23 de novembro de 2007

Calúnia poética

Recentemente, uma amiga reprovou com suavidade o que ela considera minha "obsessão por C. S. Lewis". Ela disse isso por causa da freqüência com que menciono o escritor irlandês neste blog. Não creio que se trate de uma obsessão, e também não me parece que minha amiga tenha dito isso senão metaforicamente. Ocorre que Lewis foi o primeiro escritor e intelectual que fez mais que conquistar meu respeito ou dar provas de que merecia atenção; conquistou também minha admiração. E sendo ele o escritor de quem mais li livros, é relativamente fácil, para mim, usá-lo como exemplo, mesmo quando estou tratando de assuntos não necessariamente vinculados à sua pessoa. É bem verdade que ele me ensinou muitas coisas que eu poderia ter aprendido com outros escritores ou de outras maneiras, caso houvessem se apresentado primeiro. De qualquer forma, a fim de não irritar ninguém com essa mania, prometo solenemente que esta será a última vez que dedico um texto a C. S. Lewis neste ano.

Meses atrás, num post intitulado Dois discursos diabólicos, falei de um aspecto específico da conversão de Lewis do ateísmo ao cristianismo: a percepção do conflito entre as necessidades da natureza humana e a visão de mundo materialista e pessimista que o autor expôs em dois poemas publicados na sua juventude. Hoje tratarei de um outro aspecto dessa conversão, dentre muitos que poderiam ser abordados. Pretendo futuramente (não neste ano, é claro) falar sobre o lado especificamente intelectual, que é muito interessante. Hoje tratarei do seu elemento moral, e farei isso, uma vez mais, recorrendo a um outro poema do mesmo livro onde fui buscar os anteriores, o Spirits in bondage. Assim como fiz na outra vez, disponibilizo aqui não só o poema na língua original, mas também uma tradução feita por mim mesmo, da maneira menos incompetente possível, a fim de permitir que os que não lêem em inglês possam ao menos compreender o sentido do que é dito.


De profundis

Vinde, maldigamos nosso Mestre antes que morramos,
pois todas as nossas esperanças jazem na ruína sem fim.
O bem está morto. Maldigamos o Deus Altíssimo.

Quatro milênios de labuta, esperança e pensamentos
Em que o homem ascendeu laboriosamente e, embora forjasse
novos e melhores mundos, Tu os tornaste em nada.

Construímos cidades jubilosas, fortes e justas,
buscamos conhecimento e reunimos rara sabedoria.
E todo esse tempo zombaste do nosso esmero,

e subitamente a terra escureceu com o erro,
nossa esperança foi esmagada e nossa canção silenciada,
o céu se encheu do som do choro. Tu és forte.

Vinde então e maldizei o Senhor. Sobre a terra
cai pesada escuridão, e mau foi o nosso nascimento,
e de pouco valor os nossos poucos dias felizes.

Mesmo que não seja tudo um sonho vão
- a antiga esperança que ainda se erguerá novamente -
de um Deus justo que se importa com a dor terrena,

contudo, muito além de nossa dolorosa noite,
ele passeia nas profundezas da luz sem fim,
cantando sozinho suas músicas de regozijo;

apenas o eco distante e exaurido de sua canção
pode atingir nossas masmorras e profundas celas,
e Tu estás mais perto. Tu és muito forte.

Ó força universal, eu bem sei,
não é senão fútil tolice se rebelar;
pois tu és Senhor e tens as chaves do Inferno.

Contudo, eu não me curvarei a ti nem te amarei,
pois olhando em meu próprio coração posso provar-te
e saber que este ser débil e ferido está acima de ti.

Nosso amor, nossa esperança, nossa sede do que é certo,
nossa misericórdia e longa busca pela luz,
trocaremos tudo isso por teu inexorável poder?

Zomba então, e assassina. Despedaça todas as coisas dignas,
continua a amontoar tormento sobre tormento para tua alegria -
Tu não és Senhor enquanto há Homens sobre a terra.


De profundis

Come let us curse our Master ere we die,
For all our hopes in endless ruin lie.
The good is dead. Let us curse God most High.

Four thousand years of toil and hope and thought
Wherein man laboured upward and still wrought
New worlds and better, Thou hast made as naught.

We built us joyful cities, strong and fair,
Knowledge we sought and gathered wisdom rare.
And all this time you laughed upon our care,

And suddenly the earth grew black with wrong,
Our hope was crushed and silenced was our song,
The heaven grew loud with weeping. Thou art strong.

Come then and curse the Lord. Over the earth
Gross darkness falls, and evil was our birth
And our few happy days of little worth.

Even if it be not all a dream in vain
-The ancient hope that still will rise again-
Of a just God that cares for earthly pain,

Yet far away beyond our labouring night,
He wanders in the depths of endless light,
Singing alone his musics of delight;

Only the far, spent echo of his song
Our dungeons and deep cells can smite along,
And Thou art nearer. Thou art very strong.

O universal strength, I know it well,
It is but froth of folly to rebel;
For thou art Lord and hast the keys of Hell.

Yet I will not bow down to thee nor love thee,
For looking in my own heart I can prove thee,
And know this frail, bruised being is above thee.

Our love, our hope, our thirsting for the right,
Our mercy and long seeking of the light,
Shall we change these for thy relentless might?

Laugh then and slay. Shatter all things of worth,
Heap torment still on torment for thy mirth-
Thou art not Lord while there are Men on earth.


O poema não necessita de nenhuma explicação adicional, e o que importa nele, para o meu presente objetivo, é justamente o que aparece da maneira mais óbvia possível: a convicção de que Deus, na forma como os cristãos e monoteístas em geral o concebem, não passa de um tirano egoísta e desumano que, sem se envolver jamais com o sofrimento de suas criaturas, valoriza tudo o que há de mais vil e retrógrado (permito-me utilizar esse termo progressista pela carga psicológica que ele adquiriu na linguagem semipopular da elite semipensante de hoje), e pune severamente todos os esforços dos seres humanos que aspiram a valores mais dignos. Sem dúvida, o Deus assim concebido é apenas um ditador totalitário típico em escala imensamente ampliada, que prevalece pela força e não pelo mérito, e por isso mesmo é moralmente inferior àqueles que gemem sob sua tirania. Significativamente, o título do poema, De profundis (expressão latina que significa "das profundezas"), foi extraído das palavras iniciais do Salmo 130, que é uma oração de súplica em meio ao sofrimento e de esperança fundamentada na bondade divina, oração essa que Lewis inverteu e transformou numa declaração de rebeldia. É claro que ele não cria na existência de tal ser; apenas retratou a forma como enxergava a concepção teológica predominante.

Não é meu propósito discutir a acuidade ou mesmo a coerência lógica das concepções do jovem poeta sobre esse tema. A contradição que pretendo apontar é de natureza algo diferente. Ela salta aos olhos quando comparamos a concepção de Lewis sobre a natureza humana, delineada no poema, com sua própria conduta pessoal nessa fase de sua vida. A revolta contra Deus em De profundis só faz sentido porque a tirania e a insensibilidade divinas contrastam fortemente com a bondade essencial dos homens que, a despeito de todas as limitações (impostas, em última análise, pelo próprio Deus), estão empenhados na busca pelo bem, pela virtude e pelo conhecimento, e interessados em produzir algo de bom a partir disso. Os termos com que Lewis lisonjeia nossa própria espécie chegam a ser comoventes.

Mas quando examinamos a vida do próprio autor nesse período, pelo que se pode depreender de sua autobiografia escrita décadas depois, encontramos um contraste quase patético entre as idéias defendidas no poema e as atitudes do mesmo poeta diante da vida. Essa verdade transparece em diversos momentos do livro. Quando fala de seu primeiro contato com os textos de G. K. Chesterton, por exemplo, Lewis afirma que apreciava a virtude moral desse escritor, mas logo esclarece que isso não significa que ele próprio tivesse qualquer interesse em ser virtuoso. Parece, portanto, que havia um considerável grau de hipocrisia na acusação lançada pelo poeta à face de Deus. E num certo sentido, sem dúvida, havia mesmo. Mas creio ser mais adequado descrever esse interessante fenômeno como decorrente de uma certa inconsciência ou, para ser mais exato, de uma falta de autoconsciência. Na história da conversão de Lewis (e, creio eu, de qualquer conversão autêntica), um papel fundamental é desempenhado por essa percepção progressivamente mais nítida da frivolidade, vileza e maldade do indivíduo em questão, percepção que parece estar totalmente ausente no poema acima.

Os elementos que contribuíram direta ou indiretamente para essa tomada de consciência sobre sua própria condição moral são muitos e variados, mas cabe ressaltar o exemplo dado por muitas pessoas. Isso inclui, por um lado, escritores como Chesterton e Platão, mas também envolve o testemunho eloqüente, embora freqüentemente silencioso, de amigos pessoais; especialmente, no caso em questão, de amigos como Owen Barfield e Bede Griffiths, que nem eram cristãos. Houve ainda algumas novas convicções filosóficas empurrando no mesmo sentido. Mais do que as vias de acesso, no entanto, importam os resultados a que conduziram: um dia, cedendo finalmente à crescente pressão de sua consciência para que passasse do amor teórico pela virtude à prática da mesma, Lewis conta-nos o resultado nas seguintes palavras: "Pela primeira vez examinei a mim mesmo com um propósito seriamente prático. E ali encontrei o que me assustou: um bestiário de luxúrias, um hospício de ambições, um canteiro de medos, um harém de ódios mimados. Meu nome era Legião."

Quando existe uma contenda entre duas partes e nós tomamos irrefletidamente o partido errado, a constatação do equívoco freqüentemente tem início com a percepção de que, à parte do assunto em disputa, aqueles que apoiamos não são tão bons quanto julgávamos que fossem. Daí podemos levar mais a sério a possibilidade de que talvez o outro lado não fosse tão ruim quanto pensávamos. Isso é, no mínimo, um interessante fato psicológico. E no caso de Lewis foi exatamente isso o que aconteceu. Foi apenas depois, e não antes, de ter se livrado daquela presunção autolisonjeira que expressara em termos coletivos no seu poema da juventude, que Lewis pôde reconhecer, por contraste, a bondade divina.

Essa constatação ajuda a compreender também certos aspectos dos seus escritos cristãos produzidos na maturidade. Assim, por exemplo, Lewis não começa sua exposição da doutrina cristã no livro Mere christianity sem antes defender filosoficamente a objetividade das leis morais e apontar a nossa incapacidade de agir em perfeito acordo com ela. O autor não estava apenas sendo coerente com a doutrina cristã, cuja oferta de salvação não poderá ser aceita por um indivíduo que não saiba do quê precisa ser salvo. É mais do que isso: Lewis expôs magistralmente a força da lei moral porque ele próprio a sentiu da maneira mais intensa possível. Da mesma forma, quando disse que "um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom, [mas] um homem completamente mau pensa ser completamente bom", ele não estava senão aludindo à sua experiência pessoal, cristalizada num enunciado universal com amplo respaldo na história da humanidade, especialmente nesses últimos séculos.

Lewis não foi capaz, nas profundezas em que se encontrava aos vinte anos, de enxergar a realidade sobre Deus e sobre si próprio. Mas foi plenamente capaz disso pouco mais de dez anos mais tarde, e agiu da única maneira apropriada diante das verdades que descobrira. As palavras abaixo, com as quais encerro este texto, não se referem ainda à sua conversão ao cristianismo, mas marcam o início de seu compromisso com o teísmo em todos os aspectos de sua existência. Nelas, reconhecendo a bondade de Deus e sua própria maldade, Lewis retratou-se pela calúnia cometida nos versos de seu primeiro livro:

"O leitor precisa imaginar-me sozinho naquele quarto em Magdalen, noite após noite, sentindo - sempre que minha mente se desviava por um instante que fosse do trabalho - a aproximação firme e implacável dEle, aquele que com tanta determinação eu desejava não encontrar. Aquilo que eu temera tanto pairava afinal sobre mim. Cedi, enfim, no período letivo subseqüente à Páscoa de 1929, admiti que Deus era Deus, e ajoelhei-me e orei: talvez, naquela noite, o mais deprimido e relutante convertido de toda a Inglaterra. Não percebi então o que se revela hoje a coisa mais ofuscante e óbvia: a humildade divina, que aceita um convertido mesmo em tais circunstâncias. O Filho Pródigo pelo menos caminhou para casa com suas próprias pernas. Mas quem é que pode adorar devidamente esse Amor que abre os portões a um pródigo que é arrastado para dentro esperneando, lutando, ressentido e girando os olhos em torno, à procura de uma chance de fuga? As palavras compelle intrare, forçá-los a entrar, foram tão violentadas por homens impiedosos que chegamos a estremecer diante delas; mas, entendidas de forma correta, elas determinam a profundidade da misericórdia divina. A dureza de Deus é mais bondosa que a suavidade dos homens, e sua coerção é nossa libertação."

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