27 de dezembro de 2007

Tempos de renovação

Num texto que postei aqui em junho, Ignorância resumida, falei brevemente sobre a necessidade que eu tinha de elaborar, num futuro próximo, um roteiro de estudos, a fim de dar conta da imensa quantidade e diversidade de assuntos que sinto necessidade de estudar mais profundamente do que fiz até o momento, ou mesmo começar do zero. De lá pra cá trabalhei um pouco nisso e, agora que um novo ano vem chegando, embora não seja meu objetivo expor meu plano em detalhes, creio ser útil comentar brevemente alguns aspectos do mesmo. Minhas razões para isso ficarão mais claras adiante, mas posso adiantar que este blog, sendo, como expliquei na postagem inaugural, uma parte importante dos meus projetos de aprendizado, será também diretamente afetado pela implementação desse plano.

Vale lembrar, para início de conversa, que a lista de livros que pretendo ler antes de morrer jamais parou de crescer desde que dei início a ela, mais de quatro anos atrás. Em janeiro deste ano, conforme registrei no início do post Versos do além, a lista contava com pouco mais de duzentos e cinqüenta elementos. Atualmente possui trezentos e trinta. Minha primeira tarefa foi, portanto, colocar ordem nessa lista. Dividi-a em vinte e três temas principais, que não abrangem todos os livros, mas ao menos deixam de fora uma fração relativamente pequena. Não sei se ao longo de 2008 eu conseguirei ler alguma dessas categorias em sua totalidade, mas pretendo ao menos dar início à liquidação de meia dúzia delas. As outras dezessete ficarão para um futuro indefinido, juntamente com várias obras que não se encaixam em categoria alguma, e com as quais eu montei a vigésima quarta categoria, "outros assuntos". Além disso, consultando a lista dos livros que já li, incluí sessenta e quatro deles na lista dos que ainda precisam ser relidos, e alguns mais de uma vez (a Bíblia, por exemplo, jamais sairá dessa lista). Selecionei catorze deles para reler em 2008, por se relacionarem a algum dos seis temas acima citados, e deixei os outros cinqüenta para um futuro mais distante.

Porém, foi-se o tempo em que praticamente tudo o que eu queria saber podia ser encontrado nas estantes da livraria ou biblioteca mais próxima, ou em e-books baixados da internet e estocados no meu HD. Atualmente, uma parcela considerável dos conhecimentos que pretendo adquirir encontra-se, total ou parcialmente, em filmes, em documentários, em artigos, em textos menores de revistas, nas cabeças de pessoas que pretendo entrevistar e, sobretudo, em sites da internet. Fiz também uma lista desses assuntos, isto é, aqueles dos quais provavelmente aprenderei total ou predominantemente por meios não-livrescos, e essa lista contém, até o momento, cinqüenta e nove temas, alguns dos quais sendo passíveis de uma quantidade considerável de subdivisões. Vários deles parecem ser menos trabalhosos que a leitura de um punhado de livros, mas alguns provavelmente exigirão esforço equivalente ou ainda maior. E não incluí nessa lista os temas acerca dos quais eu tenho vontade de adquirir conhecimento sem que, no entanto, tenha alguma idéia de onde ir buscá-lo. Minha própria ignorância sobre a maneira de abordá-los foi considerada por mim como um sinal de que não estou maduro o suficiente para ir atrás deles. A experiência tem me mostrado que, quando chega o momento de mergulhar num novo assunto, as portas se abrem naturalmente para me dar uma idéia de como fazê-lo.

Creio que eu não contei isso a ninguém, mas ao criar este blog eu decidi que faria um esforço para manter, por um ano, o ritmo médio de uma postagem por semana, com tamanho próximo a 10kb (quando digitado no meu editor de textos favorito, o Bloco de notas). Não escrevi em todas as semanas, e em algumas eu postei textos que não foram escritos por mim, mas apenas traduzidos, ou que eram meras adaptações de textos que eu já havia escrito antes. Mas pelo menos posso dizer que, em média, obtive sucesso: este é o qüinquagésimo segundo post, e o ano tem cinqüenta e duas semanas e um dia. Não calculei o desvio padrão, mas ele é menos relevante. O que importa é que fiz isso porque queria saber como é o compromisso de escrever com hora marcada, ainda que não muito bem marcada. G. K. Chesterton, que escreveu uma centena de livros, além de milhares de ensaios para jornais e revistas diversos, também publicou semanalmente um artigo no Illustrated London News durante trinta anos seguidos. Dale Ahlquist, presidente de The American Chesterton Society, lançou o desafio: "Se você não está impressionado, tente fazer isso alguma vez". Eu estava impressionado, e jamais tive qualquer intenção de me equiparar em quantidade ou qualidade a um escritor como Chesterton, sobre quem, aliás, correm lendas de que freqüentemente escrevia um artigo ao mesmo tempo em que ditava outro à sua secretária. Mas achei que o desafio de Ahlquist era uma proposta interessante, e resolvi colocá-la em prática, embora de maneira significativamente suavizada, durante um ano.

Eu não esperava que fosse fácil, mas ainda assim foi mais difícil do que eu supunha. A fim de atingir essa meta auto-imposta (conciliando-a, naturalmente, com as exigências da minha vida pessoal), acabei cometendo uma série de deslizes. Há agora uma quantidade razoável de conversas por e-mail que preciso retomar, abandonei discussões numa comunidade do orkut por vários meses, há textos ainda não comentados nos blogs de alguns amigos, assuntos cujo estudo eu acabei deixando de lado e talvez mais algumas coisas que agora me fogem à memória. Não digo que o blog seja o único culpado em cada um desses casos, mas ele ao menos ajudou a agravar o problema em todos eles. Além disso, o próprio conteúdo do blog não saiu ileso: muitas vezes eu escrevi com pressa, não revisei devidamente o resultado ou não ponderei se a forma sob a qual eu apresentava o assunto era a melhor possível, de modo que, relendo os textos alguns dias ou semanas depois, eu fiquei, em muitos casos, com a desagradável sensação de que poderia ter feito melhor.

Levando em consideração tudo o que eu disse nos cinco parágrafos anteriores, e somando a isso o fato de que o ano que se aproxima, embora incerto, tem grandes chances de me deixar ainda menos tempo para coisas desse tipo, creio que será mais fácil compreender o motivo da minha decisão quanto ao que vou fazer com este blog a partir de agora. Eu gostei muito da experiência que ele me proporcionou ao longo de 2007, não mudei de opinião quanto aos benefícios que ele pode me trazer (e tem trazido), conforme as expliquei no post inaugural, e não gosto nem um pouco da idéia de abandonar essa vida de blogueiro. Mas fatalmente, a fim de dar conta da nova realidade que se impõe sobre mim e que acabo de explicar resumidamente, serei obrigado a mudar minha estratégia com relação ao blog, e um dos efeitos mais previsíveis é que a freqüência das postagens diminuirá sensivelmente, embora a qualidade dos textos, segundo espero, melhore em decorrência disso.

Agora pretendo explicar brevemente qual será a minha política editorial. A estratégia que predominou até aqui, isto é, a de postar textos relativamente curtos dedicados a assuntos independentes, não desaparecerá por completo, mas passará para o segundo plano e aparecerá mais raramente. Na minha lista de assuntos a comentar aqui há cento e setenta e três idéias; dificilmente escreverei todas, mas a maioria provavelmente tomará (ou tomaria) essa forma. (Convém destacar, de passagem, esse meu gosto pela confecção de listas de coisas para fazer; começo a achar que eu faria algumas dessas coisas melhor e mais rapidamente se gastasse menos tempo listando-as.) Não desisti da idéia de escrever sobre esses temas, e pretendo, nos próximos tempos, dar atenção especial àqueles acerca dos quais, ao longo de 2007, prometi escrever e acabei não o fazendo. Apesar da demora, não me esqueci das minhas promessas; tanto é que fiz também uma lista delas, e constatei que vinte e oito futuros posts se enquadram nessa categoria. Não posso prometer que escreverei todos eles em 2008, mas prometo que eles ocuparão lugar especial entre minhas prioridades, na medida do possível.

A parcela principal dos esforços despendidos neste blog, entretanto, será dedicada a um tipo diferente de publicação, que consiste em séries mais ou menos longas (e não necessariamente ininterruptas) de postagens abordando assuntos vastos ou complicados demais para caber numa só. Roubei descaradamente essa idéia do meu amigo André Luiz, que já fazia coisas assim em seu blog muito antes que eu pensasse em criar o meu. A vantagem óbvia desse procedimento está no fato de que é a melhor maneira, quando não a única possível, de dar um tratamento minimamente apropriado a certos assuntos. A abordagem de vários deles está nos meus planos há um bom tempo, mas, pelo fato mesmo de que escrever sobre eles é mais trabalhoso, acabo sempre, por preguiça ou por pressa (em virtude do compromisso auto-imposto a que aludi anteriormente), deixando-os sistematicamente para depois e falando de algo mais fácil. Não me arrependo do que fiz até aqui, mas esse é um problema adicional a indicar a necessidade de mudanças.

Entretanto, o parágrafo acima pode dar a entender, falsamente, que essas séries de posts que agora estou planejando têm apenas o objetivo de divulgar e revisar conhecimentos já adquiridos e possuídos por mim. A verdade, porém, é que a maioria dessas planejadas seqüências vincula-se sobretudo ao que eu disse nos parágrafos iniciais. Dos cinqüenta e nove temas a estudar predominantemente fora dos livros, por exemplo, muitos provavelmente resultarão em séries de postagens neste blog, seja por eu acreditar que seus resultados serão úteis ou interessantes aos leitores, seja porque o simples fato de escrever a respeito facilitará meu próprio entendimento dos assuntos em pauta. O mesmo se aplica a boa parte das vinte e três categorias de livros que mencionei. Em alguns casos, escreverei e publicarei minhas conclusões e descobertas na medida em que as for atingindo; em outros, preferirei concluir o estudo do assunto antes de dizer qualquer coisa a respeito dele. Alguns temas têm um roteiro de estudos mais ou menos previsível e bem definido, enquanto outros podem me levar a lugares que nem imagino no momento.

Enfim, de agora em diante não haverá regras de qualquer espécie. Usarei este blog como instrumento de aprendizado, como fiz até aqui, mas de maneira a torná-lo mais facilmente adaptável às necessidades de cada momento. E se tudo der certo, é claro, isso também resultará em maior benefício para os eventuais leitores.

24 de dezembro de 2007

Emergência

Entre os meus planos para a celebração do Natal deste ano estava a publicação, neste blog, de um poema acompanhado de uma breve reflexão pessoal ao menos vagamente relacionada a ele. Tendo esse objetivo em mente, eu havia selecionado e digitado o poema, feito uma tradução do mesmo (já que foi composto em inglês) e escrito minha breve reflexão, deixando tudo pronto antecipadamente para hoje apenas postar o texto. Vejo-me, no entanto, forçado a alterar meus planos, em vista do fato de que, distraído como sempre, ao fazer as malas hoje pela manhã para vir a Piracicaba passar o Natal com meus pais, esqueci de pegar o pen drive onde eu havia cuidadosamente armazenado o texto alguns dias atrás. Nada surpreendente, já que, ao longo desses quase seis anos morando em São Carlos e voltando para casa em média a cada duas ou três semanas, creio que apenas uma vez eu consegui não me esquecer de nada. (E mesmo naquela ocasião, desconfio eu, pode ser que eu apenas tenha tido a sorte de esquecer algo que não me lembrei de procurar quando cheguei aqui, de modo que o segundo esquecimento anulou o efeito do primeiro.) E, não tendo trazido para cá o livro de onde retirei o poema, e tampouco estando com paciência para reescrever minha reflexão, resolvo guardar aquela postagem para o Natal de 2008.

Mas isso não significa que eu pretenda deixar passar em branco este Natal. Apenas fui obrigado a acionar o plano de emergência, que é, no entanto, significativamente semelhante ao anterior, pois consiste apenas em mudar de poema. Este que transcrevo abaixo foi retirado de um livrinho chamado Presente para o menino, um dos primeiros (e infelizmente poucos) livros de poesia que li na minha vida, e que está numa das estantes da casa dos meus pais desde tempos imemoriais (ao menos para mim). Para ser mais exato, o livro contém não apenas vinte e duas poesias, mas também duas dramatizações e sete contos natalinos. A autora, Myrtes Mathias, publicou-o em 1968, com as seguintes palavras, na folha de rosto, que deixam claro o seu objetivo:

Não faças do teu coração hospedaria
onde lugar para Cristo não havia;
dá lugar a Deus neste Natal.

O curto poema que escolhi é o que mais me impressionou quando li o livro, nem sei dizer há quanto tempo, e seu conteúdo me impressiona ainda hoje, por ser parte essencial da sempre surpreendente mensagem cristã. As expressões utilizadas na parte inicial devem muito à linguagem profética do Antigo Testamento, como poderá perceber sem dificuldade o leitor familiarizado com a leitura da Bíblia, enquanto mais para o final aparecem alusões, embora algo mais veladas, a passagens cruciais do Novo Testamento. Mas não me deterei nessas questões estilísticas, e muito menos pretendo explicar o significado do conjunto, que é bastante claro por si mesmo. Farei apenas algumas breves considerações sobre dois aspectos da doutrina cristã expressos nesse poema.

Havia entre os judeus, quando Cristo chegou, uma infinidade de expectativas conflitantes quanto ao sentido em que deviam ser entendidas as velhas profecias sobre o Messias. Devemos reconhecer que cada uma delas tinha algumas boas razões para sustentar-se. E, no entanto, os atos de Jesus contrariaram cada uma, ao menos parcialmente, e houve certos aspectos fundamentais da sua missão que todas essas linhas de interpretação mostraram-se incapazes de prever. Não há necessariamente nenhum demérito nisso, e é bom lembrar que a própria Igreja levou vários séculos para compreender, na medida do possível, a obra de Cristo numa perspectiva histórica adequada. Quanto mais estudo a escatologia cristã e a história do cristianismo, mais me convenço de que temos muito a aprender com os erros dos velhos escribas judeus. Cristo não cumpriu todas as profecias messiânicas; deixou parte delas para o fim dos tempos. Em virtude disso, vivemos no presente uma tênue antecipação da glória futura em constante luta contra as trevas da velha dispensação, cuja derrota já foi decretada, mas ainda não totalmente concretizada; vivemos, em suma, a tensão entre o "já" e o "ainda não", como diz uma expressão clássica da teologia protestante. Mas, enquanto esperamos, vigiamos e oramos, não nos esqueçamos que, assim como ocorreu na primeira vinda, os sinais do futuro retorno podem não corresponder inteiramente às nossas expectativas. Peçamos a Deus que nos dê a capacidade de manter abertos os nossos espíritos para o discernimento desses sinais.

O outro ponto importante aparece na parte final do poema, que contrasta as atitudes e os destinos daqueles que reconheceram em Cristo o fundamento de sua esperança e de suas aspirações mais nobres com a dos que se fizeram seus inimigos. Muitas pessoas hoje em dia suprimiriam, se pudessem, essa porção nada agradável da mensagem cristã. Mas quando nós, cristãos, apregoamos essa parte juntamente com o resto, não o fazemos em tom de arrogância, e tampouco de ameaça, mas sim como o simples reconhecimento de um fato. O sábio Simeão estava certo quando, antecipando as palavras do próprio Senhor, declarou que o menino que tinha nos braços estava destinado "tanto para ruína como para levantamento de muitos". O retorno de Cristo em poder não será agradável aos que não honraram sua primeira vinda, realizada em fraqueza. Compreende-se o motivo pelo qual, no culto de Natal de que participei ontem, na minha igreja em São Carlos, o pregador (o tão querido reverendo Naor) afirmou que só quem teve seu encontro com o Senhor Jesus tem bons motivos para celebrar seu nascimento. Não obstante, muitas pessoas que não tiveram essa experiência pessoal com Deus usufruíram e continuarão a usufruir as bênçãos menores que ela trouxe à humanidade, mesmo que sejam bênçãos tão corriqueiras quanto um feriado alegre na companhia de pessoas queridas. Como disse o padre Antônio Vieira em um de seus mais famosos sermões, a Palavra de Deus faz efeito mesmo quando não frutifica.

Sendo assim, desejo que o Divino Aniversariante, que é a própria Palavra encarnada de Deus, conceda a cada um dos leitores a graça de sua própria presença, que é a melhor coisa que existe, assim como o discernimento necessário para o reconhecimento desse fato. Feliz Natal a todos!

O esperado

Quando Ele vier,
Deus prometeu,
esmagará a cabeça da serpente,
destruirá o mal.

Quando Ele vier,
disseram os profetas,
servirá de refúgio contra a tempestade,
de esconderijo contra o vendaval.

Quando Ele vier,
cantaram os poetas,
terá as nações como herança,
e as extremidades da terra Ele receberá.

Quando Ele vier,
sonhavam os oprimidos,
não apagará a torcida que fumega,
a cana quebrada não esmagará.

Quando Ele vier,
esperava o mundo inteiro,
será Luz dos gentios,
no deserto bravio, uma nova canção,
com lagos e fontes
e, nos vales e montes, paz e união.

Mas quando Ele veio,
sem trono, sem exército,
sem ouro, sem rumor,
nada mais que um Menino,
decepcionou a muitos,
a todos que esperavam um real Senhor.

É certo que os anjos cantaram
e que uma estrela diferente atravessou o espaço,
mas os homens estavam muito ocupados na terra,
para olhar o céu.

Poucos.
Muito poucos O reconheceram.

A estrela percorreu o seu caminho
e desapareceu no tempo;
os anjos terminaram seu canto
e voltaram ao céu.

Só o Menino ficou.
Para crescer e para amar.
Para compreender e lançar os alicerces
do seu incompreendido reino da Paz.

Ficou para morrer.

Para dividir os homens em dois grupos,
nas duas paralelas que atravessam a História
para só se encontrarem
no grande dia da volta,
ajoelhados diante dele.

Quando os simples,
os que olharam o céu
e reconheceram a Estrela;
que ouviram o canto dos anjos
e aceitaram a mensagem,
repetirão seu hino de alegria e gratidão:

"Glória, glória, aleluia,
vencendo vem Jesus!"

Quando os outros,
os que não creram
e não O aceitaram,
erguerão seu alucinante grito de socorro,
sua desesperada e tardia
profissão de fé:

"Eras Tu, Jesus, e não Te recebemos."

7 de dezembro de 2007

Quarta colheita

Ultimamente não tenho tido muitas conversas com amigos em torno dos assuntos publicados neste blog. E, das que tive, apenas uma parece-me digna de ser comentada em público. Mas há outras duas questões relacionadas a posts anteriores que julgo dever comentar, e esses três assuntos bastarão para preencher esse espaço. Justifica-se, portanto, a existência desta revisão, a quarta que publico desde a inauguração do blog.

A primeira coisa que me julgo no dever de fazer é um esclarecimento que tem, na verdade, algo de uma retratação, não tanto pelo que eu disse quanto pelo que eu deveria ter dito. Em fevereiro, publiquei uma análise da letra de Geni e o zepelim, de Chico Buarque, na qual apontei um exemplo do parasitismo moral exercido pelo marxismo sobre a cosmovisão judaico-cristã. Meu grande amigo Gustavo Gama postou então um comentário sobre essa análise dizendo, dentre outras coisas, o seguinte:

"Quanto ao parasitismo, ele é bem calculado sim, com certeza. Acredito que ele tenta dar uma solução para 2000 anos em que os cristãos não conseguiram por em prática um modelo de justiça social. 2000 anos em que eles tinham a solução, tinham a faca e o queijo na mão (além do Deus Todo-Poderoso) e fingiram que não era com eles... Isso é uma especulação, não sei se era isso que passava pela cabeça do Marx enquanto ele elaborava sua análise/proposta de solução dos problemas sócio-econômicos que eram enfrentados por ele e seus contemporâneos."

Poucas semanas depois, ao redigir minha Primeira colheita, em que lidei, dentre outros assuntos, com certas críticas dirigidas contra alguns aspectos secundários da análise feita por mim no texto Assalto ao velho restaurante, eu disse:

"Para entender que isso [o parasitismo do marxismo sobre a tradição judaico-cristã] é assim desde o início, basta notar que Marx foi cristão em sua juventude (como foi muito bem lembrado por meu amigo Gustavo) e era judeu por nascimento. Não pode haver dúvida de que a preocupação social de Marx, por mais distorcida que fosse, inspirou-se nessa tradição (especialmente nos textos dos profetas do Antigo Testamento) para depois se voltar contra ela e acusá-la de ser a fonte de legitimação da injustiça e acomodação diante da mesma."

O que eu pretendia ressaltar nesse trecho é que a própria revolta de Karl Marx contra as condutas abomináveis dos judeus e cristãos só foi possível com base em critérios que são, eles próprios, derivados da moral judaico-cristã. Portanto, ao transformar sua crítica às práticas dos judeus e cristãos em uma rejeição das religiões em si mesmas, Marx teria incorrido numa flagrante inconsistência. Note-se, porém, que eu parti do pressuposto de que a especulação do Gustavo foi essencialmente correta: Marx seria um sujeito que cria na objetividade dos valores morais, e estaria, motivado por esse idealismo moral, sinceramente interessado em eliminar as injustiças e opressões presentes na sociedade em que vivia.

Na verdade eu já tinha, nessa época, razões para suspeitar de que esse quadro não era lá muito verídico. Afinal, eu já lera um livro do pensador católico Auguste Etcheverry que apontava, com citações e tudo mais, para o fato de que a objetividade moral não tinha lugar na doutrina marxista, a qual era, de modo intrínseco e declarado, materialista, determinista e amoral. Na época, apesar da farta documentação, fui impedido, talvez por um esquerdismo residual, de levar totalmente a sério as declarações de Etcheverry. Eu jamais vira críticas tão contundentes ao marxismo, e temi que o autor estivesse exagerando em sua descrição. Foi essa a motivação por trás da minha cautela em discordar abertamente do Gustavo, o que me levou a elaborar uma crítica às idéias de Marx que, embora não menos acertada, foi bem mais fraca do que poderia ter sido. Restringi-me, na verdade, a repetir com minhas próprias palavras a crítica feita pelo escritor cristão Vinoth Ramachandra, do Sri Lanka, no livro A falência dos deuses (Gods that fail), que, aliás, me foi emprestado pelo próprio Gustavo na época em que moramos juntos na saudosa República Vizinhos do Tutan. Isso me leva a crer que tais semelhanças no conteúdo dos discursos não são, na verdade, meras coincidências.

Comecei a perceber que minha crítica ao marxismo havia de fato sido branda demais quando, alguns dias depois, um outro amigo, o André Luiz, enviou-me um e-mail comentando certas declarações feitas por mim no blog. Sobre essa questão específica, as palavras dele foram:

"O marxianismo, isto é, o marxismo tal como descrito nas obras de Marx - deixando-se de lado os seus desenvolvimentos posteriores - é originariamente amoral, baseando-se em uma análise determinista da História. Na propaganda ideológica que se seguiu, o marxismo teve de adotar, de maneira vaga, os valores judaico-cristãos: ou melhor, ressignificá-los, parasitando-os para vencer os embates eleitorais, como você apontou de maneira excelente. Mais tarde é que novas formas marxistas passaram a defender valores em um âmbito moral, voltados a substituir a ética cristã. Para isto são mantidas as aparências enquanto o conteúdo é sistematicamente modificado."

De lá pra cá li um bocado de coisas sobre o assunto, e concluí que o André tem razão. Não pretendo enveredar agora por uma defesa desse ponto de vista. O que importa é ressaltar que seria desonesto de minha parte não me retratar do meu equívoco e reconhecer que errei ao alimentar suspeitas infundadas contra Etcheverry. Num certo sentido, sem dúvida, eu estava ainda mais certo do que supunha quanto ao parasitismo que denunciei em Assalto ao velho restaurante. Conhecendo um pouco mais sobre a proposta de Gramsci quanto a uma "revolução cultural", bem como sobre a Escola de Frankfurt, vejo que esse parasitismo é bem mais profundo do que eu imaginava, inclusive como estratégia política revolucionária sistematizada. Mas eu estava errado quando dei a entender que o marxismo enquanto tal, especialmente em sua forma original, fundava-se em preocupações de ordem moral. Um dia talvez eu exponha isso tudo com mais detalhes aqui, depois que eu tiver estudado um pouco melhor esse tema, que, aliás, está bem longe de ser uma das minhas prioridades no momento.

O segundo ponto que desejo comentar é algo que eu disse na Terceira colheita. Explicando que o objetivo do post A trindade na diversidade era o de definir adequadamente as diferenças entre evolucionismo, criacionismo e design inteligente, escrevi:

"Esse é um problema que me esforcei para resolver, e creio que agora o consegui. Mas não tenho tanta certeza disso, pois um amigo me informou durante uma conversa que Francis Collins, coordenador do famoso Projeto Genoma Humano, defende em seu livro recém-publicado, The language of God, uma concepção que se distingue de todas as três que apresentei aqui. Como eu ainda não li o livro e meu amigo não pôde me dar informações mais detalhadas porque também não havia terminado a leitura, não posso me pronunciar a respeito por enquanto, e limito-me agora a prometer que retornarei ao tema num post futuro se constatar que a minha classificação tripartidária se tornou desatualizada, ou se houver mais algo interessante a ser dito sobre o tema."

O amigo a que me referi era, novamente, o André. Depois de concluir a leitura do livro, ele contou-me que Collins na verdade é um evolucionista teísta como qualquer outro, e é darwinista. As definições que forneci continuam válidas, portanto. Porém, devo também deixar registrado que fui enganado pela minha memória ao redigir o trecho acima. O que o André havia dito, na realidade, era que Collins parecia se opor tanto ao criacionismo e ao design inteligente quanto ao darwinismo, e não que ele se opunha ao evolucionismo em si, do qual o darwinismo é apenas uma corrente, embora, sem dúvida, a principal. O caso, de qualquer forma, também não era esse, mas achei que valeria a pena informar os leitores sobre o desfecho dessa história.

O terceiro ponto, ainda vinculado ao tema da evolução e seus antagonistas, é o comentário do meu amigo Fortes ao meu post Visita a um velho conhecido. Quem quiser pode conferir lá, mas o que ele disse, em resumo, foi que considera o design inteligente pouco científico por ser cômodo. Além disso, ele imagina que o problema da origem da vida poderia ser resolvido postulando-se a presença de catalisadores apropriados, como ocorre na química dos polímeros (assunto que, devo dizer, meu amigo conhece muito bem). Enviei-lhe um e-mail em resposta, e publico seu conteúdo aqui, com leves adaptações, muito embora essa discussão fuja ao tema do post. Não publicarei a resposta do Fortes porque ele não contestou nenhuma das minhas afirmações, limitando-se a prestar certos esclarecimentos que eu havia solicitado.

"Quanto ao seu comentário, devo, antes de respondê-lo, prestar um esclarecimento. Minha preocupação principal nesse post não era a de criticar o evolucionismo ou defender o design inteligente, embora eu possa ter transmitido essa impressão. O objetivo era apenas protestar contra uma crítica absolutamente idiota vinda de um sujeito que ignora absolutamente tudo a respeito do tema, o que, no entanto, não o impede de escrever a respeito com absoluta segurança. Não pude deixar de achar ridícula a pretensão de um professor de literatura (é isso o que Lenny Flank é) de, no mesmo artigo em que demonstra não saber nada sobre química, biologia e estatística, pra não falar em interpretação de textos, acusar um Ph.D. em bioquímica de ser ignorante em sua própria área. O que não significa que não haja pessoas muito mais qualificadas para defender a evolução.

Existe entre os filósofos da ciência um interminável debate sobre quais seriam, afinal de contas, os 'critérios de demarcação', ou seja, quais características distinguem as teorias genuinamente científicas de todas as demais. Nunca ouvi falar, porém, que 'comodidade' ou 'incomodidade' fosse um desses critérios, de modo que não posso concordar com sua afirmação de que o design inteligente é pouco científico por ser cômodo. Aliás, como você sabe, ele incomoda muita gente. Não conheço em detalhes todos as linhas de argumentação envolvidas, mas, pelo menos a mais famosa delas, a complexidade irredutível, poderia ser refutada de maneira muito simples. E o fato de que ninguém tenha feito isso até agora (e quase ninguém tenha tentado) é em si mesmo bastante significativo, se não quanto a qual dos lados tem razão, pelo menos quanto a qual deles está mais acomodado. Afinal, comodismo por comodismo, considero no mínimo igualmente acomodados os darwinistas que, em vez de produzirem uma resposta conceitual e experimentalmente válida ao desafio proposto por Behe e seus amigos, ficam sentados confortavelmente em suas cátedras murmurando desculpas filosóficas como 'criacionismo disfarçado' e 'isso não é ciência'.

É principalmente por causa dessa atitude dogmática e petulante de grande parte da comunidade científica que eu considero o design inteligente uma teoria muito salutar e digna do meu apoio. Embora até o momento, de fato, o argumento deles me pareça mais forte que o dos evolucionistas em certos aspectos, não acho impossível que uma explicação evolucionária qualquer venha a suplantá-lo futuramente, e não tenho quaisquer objeções filosóficas ou teológicas a essa hipótese. Mas, sendo obrigado a julgar as teorias pela evidência presente, e não por hipotéticas descobertas futuras, minhas leituras sobre o tema me convenceram de que há muita coisa muito mal explicada, ou não explicada de maneira alguma, nas teorias evolutivas atuais, e que os cientistas que as defendem, mesmo os mais eminentes e capazes, só o fazem por compromisso ideológico ou por aquele tipo de estreiteza mental institucionalizada contra a qual Thomas Kuhn já nos advertia há mais de quarenta anos.

Não sei quanto você estudou o assunto mas, por via das dúvidas, acho que vale a pena dizer também que os exemplos de sistemas bioquímicos que Behe e outros consideram irredutivelmente complexos não se limitam à questão da origem da vida. Em Darwin's black box, Behe discute uma porção de outros casos, vários dos quais obviamente só surgiram muito depois na história da vida, como o sistema imunológico, a visão, os flagelos bacterianos e os mecanismos de transporte de substâncias através das células. Muitos desses sistemas específicos seriam, segundo a teoria, irredutivelmente complexos em si mesmos, não sendo, portanto, necessário supor que apenas a célula viva como um todo se enquadra nessa categoria. Assim, a resolução do problema da origem da vida seria apenas uma parte, embora provavelmente a mais difícil e importante, da refutação do conceito de complexidade irredutível.

E essa parte, aliás, vai muito mal. Tanto que tem gente oferecendo um milhão de dólares só por uma explicação bem fundamentada para a origem da informação genética nos seres vivos (veja aqui). E isso não é coisa de criacionistas. Não sei nada sobre polímeros, de modo que não posso julgar o valor da analogia que você propôs. Aliás, agradeço muito se você puder me explicar melhor. Mas a idéia de catalisadores já foi muito explorada ao longo da história dos experimentos sobre abiogênese, e até Carl Sagan se meteu a dar sugestões nesse sentido. Para ser mais exato, já se tentou de tudo para gerar as reações químicas apropriadas; desde a utilização de meios argilosos até a teoria do RNA autocatalítico, passando pelos proteinóides de Sidney Fox. Todos têm problemas teóricos sérios, e nenhum produziu resultados experimentais que chegassem perto de serem considerados promissores. Não acho impossível, volto a dizer, que alguém consiga algo do tipo qualquer hora dessas. Mas por enquanto as explicações disponíveis parecem-me puramente imaginativas, sem qualquer conexão com a realidade. Quem quiser acreditar acredite, mas não venham me dizer mais tarde que a teoria está bem fundamentada, faltando apenas acertar alguns detalhes. Como disse Phillip Johnson, é como se alguém achasse que é possível explicar o funcionamento do avião imaginando-se um fusca com asas."

4 de dezembro de 2007

Cinco pontos e mais alguns

Quando, na minha infância, comecei a prestar atenção ao que era dito nos estudos bíblicos promovidos pela minha igreja nas noites de quarta-feira, comecei a tomar um contato um pouco mais profundo com a teologia protestante. Isso me foi muito útil por diversas razões, embora em meados da adolescência eu ainda tivesse dificuldade para entender alguns pontos básicos. Sobre os mais avançados, há inúmeras questões que não entendi direito até hoje, muitas das quais dividem também as opiniões dos teólogos. Lembro-me, porém, de apenas dois desses estudos: um sobre o milênio descrito em Apocalipse 20 e questões escatológicas relacionadas, e o outro sobre a doutrina da predestinação, um dos pontos principais da teologia calvinista. Embora ultimamente eu tenha dedicado algum tempo ao estudo da primeira questão, é sobre a segunda que pretendo falar agora. Poucas doutrinas são tão detestadas pelos críticos do calvinismo, tanto dentro quanto fora da tradição evangélica e cristã em geral. Ao mesmo tempo, creio eu, nenhuma é tão mal compreendida. Muitos a tomam como sinônimo de determinismo ou fatalismo, ou pelo menos consideram que a aplicação coerente dos pressupostos da doutrina calvinista levaria diretamente a uma das duas coisas.

Creio que a melhor forma de desfazer esse equívoco é contemplar o quê, exatamente, diz a doutrina calvinista sobre o assunto. Tentarei fazer isso explicando os assim chamados Cinco pontos do calvinismo, os quais foram formulados e defendidos pela primeira vez no Sínodo de Dort, em 1619, como tomada de posição oficial contra o arminianismo. São os seguintes: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Colocados nessa ordem, resultam na sigla inglesa TULIP (total depravity, unconditional election, limited atonement, irresistible grace, perseverance of the saints), pela qual os cinco pontos também são designados às vezes. Tentarei explicar de maneira resumida o significado desses pontos, bem como a unidade lógica subjacente aos mesmos, e aproveitarei para apresentar o significado de alguns termos e conceitos importantes e sempre presentes na terminologia calvinista.

A formulação desses cinco pontos pressupõe o conceito bíblico da Queda do Homem. Pense cada um o que quiser sobre a literalidade ou não da narrativa do Gênesis; mas permanece o fato de que o homem, como indivíduo e como espécie, é pecador e, por conseguinte, encontra-se naturalmente em estado de inimizade contra Deus, que necessariamente é santo, perfeito e tem horror ao mal. Estamos todos muito aquém do padrão de moralidade considerado aceitável por Deus, e não podemos sair dessa situação a não ser com o auxílio do próprio Deus, que nos salva pela obra redentora de Jesus Cristo. Sem isso, em virtude do contraste mesmo entre a santidade divina e a podridão humana, não podemos ser restaurados à comunhão com Deus que é o principal objetivo de nossa existência. Por isso, pressuponho que o leitor esteja familiarizado com essas doutrinas, que estão entre as mais obviamente expressas no Novo Testamento, e por isso mesmo não constituem desacordo entre as diversas vertentes da teologia cristã.

O primeiro ponto, a depravação total, é o mais importante dos cinco, e é, na realidade, a fonte de todos os debates entre o calvinismo e as teologias de orientação sinergista. Ele significa que o homem, deixado à sua livre iniciativa, jamais obterá a salvação. Isso não é o mesmo que apenas dizer que as boas obras não bastam para obtê-la. Mesmo com a salvação gratuita oferecida em Cristo, o homem continuará incapaz até de desejar ser salvo. A iniciativa de salvar cabe, portanto, ao lado divino, o que nos leva ao segundo ponto. Mas antes convém esclarecer que a depravação total não significa que nada de bom tenha restado no homem. "Total" tem também o sentido de "integral", significando que todos os aspectos da natureza humana, entre os quais a moralidade e a razão, são atingidos e prejudicados pelo pecado. Isso não quer dizer que não possamos efetuar obras realmente boas, ou que não possamos conhecer verdades sobre a realidade, pois nada disso tem a ver necessariamente com a salvação, que é o foco principal dessa doutrina. Ela significa, isso sim, que com a Queda nos tornamos imperfeitos em todos os aspectos do nosso ser; e com imperfeição quero dizer corrupção e decadência, e não apenas finitude e limitação.

Dado que homem algum é capaz de efetuar por si mesmo a reconciliação com Deus, mesmo com sacrifício redentor e tudo, segue-se que a salvação ou perdição não é determinada por qualquer atitude ou característica presente nos indivíduos, que são, sob esse ponto de vista, idênticos. Essa diferenciação não se baseia, portanto, em diferenças de qualquer tipo entre os homens em questão, e sim em critérios não revelados que Deus estabeleceu para si mesmo. Esse é o significado do segundo ponto, a eleição incondicional.

Antes de prosseguir, cabe aqui mais um esclarecimento. Essa idéia da absoluta soberania divina é, na verdade, a doutrina central do calvinismo, e não a predestinação. Esta é um corolário ou, pra ser mais exato, um caso particular daquela. Louis Berkhof e outros sistematizadores da teologia calvinista deram a isso o nome de doutrina dos decretos de Deus. Significa que tudo o que existe e acontece, mesmo os nossos atos livres (incluindo-se aí os maus atos livres) e seus resultados, só podem existir e acontecer porque Deus assim decidiu. Não quer dizer que Deus necessariamente participa de maneira direta ou ativa no ato em si, ou em que sentido o faz. Na verdade, isso é irrelevante. O que importa é que, dada a onipotência e a onisciência divinas, e o fato de que ele nada faz ou permite sem propósito (ainda que só conhecido por ele mesmo), segue-se que nada ocorre sem ter sido previamente decretado por ele (vale lembrar que isso não deve ser entendido num sentido cronológico, conforme já alertei no post A mais grandiosa das aventuras) .

A doutrina da predestinação resulta da aplicação da doutrina dos decretos divinos à questão, muito mais específica, do destino final das criaturas morais de Deus (isto é, os homens e os anjos, até onde sabemos). Ninguém irá para o céu ou para o inferno se essa não for, no fim das contas, a vontade de Deus, pois o contrário seria admitir que seus propósitos foram frustrados. Aqui entra o terceiro ponto, a expiação limitada, que significa que o sacrifício de Cristo foi efetuado definidamente em prol dos eleitos (conhecidos de antemão, como disse o apóstolo Paulo), e não como uma possibilidade aberta primeiro para depois ver quem a aceitaria. Se me for permitido dizer assim, essa doutrina significa que não houve desperdício de expiação.

Nesse sentido, sem dúvida, pode-se falar em uma dupla predestinação, ou seja, que alguns são predestinados à salvação e outros à perdição. Porém, os teólogos calvinistas não costumam gostar dessa expressão, e têm suas razões para isso. Uma delas é que, embora se enquadre como caso especial dos decretos de Deus, a palavra "predestinação" usualmente expressa mais do que isso. Encontram-se embutidas em seu significado pleno as conseqüências lógicas do conceito de depravação total, e este não pode, creio eu, ser logicamente deduzido da doutrina dos decretos divinos. Daí se segue que a concretização do ato salvífico no indivíduo passa necessariamente por aquilo que a teologia calvinista denomina "regeneração", pela qual o homem é tornado capaz de desejar a salvação e, portanto, de recebê-la. A regeneração é o ato do Espírito Santo que produz a fé e, portanto, a antecede.

Ao tocar nesse ponto chegamos, enfim, à dissensão fundamental entre o sinergismo e o monergismo. Na verdade, essa divergência reside na idéia da depravação total, que, mesmo não sendo tão radical quanto alguns dão a entender (os que chamamos às vezes de ultracalvinistas, mais ou menos no mesmo sentido em que chamamos Richard Dawkins de ultradarwinista), ainda é suficiente para tornar inviável, se aceita, qualquer teoria sinergista. As conseqüências lógicas da posição tomada quanto à profundidade e extensão dos efeitos da Queda se manifestam com toda a sua força na hora de sabermos qual é exatamente a participação do eleito na própria salvação. Muitos dos melhores teólogos calvinistas insistiram que o processo todo, embora de iniciativa puramente divina, não chega a violar a liberdade humana. Estou ciente de que muita filosofia, psicologia e antropologia foi produzida pela tradição calvinista na tentativa de lidar com as complicadas questões decorrentes daí, mas quanto a esse tema, pelo simples fato de não conhecer nada disso em profundidade, não tenho direito algum de falar em nome do calvinismo. Eu poderia, no máximo, discorrer sobre minhas especulações pessoais. Mas estas não só fogem aos meus propósitos imediatos com também, não tendo sido devidamente enriquecidas pelo contato com os debates ocorridos entre pessoas muito mais qualificadas para tratar do assunto, não são sequer dignas de atenção.

Do que foi exposto, pode-se compreender facilmente o quarto ponto. À luz das doutrinas da eleição incondicional e da depravação total, conclui-se que, sejam quais forem os meios utilizados, o Espírito Santo regenera eficazmente aqueles que foram eleitos. Isso não quer dizer que seja impossível resistir à regeneração, e muito menos que seja impossível resistir ao Espírito Santo quanto a outras influências que ele pode produzir em nós. Significa apenas que, com relação a essa questão específica da salvação, a qual passa necessariamente pela regeneração, a resistência não prevalecerá indefinidamente. O Espírito não tenta regenerar todos os homens, mas tão somente os eleitos, e estes acabam, no fim das contas, regenerados. Decorre daí o nome do quarto ponto, a graça irresistível.

A regeneração, porém, não é tudo. Ela produz a fé, e a fé produz a justificação. Esta é a reconciliação com Deus propriamente dita, com base unicamente nos méritos de Cristo, e é feita imediatamente. O indivíduo justificado, porém, é ainda um pecador. A partir do instante da justificação tem início uma nova etapa, denominada santificação. Esta, ao contrário daquela, é um processo gradual, e é, podemos dizer assim, sinergística. Ou seja, nela concorrem tanto a ação do Espírito Santo quanto o esforço do indivíduo em questão. Seu efeito é levar o homem regenerado a refletir a glória e a perfeição do Senhor Jesus, e isso em todos os aspectos de seu ser. Os efeitos da santificação, assim como os da Queda, estendem-se por todos os domínios da vida humana. A aquisição de uma vida santa e moralmente perfeita não é, portanto, um pré-requisito para que sejamos aceitos na presença de Deus. A realidade é o oposto exato disso: essa admissão é que é a condição possibilitadora da genuína santidade.

O quinto ponto, a perseverança dos santos, significa que a regeneração e a justificação são processos irreversíveis, ou seja, não é possível, a alguém que tenha alcançado a salvação, perdê-la mais tarde. O mesmo, porém, não é válido para a santificação, que pode regredir também em todos os níveis. Uma vez mais, aqui é possível resistir ao Espírito Santo, mas essa resistência acabará por ser esmagada. As fases do processo que dependem unicamente da ação divina são eficazes e irreversíveis; apenas quando entra em cena a colaboração humana é que as coisas começam a dar errado. Mas, para os eleitos, não para sempre.

Em vista de tudo o que foi dito, fica mais fácil entender a outra razão pela qual a expressão "dupla predestinação" não é muito bem vista no meio calvinista. É que a palavra "predestinação" também subentende, no contexto dessa teologia, uma ação direta de Deus como requisito para a salvação do indivíduo. Não convém entrar numa discussão sobre o que pode ou não ser considerado uma ação direta, mas sem dúvida é algo específico e qualitativamente distinto do mero ato de sustentação com que Deus mantém toda a criação. E essa interferência ativa é algo que ocorre na salvação dos eleitos, mas não na perdição dos reprovados. A eleição e a reprovação, embora sejam termos opostos na terminologia calvinista, não são fenômenos perfeitamente simétricos: o primeiro requer a atividade divina e o segundo a sua passividade, no sentido em questão. Em outras palavras, o calvinismo concebe a humanidade como uma multidão que vai caminhando espontaneamente para o inferno. Deus se coloca deliberadamente no caminho de alguns e os convence a dar meia-volta e caminhar na direção oposta. Os demais continuam caminhando para a perdição, e o fazem com suas próprias pernas.