21 de outubro de 2007

Resposta a um vago desafio

Recentemente, dois de meus melhores amigos, Otávio e Nelson, lançaram-me um desafio. Trata-se de uma espécie de corrente, na qual cada um que o cumpre deve lançá-lo sobre outras sete pessoas. Nunca gostei nem participei de correntes desse tipo por achar que sempre há coisas mais interessantes a fazer. Além disso, sempre pensei que fazer algo pelo simples motivo de ter sido desafiado a fazê-lo é coisa de adolescente, embora eu jamais tenha sido tão adolescente assim. Por isso, sinto-me na obrigação de explicar por quê resolvi aceitar esta empreitada. São basicamente dois fatores. Um deles é que achei que seria uma boa oportunidade de contar acerca de mim mesmo fatos que de outro modo jamais entrariam neste blog, nem poderiam ser deduzidos por quem lesse meus textos. Mas se a primeira razão fez parecer-me vantajoso aceitar o desafio, a segunda tornou essa decisão irresistível: é que nenhum dos dois desafiantes soube me dizer com absoluta certeza em quê ele consiste. Vendo-me solicitado a fazer algo que não sei exatamente o que é, só me restou tomar a mesma decisão que Gabriel Syme, personagem de O homem que foi Quinta-feira, ao ver-se confrontado por situação semelhante. E a resposta dele foi: "Seu oferecimento é tão insensato que não merece recusa". Mas isso tudo é apenas um pequeno exagero. Meus dois amigos souberam definir com razoável precisão o que eu deveria fazer, já que eles próprios já tinham feito a mesma coisa. Quem quiser pode conferir nos seus respectivos blogs, que estão na seção de links ao lado. Pelo que entendi, devo contar sete coisas sobre mim mesmo, sejam elas de que tipo forem. Pouco importa que se refiram ao passado ou ao futuro, a acontecimentos dados no mundo exterior ou restritos à esfera da subjetividade, que sejam eventos localizáveis no tempo ou modos de ser permanentes. Antes de dar início, porém, devo fazer um breve aviso: não aceitei o desafio completamente. Contarei sete coisas sobre mim mesmo, mas não desafiarei sete pessoas a fazer o mesmo. Se algum leitor tem um blog e acha a proposta interessante, sinta-se livre para realizá-la. Consinto em fazer parte da corrente, mas não como seu propagador. E não me sinto culpado por isso, pois, tendo aceitado a parte difícil do desafio, sinto-me no direito de recusar a parte fácil. Sendo assim, aqui vão as sete primeiras coisas que passaram pela minha cabeça agora há pouco.

1. Nesses vinte e três anos e três meses de vida morei em nada menos que vinte casas diferentes. Embora em um ou outro caso essas mudanças de residência não tenham acarretado uma substituição correspondente do meu círculo de amigos, na quase totalidade das vezes foi exatamente isso o que ocorreu. Provavelmente foi isso o que me impediu de ter amigos de infância; de modo geral, aliás, nenhuma das pessoas que hoje fazem parte da minha vida estava presente quinze anos atrás, exceção feita a alguns parentes (os que têm mais de quinze anos, obviamente). Cada vez que eu me acostumava a um novo bairro ou cidade e às novas companhias, ou mesmo antes que isso acontecesse, lá íamos nós de novo para uma nova aventura. Lembro-me de ter chorado por causa disso umas duas vezes, sendo a última quando eu tinha doze anos. O lado positivo disso tudo é que essa experiência me fez mais facilmente adaptável a novos ambientes e circunstâncias. Mas desconfio que esse modo de vida trouxe também um outro efeito sobre a minha personalidade posterior, que é a quase total incapacidade de sentir em grau considerável a falta de quem está longe, embora eu jamais tenha deixado de me importar com alguém por esse motivo. Não acho isso particularmente ruim, mas ainda não consegui arrumar um jeito agradável de dizê-lo às pessoas. Algum tempo atrás, quando tentei explicar isso a uma colega enquanto almoçávamos juntos, ela retorquiu: "Então quando eu for embora você não vai sentir a minha falta?". Surpreendido por esse rumo inesperado que a conversa tomou, tive de responder que era algo mais ou menos assim mesmo. Sem dúvida minha interlocutora não ficou muito satisfeita, mas nada havia que eu pudesse fazer. Se eu tivesse dito "Não, você é uma exceção!", além de não ser verdade, poderia parecer que eu estava dando em cima da moça. Preferi, portanto, deixar as coisas como estavam.

2. De todos os jogos de computador que apreciei na vida, que não foram muitos, provavelmente nenhum me divertiu tanto ou por tanto tempo quanto o Warcraft II: tides of darkness (com exceção, é claro, do imbatível Campo minado). Caso alguém não conheça, é um jogo de estratégia militar medieval fantástica, na qual homens, elfos, gnomos e anões se juntam para combater orcs, trolls, goblins, mortos-vivos e outros. Eu não só fiquei razoavelmente bom nesse jogo e suas sutilezas estratégicas a ponto de ser capaz de fazer frente ao computador com um exército quatro vezes menor (o que, admito, não era tão difícil assim), mas também traduzi todos os textos que apareciam na introdução de cada uma das 28 fases, a fim de compreender toda a história da guerra que se desenrolava. Foi a primeira vez que traduzi algo por livre vontade, e o fiz com grande dificuldade, em meados da minha adolescência. Eis o que houve de positivo nisso tudo. Foi tudo muito divertido, mas essa etapa da minha vida passou sem que eu me apercebesse disso. Na última vez em que tentei jogar, há cerca de dois anos, descobri que não tenho mais a mínima paciência para pensar em estratégias, esperar o momento certo de atacar ou mesmo simplesmente analisar adequadamente o terreno. Simplesmente fiz um monte de soldados e os mandei para o front desordenadamente, terminando por obter uma vitória sofrível com um exército várias vezes superior ao que teria sido preciso alguns anos antes. E assim terminou, sem glórias nem lamentos, uma brilhante carreira militar.

3. Quem me conhece sabe que pareço terrivelmente distraído. O que pouca gente sabe é que na verdade sou mais distraído do que pareço, pois também estou voando em muitas situações nas quais pareço estar perfeitamente atento ao que se passa. Descobri há algum tempo que meu cérebro parece ser organizado de modo a absorver melhor o que entra pelos olhos do que o que ingressa através dos ouvidos. Assim, por exemplo, dificilmente me distraio lendo um livro. Sou até capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo (como ler vários textos, escrever um e-mail e conversar pelo MSN) alternando a atenção entre as diversas atividades sem perder a linha de raciocínio em nenhuma delas. Em relação aos ouvidos, ao contrário, uma atividade só já é muito. Dificilmente consigo escutar uma música inteira, por exemplo. Assistir aulas e palestras sem me distrair pelo menos cinco vezes é algo quase impossível, por mais curtas e interessantes que sejam. Isso se aplica também aos sermões e às orações proferidas em voz alta na igreja. E às vezes ocorre até mesmo em conversas pessoais. Essa última situação é, aliás, a pior de todas, especialmente se eu sou o único suposto ouvinte. Não sei se tenho algum distúrbio neurológico, mas, de qualquer forma, peço que tenham paciência comigo. E sugiro a quem porventura tenha algo muito importante a me dizer que o faça por e-mail.

4. Quando eu tinha seis ou sete anos minha professora resolveu que faríamos aquela célebre atividade de plantar grãos de feijão em caixas de ovo, com diferentes materiais em cada cavidade: algodão, terra, areia e assim por diante. Gostei tanto da idéia que, encerrada a atividade, resolvi plantar feijões no canteiro de casa. A empolgação não durou mais que alguns dias, em vista da minha impaciência para esperar que os brotos crescessem. E, quando finalmente cresceram, eu havia perdido completamente o interesse no assunto, embora me lembre de ter colhido algumas vagens e me sentido muito orgulhoso quando minha mãe as cozinhou e serviu no jantar. Mas o fato é que não tive mérito algum além de jogar os grãos no canteiro e cobri-los com terra; jamais os reguei, a despeito do tempo seco e das admoestações da minha mãe. O resultado é que, pouco depois de terem dado os primeiros frutos, as plantinhas murcharam e secaram, embora não tenham morrido. Eu não me importei com isso. Mas quando um bando de formigas construiu uma imponente edificação no mesmo canteiro e começou a se alimentar dos meus pés de feijão, dando-lhes a única utilidade que poderiam ter depois do meu péssimo comportamento, aí sim fiquei furioso. Fingindo (até para mim mesmo) que estava preocupadíssimo com as plantas, destruí o formigueiro e enchi o canteiro de água. Foi só algumas horas mais tarde que percebi que na verdade tudo o que eu queria era ver aquele edifício de terra desmoronando, torturar as formiguinhas e vê-las se debatendo na água. Há muitos aspectos da maldade humana exemplificados nesse episódio, e ele demonstra que eu tinha dentro de mim todo o potencial necessário para me tornar um Mao, um Stalin ou um Hitler quando crescesse.

5. Eu poderia encher dez desafios como este contando coisas que me aconteceram em sonhos. Mas não posso deixar de mencionar aquilo que mais me apavora em alguns deles. Já sonhei com fantasmas, zumbis, alienígenas, índios canibais, bandidos armados, ninjas, bruxas, ogros, animais perigosos, batalhas e até mulheres sem sentir nenhum medo. Mas lembro-me de alguns sonhos que me deixaram apavorado, e eles consistiam simplesmente na perda do controle sobre meu próprio corpo. Houve uma ocasião em que eu queria subir uma escada, por alguma razão qualquer, e descobri que subitamente eu havia me tornado pesado demais até para conseguir me arrastar. Em outro sonho eu voava tão facilmente como os personagens do filme O tigre e o dragão, mas não era jamais capaz de pousar onde eu queria. E o pior de todos, pelo que me lembro, foi um em que havia um amigo meu apanhando a poucos metros de mim. Eu tentava me aproximar para ajudá-lo, mas na verdade meus pés mal tocavam o chão. Eu estava, de repente, tão leve que precisava me esforçar para não ser levado pelo vento.

6. O primeiro computador que tive em casa foi comprado pelo meu pai em 1996, já usado. Apesar disso, só quatro anos depois me tornei usuário da internet. Destaco uma dentre as diferenças que isso fez na minha vida: dei adeus definitivamente ao hábito de pensar longamente antes de dormir. Desde criança eu funcionava melhor à noite, acordava sempre tão tarde quanto minha mãe me permitia e estava quase invariavelmente sem sono quando ela me mandava para a cama. Não podendo decidir por mim mesmo o horário de ficar na cama, eu permanecia lá pensando em milhões de coisas até que o sono viesse. Com a descoberta da internet, passei a gastar esse tempo na frente do computador, só indo dormir quando o sono se tornava irresistível. E pouco tempo depois saí de casa para estudar, o que me permitiu manter o hábito de não ir para a cama sem ter sono. Embora em muitas ocasiões eu tenha aproveitado bem essa liberdade, acredito que o resultado geral foi negativo, pois eu perdi o horário fixo (de uma ou duas horas) no qual não tinha outra coisa a fazer além de pensar, que é seguramente uma das atividades mais saudáveis que existem. Hoje tento recuperar esses momentos quando estou indo ou voltando do trabalho, ou da igreja, ou entre um capítulo e outro de um livro, ou quando estou em alguma fila, ou ainda quando estou viajando. O resultado é que, apesar de eu não saber se a qualidade dos meus pensamentos melhorou ou não nos últimos sete anos, posso dizer com certeza que a quantidade deles diminuiu.

7. Ainda guardo na casa dos meus pais a maior parte dos melhores brinquedos que me divertiram na infância. Não sei exatamente qual é a razão pela qual faço isso, mas o fato é que ainda não consegui me livrar deles. Mas quando digo "melhores brinquedos", não me refiro aos mais caros, nem aos de melhor qualidade, e tampouco aos mais bonitos. Foram-se todos os carrinhos cheios de luzes ou guiados por controle remoto e muitos outros brinquedos que agradam aos adultos mais que às crianças. A quase totalidade dos meus brinquedos que não se quebraram foi gradualmente doada a crianças cujos pais não podiam comprar coisas semelhantes. Mas minha mãe, a quem cabia sempre essa iniciativa, jamais doou algum deles sem o meu consentimento. Dei quase todos, mas não aqueles que me proporcionaram mais momentos de saudável diversão, e com os quais eu brincava quase diariamente: os homenzinhos de todas as procedências, os animaizinhos de plástico ou borracha, os times de futebol de botão (meu irmão e eu ainda planejamos realizar uma partida qualquer hora dessas), os conjuntos de montar e poucas coisas mais. Dou destaque especial ao que provavelmente é o meu brinquedo mais querido, e um dos primeiros de que tenho lembrança: um cachorro de plástico com rodinhas nas patas que, por meio de um engenhoso arranjo de peças de ferro em seu oco interior, abana o rabo e a cabeça quando anda. Ele está todo ralado e desbotado, perdeu as orelhas ao ser atropelado por uma bicicleta e o rabo foi reenxertado após um acidente semelhante, mas nada neste mundo me fará jogá-lo fora. E o que mais me espanta é que só agora, enquanto escrevo estas palavras, me ocorre que jamais pensei em colocar-lhe um nome.

Um comentário:

Daniel Nérso disse...

"Nesses 23 anos e três meses de vida morei em nada menos que vinte casas diferentes"
Isso é impressionante, acho q grande parte do q vc é hoje se deve a isso. Não sei de q forma, mas vc passou por experiências completamente diferentes das pessoas normais. Acho q vai mto além de ser facilmente adaptável e de "não sentir saudades". Acho bacana isso, não sei se vc achou na época, mas imagino q hj seja divertido contar isso ehehe