16 de janeiro de 2008

Pedaços de bagunça

Dando prosseguimento ao tema iniciado em A origem da bagunça, em que descrevi as mais importantes causas da existência das variações que são objeto de estudo da crítica textual, este post ilustrará os casos ali descritos com exemplos retirados dos textos bíblicos, tanto hebraicos quanto gregos. Considero importante esse procedimento a fim de evitar que a descrição precedente se mostre demasiado abstrata, e assim induza a concepções erradas sobre a profundidade e a importância relativa das variantes textuais. Quase todos os exemplos foram retirados dos livros já citados de Paroschi e Archer. Usei exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento sempre que foi possível, mas em alguns casos não fui capaz de localizar exemplos apropriados de um ou de outro. Em particular, a última parte não contém exemplos veterotestamentários, por razões já explicadas no post anterior.

Cabe observar que, seguindo a recomendação de Franz Schalkwijk em seu livro Coinê, uma introdução ao grego helenístico, optei por distinguir entre as letras epsilon e êta, kapa e khi, omicron e ômega, transliterando-as como "e" e "ê", "k" e "kh", "o" e "ô", respectivamente. Na verdade, Schalkwijk recomenda um traço horizontal no lugar dos acentos circunflexos, mas fiz essa substituição por temer que o navegador de algum leitor apronte uma confusão qualquer. Nem todos os autores que lidam com o assunto seguem a convenção proposta no livro didático mencionado. Julguei útil a sugestão de Schalkwijk por eliminar de modo relativamente simples as ambigüidades na transliteração. Esse método paga o preço de ignorar os sinais diacríticos, mas isso não chega a ser um grande problema, visto que eles não fazem parte dos manuscritos neotestamentários mais antigos. Dessa forma, deve ficar claro que a presença dos referidos acentos não diz muito sobre a pronúncia das palavras onde aparece e, em particular, não diz nada sobre a tonicidade das mesmas.

Alterações não intencionais

A. Causadas pela falta de atenção do copista;

1. Trocas de posições entre letras ou palavras. Isaías 32.19 diz: "ainda que haja saraivada, caia o bosque e seja a cidade inteiramente abatida." "A cidade" é "h'yr", mas alguns manuscritos dizem "hy'r", que significa "a floresta". Na descrição da agressão a Jesus perante o Sinédrio, em Marcos 14.65, é dito que "os guardas o receberam com bofetadas". Mas há versões que substituem "receberam" ("elabon") por "arremessaram" ("ebalon").

2. Trocas de palavras por sinônimos. Podem ser encontrados exemplos em dezenas de passagens do Novo Testamento nas quais aparece a preposição "peri", sendo substituída por "hyper", ambas tendo, nesses contextos, sentido semelhante a "sobre".

3. Repetição de uma seqüência de caracteres. Ezequiel 48.16, que fornece as dimensões da futura cidade santa, descreve-a como um quadrado de quatro mil e quinhentos côvados de lado, mas o texto massorético diz "cinco quinhentos" ("hsm hsm m'wt") ao invés de apenas "quinhentos" ("hsm m'wt"). Um exemplo do mesmo tipo pode ser visto em Atos 19.34, onde há manuscritos que reproduzem duas vezes a frase "Grande é a Diana dos efésios!".

4. Supressão de uma seqüência de caracteres repetida. No contexto da guerra movida contra a tribo de Benjamim pelas demais tribos de Israel em retaliação à morte cruel imposta por membros daquela tribo à esposa de um certo levita, nos é dito que "Benjamim não quis ouvir a voz de seus irmãos" (Juízes 20.13) quando foi exigida a morte dos criminosos. Essa versão segue o texto massorético. Porém, provavelmente a versão correta foi preservada na Septuaginta, que, em vez de simplesmente "Benjamim", diz "os filhos de Benjamim". A diferença é causada pela repetição de três letras ("bnymn" e "bny bnymn", respectivamente). Em 1 Tessalonicenses 2.7 Paulo afirma de si e seus companheiros: "nos tornamos crianças entre vós". Mas alguns manuscritos dizem "nos tornamos carinhosos entre vós". A diferença deve-se à supressão de um letra repetida: "egenêthêmen nêpioi" no primeiro caso, e "egenêthêmen êpioi" no segundo.

5. Supressão de uma seqüência de caracteres não repetida. O profeta Isaías diz, em 8.11, que Deus lhe falou "com a força da mão" sobre ele, segundo o texto massorético, mas "com força de mão", sem artigos, de acordo com um manuscrito encontrado em Qumran. A diferença no hebraico deve-se a apenas uma letra: no primeiro caso, escreve-se "bhzqt hyd"; no segundo, "bhzqt yd".

6. Supressão de uma seqüência de caracteres entre duas palavras iguais. O texto massorético e o Targum dizem em 1 Samuel 14.41 apenas o seguinte: "Falou, pois, Saul ao Senhor, Deus de Israel." Mas a Septuaginta diz: "Falou, pois, Saul: Ó Senhor, Deus de Israel, por que tu não respondes hoje ao teu servo? Se a injustiça é comigo ou meu filho Jônatas, dá prova; e se tu dizes que é com o teu povo Israel, dá santidade, ó Senhor, Deus de Israel." A maior parte de Lucas 18.39 foi omitida em certos manuscritos pelo fato de estar entre duas frases idênticas: "E os que iam na frente o repreendiam para que se calasse; ele, porém, cada vez gritava mais".

B. Causadas por dificuldades "físicas";

1. Fusão de duas palavras em uma. No meio da descrição dos rituais do Dia da Expiação é dito que Arão deveria lançar sortes "sobre os dois bodes: uma para o Senhor, e a outra para o bode emissário" (Levítico 16.8), como diz a Septuaginta. Mas o texto massorético diz "para Azazel" ("l'z'zl"), criando um sério problema exegético mediante a introdução de um nome próprio inteiramente desconhecido em lugar de "para o bode emissário" ("l'z 'zl"). Um caso mais brando encontra-se no final da resposta de Jesus ao desejo de Tiago e João pela proeminência no reino vindouro. Segundo alguns manuscritos, Jesus disse: "all ois êtoimastai", "porque é para aqueles a quem está preparado". Segundo outros, a resposta foi "allois êtoimastai", "isso está preparado para outros".

2. Cisão de uma única palavra em duas. Já foi sugerido que a forma original de Ezequiel 7.4 seria "segundo teus caminhos, tuas abominações estarão no meio de ti", e não "porque teus caminhos e tuas abominações estarão no meio de ti". A diferença teria sido causada pela cisão de "kdrkyk" em "ky drkyk".

3. Substituição de uma letra por outra de aparência semelhante. Para um exemplo em hebraico, vide o item C.2, abaixo. Em grego temos semelhanças entre as letras alfa, delta e lambda e entre epsilon e sigma, para dar exemplos apenas na forma uncial (ou "maiúscula") do alfabeto. Assim, Atos 15.40 diz que "Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu...", mas há manuscritos que dizem "tendo recebido" ("epidexamenos") ao invés de "tendo escolhido" ("epilexamenos").

4. Substituição de palavras por outras de som idêntico ou semelhante. A confusão entre "l'" ("não") e "lw" ("para ele"), de pronúncia idêntica, causou alteração no sentido de Isaías 9.3. Enquanto o natural seria "Tens multiplicado este povo, a alegria lhe aumentaste", alguns manuscritos dizem "a alegria não aumentaste". Outro exemplo bem famoso encontra-se na declaração de Paulo em Romanos 5.1: há uma versão que diz "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus...", enquanto outra traz "tenhamos" ("ekhômen") no lugar de "temos" ("ekhomen").

C. Causadas por incompreensão por parte do copista;

1. Evolução da pronúncia. Um bom exemplo hebraico desse fenômeno vincula-se ao caso descrito abaixo, no item 3. No grego, temos a diminuição gradual da distinção fonética entre êta e epsilon, resultando em equívocos como o de Marcos 14.31, onde um copista escreveu "mê" em vez de "me", resultando na seguinte frase de Pedro: "Se não for necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei".

2. Evolução da forma das letras. Em certos períodos da história paleográfica do hebraico, as letras daleth e resh (D e R) tornaram-se praticamente indistinguíveis, assim como as letras vav e yod (W e Y). Daí decorrem, por exemplo, várias diferenças na grafia de nomes próprios, como de Dodanim para Rodanim em Gênesis 10.4 e 1 Crônicas 1.7.

3. Evolução das regras gramaticais. Especialmente durante os séculos III a I a.C., as letras alef, he, vav e yod (', H, W e Y, respectivamente) foram usadas como indicações da presença de certas vogais, tendo sido deixado parcialmente de lado seu uso original como consoantes. A causa provável disso está no fato de que o uso do aramaico se difundiu muito, e muitas pessoas perderam a familiaridade natural com o hebraico. Quando os soferim (uma ordem de escribas) decidiram restabelecer o texto original e eliminar a inovação relativamente recente, cometeram alguns erros, de modo que certas alterações desse tipo não foram corrigidas. Assim, o texto massorético de Amós 2.7, preservando um alef adicional, diz "pisoteiam a cabeça dos pobres" ("hs'pym") em vez de "ferem a cabeça dos pobres" ("hspym").

4. Incorporação de notas marginais. Uma nota desse tipo é o versículo 4 do quinto capítulo de João, que explica a razão da permanência de tantos inválidos junto ao tanque de Betesda. Ainda em João, outro provável enxerto, embora não se trate propriamente de uma nota explicativa, é o longo episódio da mulher adúltera, entre 7.53 e 8.11, um dos casos mais curiosos da ecdótica neotestamentária.

Alterações intencionais

1. Harmonização de passagens paralelas. Em Marcos 9.29, Jesus responde da seguinte forma à indagação dos discípulos sobre a razão pela qual foram incapazes de expulsar o demônio que atormentava um menino: "Esta casta não pode sair senão por meio de oração e jejum". Em Mateus 17.20, porém, a resposta é outra (embora não contradiga a anterior), de modo que o versículo 21, que reproduz a resposta dada em Marcos, provavelmente é uma tentativa de harmonização.

2. Correção de citações. Mateus 15.8 cita do Antigo Testamento nos seguintes termos: "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim." A citação é de um trecho de Isaías 29.13, que diz o seguinte: "Este povo se aproxima de mim com a boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim". Alguns manuscritos de Mateus trazem uma citação literalmente mais correta do texto profético.

3. Eliminação de contradições ou erros aparentes. O primeiro capítulo de Marcos introduz as citações dos versículos 3 e 4 da seguinte forma: "Conforme está escrito na profecia de Isaías" (versículo 2). Entretanto, apenas o quarto versículo refere-se a um trecho de Isaías, ao passo que o anterior é citado de Malaquias. Por isso, alguns copistas mudaram o texto para "Conforme está escrito nos profetas".

4. Influência retroativa de adaptações para uso litúrgico. Um exemplo famoso é a última frase da mais famosa oração da cristandade: "Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém." Essa frase, ao que tudo indica, não constava no original.

5. Correção de erros gramaticais. Em Lucas 4.1 é dito que, depois de ser batizado, Jesus foi guiado pelo Espírito Santo "no deserto" ("en tê erêmô"). Embora a expressão usada por Lucas não seja gramaticalmente incorreta, alguns copistas cederam à tentação de substituí-la por "eis tên erêmon" ("ao deserto").

6. Substituição de palavras vulgares. Quando em Marcos 7.5, os fariseus se queixaram a Jesus pelo fato de seus discípulos comerem com as mãos "por lavar", a expressão registrada, "koinais", foi considerada demasiado vulgar por certos copistas, que a substituíram por um sinônimo mais decente, "aniptois".

7. Substituição de palavras incomuns. Paulo escreveu a Tito (em 1.5): "Por esta causa te deixei em Creta". O verbo utilizado, "apelipon", é bem raro na língua comum da época, o que explica a razão pela qual certos escribas o substituíram por um sinônimo mais conhecido, "katelipon".

8. Eliminação de hebraísmos. Um hebraísmo particularmente comum em textos dos evangelhos, como em Lucas 2.6-10, é o uso freqüente (e até excessivo, tanto que nem todos aparecem nas traduções ao português) da conjunção "e", "kai". Esse uso não é típico da língua grega, o que fornece evidência de que ao menos certas partes dos evangelhos são traduções literais de textos ou discursos em hebraico ou aramaico.

9. Transliteração de nomes próprios. A cidade de Cafarnaum, na Galiléia, é um bom exemplo. Em alguns manuscritos seu nome é transliterado "Kafarnaoum", e em outros "Kapernaoum".

10. Interpretação de passagens difíceis. Um caso cheio de remendos encontra-se em Colossenses 2.2, em que Paulo, referindo-se aos cristãos que não o conheciam pessoalmente, afirmava interceder "para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham também toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo". Insatisfeitos com esse final abrupto e obscuro, muitos copistas fizeram diversas modificações, como "o mistério de Deus e Cristo", "o mistério de Deus", "o mistério de Cristo", "o mistério de Deus, que é o Cristo", "o mistério de Deus Pai em Cristo Jesus" e outros.

11. Alterações destinadas a evitar dificuldades teológicas. Um exemplo clássico encontra-se em Mateus 24.36, em que Jesus diz: "Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos nos céus, nem o Filho, senão o Pai". Julgando, provavelmente, que a passagem negava a onisciência de Cristo e, por conseguinte, a sua divindade, alguns copistas omitiram as palavras "nem o Filho" nessa passagem.

Um comentário:

Anônimo disse...

Comentei sobre os Artigos"A origem da Bagunça","Pedaços de Bagunça", e "As Antigas Famílias", de ANDRÉ VENÂNCIO.para respostas:dirneisantos@ibest.com.br