4 de dezembro de 2007

Cinco pontos e mais alguns

Quando, na minha infância, comecei a prestar atenção ao que era dito nos estudos bíblicos promovidos pela minha igreja nas noites de quarta-feira, comecei a tomar um contato um pouco mais profundo com a teologia protestante. Isso me foi muito útil por diversas razões, embora em meados da adolescência eu ainda tivesse dificuldade para entender alguns pontos básicos. Sobre os mais avançados, há inúmeras questões que não entendi direito até hoje, muitas das quais dividem também as opiniões dos teólogos. Lembro-me, porém, de apenas dois desses estudos: um sobre o milênio descrito em Apocalipse 20 e questões escatológicas relacionadas, e o outro sobre a doutrina da predestinação, um dos pontos principais da teologia calvinista. Embora ultimamente eu tenha dedicado algum tempo ao estudo da primeira questão, é sobre a segunda que pretendo falar agora. Poucas doutrinas são tão detestadas pelos críticos do calvinismo, tanto dentro quanto fora da tradição evangélica e cristã em geral. Ao mesmo tempo, creio eu, nenhuma é tão mal compreendida. Muitos a tomam como sinônimo de determinismo ou fatalismo, ou pelo menos consideram que a aplicação coerente dos pressupostos da doutrina calvinista levaria diretamente a uma das duas coisas.

Creio que a melhor forma de desfazer esse equívoco é contemplar o quê, exatamente, diz a doutrina calvinista sobre o assunto. Tentarei fazer isso explicando os assim chamados Cinco pontos do calvinismo, os quais foram formulados e defendidos pela primeira vez no Sínodo de Dort, em 1619, como tomada de posição oficial contra o arminianismo. São os seguintes: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Colocados nessa ordem, resultam na sigla inglesa TULIP (total depravity, unconditional election, limited atonement, irresistible grace, perseverance of the saints), pela qual os cinco pontos também são designados às vezes. Tentarei explicar de maneira resumida o significado desses pontos, bem como a unidade lógica subjacente aos mesmos, e aproveitarei para apresentar o significado de alguns termos e conceitos importantes e sempre presentes na terminologia calvinista.

A formulação desses cinco pontos pressupõe o conceito bíblico da Queda do Homem. Pense cada um o que quiser sobre a literalidade ou não da narrativa do Gênesis; mas permanece o fato de que o homem, como indivíduo e como espécie, é pecador e, por conseguinte, encontra-se naturalmente em estado de inimizade contra Deus, que necessariamente é santo, perfeito e tem horror ao mal. Estamos todos muito aquém do padrão de moralidade considerado aceitável por Deus, e não podemos sair dessa situação a não ser com o auxílio do próprio Deus, que nos salva pela obra redentora de Jesus Cristo. Sem isso, em virtude do contraste mesmo entre a santidade divina e a podridão humana, não podemos ser restaurados à comunhão com Deus que é o principal objetivo de nossa existência. Por isso, pressuponho que o leitor esteja familiarizado com essas doutrinas, que estão entre as mais obviamente expressas no Novo Testamento, e por isso mesmo não constituem desacordo entre as diversas vertentes da teologia cristã.

O primeiro ponto, a depravação total, é o mais importante dos cinco, e é, na realidade, a fonte de todos os debates entre o calvinismo e as teologias de orientação sinergista. Ele significa que o homem, deixado à sua livre iniciativa, jamais obterá a salvação. Isso não é o mesmo que apenas dizer que as boas obras não bastam para obtê-la. Mesmo com a salvação gratuita oferecida em Cristo, o homem continuará incapaz até de desejar ser salvo. A iniciativa de salvar cabe, portanto, ao lado divino, o que nos leva ao segundo ponto. Mas antes convém esclarecer que a depravação total não significa que nada de bom tenha restado no homem. "Total" tem também o sentido de "integral", significando que todos os aspectos da natureza humana, entre os quais a moralidade e a razão, são atingidos e prejudicados pelo pecado. Isso não quer dizer que não possamos efetuar obras realmente boas, ou que não possamos conhecer verdades sobre a realidade, pois nada disso tem a ver necessariamente com a salvação, que é o foco principal dessa doutrina. Ela significa, isso sim, que com a Queda nos tornamos imperfeitos em todos os aspectos do nosso ser; e com imperfeição quero dizer corrupção e decadência, e não apenas finitude e limitação.

Dado que homem algum é capaz de efetuar por si mesmo a reconciliação com Deus, mesmo com sacrifício redentor e tudo, segue-se que a salvação ou perdição não é determinada por qualquer atitude ou característica presente nos indivíduos, que são, sob esse ponto de vista, idênticos. Essa diferenciação não se baseia, portanto, em diferenças de qualquer tipo entre os homens em questão, e sim em critérios não revelados que Deus estabeleceu para si mesmo. Esse é o significado do segundo ponto, a eleição incondicional.

Antes de prosseguir, cabe aqui mais um esclarecimento. Essa idéia da absoluta soberania divina é, na verdade, a doutrina central do calvinismo, e não a predestinação. Esta é um corolário ou, pra ser mais exato, um caso particular daquela. Louis Berkhof e outros sistematizadores da teologia calvinista deram a isso o nome de doutrina dos decretos de Deus. Significa que tudo o que existe e acontece, mesmo os nossos atos livres (incluindo-se aí os maus atos livres) e seus resultados, só podem existir e acontecer porque Deus assim decidiu. Não quer dizer que Deus necessariamente participa de maneira direta ou ativa no ato em si, ou em que sentido o faz. Na verdade, isso é irrelevante. O que importa é que, dada a onipotência e a onisciência divinas, e o fato de que ele nada faz ou permite sem propósito (ainda que só conhecido por ele mesmo), segue-se que nada ocorre sem ter sido previamente decretado por ele (vale lembrar que isso não deve ser entendido num sentido cronológico, conforme já alertei no post A mais grandiosa das aventuras) .

A doutrina da predestinação resulta da aplicação da doutrina dos decretos divinos à questão, muito mais específica, do destino final das criaturas morais de Deus (isto é, os homens e os anjos, até onde sabemos). Ninguém irá para o céu ou para o inferno se essa não for, no fim das contas, a vontade de Deus, pois o contrário seria admitir que seus propósitos foram frustrados. Aqui entra o terceiro ponto, a expiação limitada, que significa que o sacrifício de Cristo foi efetuado definidamente em prol dos eleitos (conhecidos de antemão, como disse o apóstolo Paulo), e não como uma possibilidade aberta primeiro para depois ver quem a aceitaria. Se me for permitido dizer assim, essa doutrina significa que não houve desperdício de expiação.

Nesse sentido, sem dúvida, pode-se falar em uma dupla predestinação, ou seja, que alguns são predestinados à salvação e outros à perdição. Porém, os teólogos calvinistas não costumam gostar dessa expressão, e têm suas razões para isso. Uma delas é que, embora se enquadre como caso especial dos decretos de Deus, a palavra "predestinação" usualmente expressa mais do que isso. Encontram-se embutidas em seu significado pleno as conseqüências lógicas do conceito de depravação total, e este não pode, creio eu, ser logicamente deduzido da doutrina dos decretos divinos. Daí se segue que a concretização do ato salvífico no indivíduo passa necessariamente por aquilo que a teologia calvinista denomina "regeneração", pela qual o homem é tornado capaz de desejar a salvação e, portanto, de recebê-la. A regeneração é o ato do Espírito Santo que produz a fé e, portanto, a antecede.

Ao tocar nesse ponto chegamos, enfim, à dissensão fundamental entre o sinergismo e o monergismo. Na verdade, essa divergência reside na idéia da depravação total, que, mesmo não sendo tão radical quanto alguns dão a entender (os que chamamos às vezes de ultracalvinistas, mais ou menos no mesmo sentido em que chamamos Richard Dawkins de ultradarwinista), ainda é suficiente para tornar inviável, se aceita, qualquer teoria sinergista. As conseqüências lógicas da posição tomada quanto à profundidade e extensão dos efeitos da Queda se manifestam com toda a sua força na hora de sabermos qual é exatamente a participação do eleito na própria salvação. Muitos dos melhores teólogos calvinistas insistiram que o processo todo, embora de iniciativa puramente divina, não chega a violar a liberdade humana. Estou ciente de que muita filosofia, psicologia e antropologia foi produzida pela tradição calvinista na tentativa de lidar com as complicadas questões decorrentes daí, mas quanto a esse tema, pelo simples fato de não conhecer nada disso em profundidade, não tenho direito algum de falar em nome do calvinismo. Eu poderia, no máximo, discorrer sobre minhas especulações pessoais. Mas estas não só fogem aos meus propósitos imediatos com também, não tendo sido devidamente enriquecidas pelo contato com os debates ocorridos entre pessoas muito mais qualificadas para tratar do assunto, não são sequer dignas de atenção.

Do que foi exposto, pode-se compreender facilmente o quarto ponto. À luz das doutrinas da eleição incondicional e da depravação total, conclui-se que, sejam quais forem os meios utilizados, o Espírito Santo regenera eficazmente aqueles que foram eleitos. Isso não quer dizer que seja impossível resistir à regeneração, e muito menos que seja impossível resistir ao Espírito Santo quanto a outras influências que ele pode produzir em nós. Significa apenas que, com relação a essa questão específica da salvação, a qual passa necessariamente pela regeneração, a resistência não prevalecerá indefinidamente. O Espírito não tenta regenerar todos os homens, mas tão somente os eleitos, e estes acabam, no fim das contas, regenerados. Decorre daí o nome do quarto ponto, a graça irresistível.

A regeneração, porém, não é tudo. Ela produz a fé, e a fé produz a justificação. Esta é a reconciliação com Deus propriamente dita, com base unicamente nos méritos de Cristo, e é feita imediatamente. O indivíduo justificado, porém, é ainda um pecador. A partir do instante da justificação tem início uma nova etapa, denominada santificação. Esta, ao contrário daquela, é um processo gradual, e é, podemos dizer assim, sinergística. Ou seja, nela concorrem tanto a ação do Espírito Santo quanto o esforço do indivíduo em questão. Seu efeito é levar o homem regenerado a refletir a glória e a perfeição do Senhor Jesus, e isso em todos os aspectos de seu ser. Os efeitos da santificação, assim como os da Queda, estendem-se por todos os domínios da vida humana. A aquisição de uma vida santa e moralmente perfeita não é, portanto, um pré-requisito para que sejamos aceitos na presença de Deus. A realidade é o oposto exato disso: essa admissão é que é a condição possibilitadora da genuína santidade.

O quinto ponto, a perseverança dos santos, significa que a regeneração e a justificação são processos irreversíveis, ou seja, não é possível, a alguém que tenha alcançado a salvação, perdê-la mais tarde. O mesmo, porém, não é válido para a santificação, que pode regredir também em todos os níveis. Uma vez mais, aqui é possível resistir ao Espírito Santo, mas essa resistência acabará por ser esmagada. As fases do processo que dependem unicamente da ação divina são eficazes e irreversíveis; apenas quando entra em cena a colaboração humana é que as coisas começam a dar errado. Mas, para os eleitos, não para sempre.

Em vista de tudo o que foi dito, fica mais fácil entender a outra razão pela qual a expressão "dupla predestinação" não é muito bem vista no meio calvinista. É que a palavra "predestinação" também subentende, no contexto dessa teologia, uma ação direta de Deus como requisito para a salvação do indivíduo. Não convém entrar numa discussão sobre o que pode ou não ser considerado uma ação direta, mas sem dúvida é algo específico e qualitativamente distinto do mero ato de sustentação com que Deus mantém toda a criação. E essa interferência ativa é algo que ocorre na salvação dos eleitos, mas não na perdição dos reprovados. A eleição e a reprovação, embora sejam termos opostos na terminologia calvinista, não são fenômenos perfeitamente simétricos: o primeiro requer a atividade divina e o segundo a sua passividade, no sentido em questão. Em outras palavras, o calvinismo concebe a humanidade como uma multidão que vai caminhando espontaneamente para o inferno. Deus se coloca deliberadamente no caminho de alguns e os convence a dar meia-volta e caminhar na direção oposta. Os demais continuam caminhando para a perdição, e o fazem com suas próprias pernas.

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