inquietação. E observaram os ventos e o ar, e as matérias das quais Arda era feita: de ferro, pedra, prata, ouro e muitas substâncias. Mas de todas era a água a que mais enalteciam. E dizem os eldar que na água ainda vive o eco da Música dos Ainur mais do que em qualquer outra substância existente na Terra; e muitos dos Filhos de Ilúvatar escutam, ainda insaciados, as vozes do Oceano, sem contudo saber por que o fazem."

2 de outubro de 2007

O Verbo que não se fez carne

Nesta semana resolvi reler um interessante livro que adquiri há mais de dois anos e que fala sobre a ecdótica ou crítica textual (isto é, a ciência que procura reconstituir fidedignamente a forma original de um texto antigo a partir das cópias posteriores que chegaram até nós) do Novo Testamento e algumas questões correlacionadas. Não será esse o assunto de hoje, embora seja um tema muito interessante e eu pretenda discorrer sobre ele futuramente. Mas acredito que foi em parte por causa dessa releitura que eu me lembrei de uma discussão que tive há mais de dois anos sobre a identidade de Jesus Cristo e a natureza de sua mensagem, discussão que rapidamente desviou-se, como é natural, rumo a considerações mais epistemológicas, ou seja, questões sobre a confiabilidade histórica dos evangelhos e a maneira mais justa de interpretá-los. Meu interlocutor era um ótimo sujeito e tinha grande interesse em história, bem como fortes simpatias pelo budismo, sobre o qual, aliás, ensinou-me uma porção de coisas.

Dentre os vários aspectos do problema abordados por nós, entretanto, desejo discutir apenas um, que julgo de particular importância por ser recorrente em muitas discussões modernas sobre o Jesus histórico. Antes de começarmos a discutir se os relatos bíblicos sobre Jesus são fidedignos ou não, cabe perguntar se os autores de tais relatos pretendiam, para início de conversa, que suas composições fossem descrições historicamente exatas de Cristo. Essa é a questão; e, segundo o sujeito que mencionei, bem como muitos outros, a resposta é negativa. Analogamente ao que ocorre no budismo, as narrativas cristãs sobre seu Mestre seriam destinadas apenas a ilustrar didaticamente os princípios da doutrina, não sendo necessário ou mesmo relevante discutir a historicidade das mesmas. Muitos têm chegado a uma conclusão semelhante por muitos caminhos diferentes. Em qualquer caso, é uma posição da qual eu discordo. E, a fim de explicar as razões desse desacordo, ofereço sucintamente as considerações seguintes, que sem dúvida não esgotam o tema, de modo que devo voltar a dissertar sobre isso num post futuro.

Provavelmente a maior parte da força real ou imaginária dessa teoria reside no pressuposto de que não pode (ou não deve) haver dependência alguma entre fatos e valores. Ou, dizendo mais precisamente, uma doutrina religiosa deveria consistir de nada mais que um punhado de afirmações sobre a natureza última da realidade e de um punhado de princípios morais (talvez até fosse melhor que o primeiro punhado fosse dispensado). O rapaz que mencionei percebeu e explicitou esse ponto, na esperança de que eu visse nisso a prova de não sei quais qualidades superiores do budismo em contraste com o cristianismo histórico que eu professo. Creio que ele se decepcionou quando eu não me mostrei muito impressionado com sua tentativa algo velada de desqualificar qualquer outra forma de religião como inferior ou impura, como uma tentativa algo primitiva ou antropomórfica de confundir dois níveis inteiramente distintos da realidade. Mas, embora essa seja uma idéia muito moderna e possa ser irresistivelmente adornada por uma linguagem de sabedoria oriental (ou talvez justamente por isso), de fato não me impressionou, parecendo-me antes um mero disfarce destinado a encobrir a admissão de pressupostos totalmente gratuitos. Afinal, talvez a realidade última seja pessoal. E talvez Deus realmente não tenha se contentado em meramente criar e sustentar o mundo, mas tenha preferido intervir na sua história de maneira mais direta. E talvez, nesse ato, ele tenha feito alguma coisa tão importante que isso faça toda a diferença na hora de elaborar um sistema religioso, uma doutrina filosófica ou mesmo um código de conduta moral. Todas essas (ou pelo menos as duas últimas) são possibilidades reais que são, no entanto, prontamente desprezadas por uma abstração filosófica como essa com que estamos lidando. Desconfio que não seria justo dizer que essa é uma idéia genuinamente oriental; de qualquer forma, minha ignorância não me permite discorrer sobre isso. Mas não há dúvida de que é uma idéia completamente moderna. Combina muito bem com aquela mania kantiana da contraposição entre fé e razão, ou mesmo com aquele singular acordo de paz proposto pelo paleontólogo darwinista Stephen Jay Gould, pelo qual seus antagonistas religiosos abririam mão da pretensão aos fatos e, em troca, poderiam ficar com tudo o que restasse.

Num ambiente assim, é natural que qualquer sugestão de uma religião que pretenda legitimar-se com base em fatos históricos seja logo recebida com denúncias antifundamentalistas, diante de sua semelhança demasiado óbvia com o famigerado criacionismo, ou mesmo com as velhas superstições politeístas sobre deuses que a todo momento se metiam nos assuntos humanos. Um religioso moderno e bem informado deveria saber que não pode crer em semelhantes bobagens, e que um Deus que insiste em fazer alguma coisa, não se contentando com o mero direito à existência que os bondosos pensadores modernos tão generosamente lhe concedem, não é uma divindade digna da sua adoração. Quem quer que chegue a essa conclusão acabará percebendo, mais cedo ou mais tarde, que está indo contra toda a tradição do cristianismo. Mas o sujeito jamais extrairá daí a conclusão, mesmo hipotética, de que está indo contra as palavras (e atos) do próprio fundador da religião cristã. Pois a popularidade de Jesus, mesmo fora dos meios autenticamente cristãos, é impressionantemente alta. Eis a razão pela qual a quase totalidade dos que inventaram novas bobagens ou reformularam bobagens antigas sobre religião nos últimos duzentos anos quiseram certificar-se de que estavam apenas revigorando as incompreendidas (ou mesmo inexpressas) intenções de Jesus. É natural, portanto, que o sujeito atribua a ele também a sua própria concepção modernista sobre a natureza da relação entre os princípios supratemporais da doutrina cristã e sua manifestação histórica na vida do fundador da mesma, e a partir daí passe a considerar absurda a mera possibilidade de que Jesus ou seus discípulos pudessem ter uma opinião diferente. Uma vez estabelecida dessa forma a absoluta impossibilidade da coexistência entre doutrinas e fatos, segue-se automaticamente que, se alguém alega estar comunicando uma doutrina, não pode ter ao mesmo tempo a pretensão de transmitir fatos históricos. Se alguém escreve um livro contendo sermões, parábolas, milagres e dados biográficos de Jesus, devemos concluir disso que só os sermões e parábolas importam. O resto é mera ilustração da doutrina expressa nesses sermões e nessas parábolas, e não pode ter a pretensão de descrever o que Jesus realmente fez e o que lhe sucedeu. Mesmo que tenha ocorrido de fato, só é importante na medida em que ilustra os princípios gerais da doutrina. A vida de Jesus não é, portanto, nada mais que uma gigantesca parábola de sua pregação, e não se distingue, sob qualquer aspecto relevante, das parábolas que ele mesmo inventou.

Quem pensa dessa forma não parece dar importância ao fato de que o conteúdo dessa doutrina é justamente a afirmação enfática daquelas hipóteses que mencionei acima: que Deus é pessoal, que age no mundo e que isso faz alguma diferença. Eu poderia acrescentar que o ponto culminante dessa ação encontra-se justamente na vida de Jesus, e é por isso mesmo que seus discípulos se empenharam em descrever como isso se deu, transpondo ao papiro fatos que eles presenciaram e consideraram da maior importância para a posteridade. E não apenas isso, mas também afirmaram insistentemente o caráter histórico daquilo que narraram. Mesmo um exame superficial do Novo Testamento demonstra esse tipo de preocupação histórica por todos os lados. João enfatizou em diversas ocasiões a realidade daquilo que ele testemunhou: "Aquele que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho"; "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória [...]"; "O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam [...]". Pedro fez uma asseveração semelhante, como que sabendo que alguém pusera em dúvida o caráter factual do Evangelho: "Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...]". Paulo não teve medo de levar às últimas conseqüências a negação de um importante evento narrado pelos discípulos: "Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé". Ele próprio, um pouco antes, havia listado os testemunhos dos irmãos e reunido a eles o seu próprio, ciente de que a realidade da coisa toda era de importância indiscutível: "Que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas, e, depois, aos doze. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez [...]. Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim." E Lucas, mais interessado em história do que qualquer outro escritor neotestamentário (como se nota em passagens como esta: "No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes, tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe, tetrarca da região de Ituréia e Traconites, e Lisânias, tetrarca de Abilene, sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás [...]"), deixou muito claro o propósito de seu próprio evangelho: "Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído."

Não creio que os escritores citados pudessem ser mais claros quanto à sua própria intenção biográfica e ao caráter histórico das narrativas que compuseram sobre a vida de Jesus. Uma vez que tenhamos deixado de lado certos pressupostos filosóficos profundamente arraigados para permitir que os textos falem por si mesmos, não pode haver dúvida sobre qual é o resultado. Essa dicotomia absoluta entre fatos e doutrinas que descrevi há pouco claramente não fazia parte da maneira de pensar dos primeiros cristãos, e tampouco se coaduna com a mensagem cuja transmissão eles consideraram mais importante que a segurança de suas próprias vidas.