23 de maio de 2008

As ainda mais antigas famílias

Nesta postagem pretendo fazer com o Antigo Testamento a mesma coisa que fiz nos textos As antigas famílias e Através dos séculos (o terceiro e o quarto da série, respectivamente) para o Novo Testamento. Embora a história do texto veterotestamentário seja muito complexa, tanto pelo volume quanto pela antigüidade e variedade de épocas e condições em que foram compostas suas respectivas partes, dedicarei a esse assunto um único post, pelo simples motivo de que sei bem menos sobre o mesmo. Falar pouco costuma ser a melhor maneira de não falar besteiras (tenho certeza, aliás, de que meu hábito de ficar de boca fechada é a principal razão pela qual muitos me consideram inteligente). Apesar dessa precaução, porém, acredito que esta postagem tem maiores chances de conter erros que as anteriores, e o leitor deve estar ciente desse fato. As razões são simples: as fontes que empreguei são inferiores, tanto em profundidade quanto em atualidade.

A história mais remota do texto das Escrituras hebraicas é quase inteiramente desconhecida pelo fato de que não existem manuscritos anteriores ao século III a.C., o que, inclusive, já foi pretexto para muitos debates sobre a própria data de composição dos textos originais. Quando começam a emergir das sombras do passado, porém, os textos já se mostram divididos, quanto à semelhança que possuem entre si, em basicamente três grupos. Antes de apresentá-los, contudo, deve ser dito que, até poucas décadas atrás, os mais importantes manuscritos disponíveis datavam dos séculos IX e X. Assim, o mais antigo dentre os mauscritos significativamente completos é o 4445 do Museu Britânico, que foi copiado por volta do ano 850 e contém a maior parte do Pentateuco. Há também o Manuscrito de Leningrado, escrito no início do século X, que contém porções significativas dos profetas. Um outro manuscrito de Leningrado, o B-19A, é a mais velha cópia completa do Antigo Testamento, realizada perto do ano 1010. Todos esses manuscritos pertencem a uma mesma família textual, que será designada aqui como família massorética. Além desses, existiam apenas traduções gregas e latinas que, embora remontassem até o século II, eram pouco valorizadas pelo fato mesmo de serem traduções.

Mas vários importantes manuscritos do Antigo Testamento foram encontrados nas famosas cavernas do Wadi Qumran, fonte de verdadeiros tesouros arqueológicos descoberta em 1947. No que diz respeito ao assunto deste post, o mais importante manuscrito é o Rolo do Mar Morto de Isaías, que contém o livro completo desse profeta, copiado na segunda metade do século II a.C.. Do mesmo período, há também um comentário ao profeta Habacuque que traz o texto dos seus dois primeiros capítulos. Do século seguinte temos o Rolo de Isaías da Universidade de Jerusalém, que contém a maior parte do texto a partir do capítulo 41. Há ainda um trecho de Levítico copiado no século II a.C. ou antes. Esses são, provavelmente, os achados mais importantes, e todos possuem, também, textos essencialmente massoréticos. Há, entretanto, outros manuscritos que são menos importantes, num certo sentido, por conterem textos menores ou se encontrarem em mau estado, mas que favorecem outras famílias ou apresentam textos mistos. Assim, os manuscritos do Mar Morto permitem vislumbrar a história do texto hebraico anterior ao predomínio absoluto do Texto Massorético, a cuja família pertencem quase todos os textos conhecidos até meados do século XX. Além disso, é claro, a enorme importância dos textos de Qumran reside também no fato de que eles fizeram recuar em cerca de um milênio a data dos manuscritos mais antigos até então conhecidos.

A família massorética parece ser, na vasta maioria dos casos, a tradição mais confiável. Esse fato é não apenas coerente com a evidência textual em si, que aponta para um texto mais antigo (geralmente anterior, por exemplo, ao uso das matres lectionis, consoantes que indicam vogais - vide o item C.3 do post Pedaços de bagunça), como também é coerente com o fato de que a versão que se impôs como oficial após a destruição de Jerusalém (embora possa ter existido desde até dois séculos antes), baseada numa minuciosa análise dos melhores manuscritos então disponíveis (inclusive, certamente, os pergaminhos oficiais do Templo e muitos outros rolos que não mais existem), tenha se decidido por essa família. Essa versão oficial, adotada até hoje, chama-se Texto Massorético, e deriva daí o nome da família à qual pertence.

Os grandes responsáveis pela escolha desse texto foram os soferim, uma ordem de escribas que surgiu no final do exílio babilônico (tendo sido, segundo se diz, fundada pelo próprio Esdras) e sobreviveu até cerca de 200 d.C., tendo se empenhado muito na padronização e transmissão fiel do texto sagrado. Desenvolveram métodos úteis nesse sentido, mas também foram eles próprios responsáveis pela introdução de erros motivados por suas posições teológicas, sendo que os mais notórios derivam de sua aversão à linguagem antropomórfica de certas passagens. O Midrash (significando algo parecido com "estudo textual"), que reúne exposições e interpretações de muitos mestres, foi compilado entre o século I a.C. e o fim do século III, e tem alguma relevância para a ecdótica pela abundância de citações, algumas das quais apresentam formas diferentes das contidas no Texto Massorético.

O próprio nome Texto Massorético, porém, deriva de um grupo posterior, os massoretas (nome derivado de massora, a tradição oral). Esses foram os eruditos que deram a forma final ao Antigo Testamento, entre o início do sexto século e meados do décimo. Eles criaram os sinais vocálicos e praticaram a crítica textual em certa medida, embora com métodos diferentes do usado pelos soferim. Mantiveram intacto o texto consonantal herdado destes, usando sinais vocálicos e notas marginais para sugerir erros no texto disponível, e desenvolveram ainda mais os métodos de prevenção contra erros de cópia. O Texto Massorético é o padrão usado até hoje nas edições feitas na língua original, e foi extraído principalmente dos já mencionados manuscritos de Leningrado. Não, é claro, que esse texto seja aceito sem reservas; mas a tendência dos estudiosos do assunto é conceder-lhe sempre o benefício da dúvida.

Além de fornecer o texto esmagadoramente predominante entre os judeus pelo menos desde o século II, a família massorética inclui também as traduções aramaicas, que remontam, na verdade, a tempos pré-cristãos. Embora as classes cultas estudassem e falassem o hebraico até o segundo século da era cristã, desde muito antes uma parcela significativa dos judeus retornados do exílio perdera a familiaridade com o idioma, tendo aderido ao aramaico, que era a língua franca do Império Persa. Isso exigia a presença de intérpretes nas sinagogas, que traduziam e explicavam as passagens sagradas ao povo. Quando essas traduções foram registradas por escrito receberam o nome de targuns, que significa "interpretações". Porém, essa passagem da tradição oral ao texto escrito só começou a acontecer no século II. Mas os targuns, a despeito de sua grande importância histórica, têm pouco valor para a crítica textual, tanto por abusarem da paráfrase quanto pelo próprio fato de serem derivados, em última análise, da família massorética, cuja versão hebraica original encontra-se abundantemente documentada, o que diminui a importância de suas traduções. Merece destaque também a Vulgata de São Jerônimo, completada em 404 e produzida a partir do texto hebraico então em uso na Palestina, onde o autor passou muitos anos estudando a língua com os rabinos de Belém. Essa tradução teve um caráter oficial, pois Jerônimo foi incumbido da tarefa de realizá-la pelo papa Damaso, e seu texto se tornou o padrão da cristandade ocidental ao longo de toda a Idade Média.

Ainda assim, na ausência da grande quantidade de manuscritos antigos de que dispõe a ecdótica neotestamentária, as antigas traduções ganham um papel mais importante para a crítica textual do Antigo Testamento. A mais antiga tradução grega conhecida (embora não necessariamente a primeira a ser feita) é a Septuaginta, versão composta entre 250 e 150 a.C., que foi, inclusive, muito usada nas citações pelos escritores neotestamentários e pela Igreja primitiva em geral. Orígenes compôs uma versão própria (incluída na sua Héxapla) a partir das diversas variantes disponíveis do texto da Septuaginta, completando-a com trechos de outras versões quando necessário. Essa revisão só chegou até nós pelo Códice Sarraviano, do quarto ou quinto século, que contém apenas trechos de Gênesis a Juízes, mas perpetuou-se através da tradução siríaca do Antigo Testamento feita por Paulo de Tela no ano 616. Existem outras revisões, mas elas só aparecem em manuscritos posteriores ou refletem-se indiretamente em traduções para outros idiomas. Existiram até novas traduções gregas, realizadas principalmente no século II (as principais são de Áquila e Símaco), mas delas não chegaram a nós mais que uns poucos fragmentos e citações.

Dentre os manuscritos da Septuaginta merecem destaque: os papiros Chester Beatty, que incluem porções do Pentateuco e de Isaías dos séculos II a IV; porções significativas do Gênesis e dos profetas menores em vários papiros datados do terceiro século; porções de Deuteronômio num papiro do século II (o Rylands 458); o Códice Vaticano, que contém o Antigo Testamento completo copiado no quarto século, mas cujo texto é certamente anterior a Orígenes, e no qual apenas o texto de Daniel não pertence à família em questão; o Códice Alexandrino, de meados do quinto século, que também contém o texto completo, e possui alguma afinidade com a Héxapla; o Códice Sinaítico, que possui o Antigo Testamento quase completo, e cujo texto é intermediário entre os dois anteriores. Em Qumran foram encontrados fragmentos do século I a.C., também em grego, que concordam com o texto da Septuaginta, ou pelo menos parecem ser traduções do mesmo texto original. Há ainda em Qumran uns poucos fragmentos em hebraico que concordam com o texto da Septuaginta contra o Texto Massorético, demonstrando que aquele estava também em uso nos tempos de Cristo e nos séculos anteriores. Mas a natureza altamente fragmentária desse material torna-o pouco importante, na prática, para a crítica textual.

O Pentateuco da Septuaginta é sua porção mais exatamente traduzida, certamente devido à sua enorme importância na liturgia judaica. Os livros históricos, os profetas e os livros poéticos receberam, nessa ordem, traduções progressivamente menos fiéis; isso deve ser levado em conta na avaliação do valor relativo das variantes dessa família. Mesmo no caso do Pentateuco, porém, essas variantes tendem a ser menos dignas de crédito que a versão massorética, pelo fato de que a família da Septuaginta apresenta uma heterogeneidade consideravelmente maior, o que se explica pelo fato de que os copistas do texto grego, geralmente mais afastados da tradição dos escribas judeus, eram menos rigorosos quanto às regras de exatidão seguidas por esses últimos.

Além da Vulgata, houve apenas uma grande tradução latina do Antigo Testamento, a qual, na verdade, lhe é anterior: a Itala, como é conhecida, composta durante o século II, que é, na realidade, uma tradução feita a partir da Septuaginta. Da mesma forma, o texto grego serviu de base para outras traduções, como as duas versões coptas conhecidas, assim como a maioria das versões árabes e, provavelmente, a versão etiópica. A primeira das duas traduções siríacas, a Pesita, foi realizada no segundo ou no terceiro século diretamente a partir do hebraico, mas o texto original claramente pertencia também à família da Septuaginta (são exceções os livros das Crônicas, que não constavam na versão original, e que foram incluídos posteriormente em traduções a partir do Targum; um texto de origem massorética, portanto). A segunda versão siríaca foi a já mencionada tradução de Paulo de Tela, realizada a partir da Héxapla.

A terceira e menos importante família textual é a conhecida como "samaritana", por incluir a versão do Pentateuco usada pelos samaritanos desde séculos antes da era cristã. A família samaritana quase sempre foi tratada com desprezo pelos especialistas, especialmente por suas óbvias tendências sectárias, que resultaram em gritantes adulterações do texto original. Mais recentemente, no entanto, algumas de suas variantes, cuja origem não pode ser atribuída a essa motivação apologética, passaram a receber juízos mais favoráveis da parte de vários eruditos. Ainda assim, pelo fato de não serem conhecidos textos fora do Pentateuco, e mesmo desses só existirem hoje uns poucos e fragmentários manuscritos, o texto samaritano é pouco importante. Um dos poucos manuscritos relevantes dessa classe foi descoberto no século XVII em Damasco, e seu texto veio a integrar a Bíblia Poliglota de Paris, de 1645. Trata-se de um texto samaritano que em muitas instâncias apóia a Septuaginta contra o Texto Massorético. Em Qumran foram encontrados também alguns fragmentos de manuscritos dessa família.

No que diz respeito à crítica textual, o Antigo Testamento encontra-se em clara desvantagem em relação ao Novo Testamento: há mais questões, e mais importantes, cujas respostas ainda são amplamente debatidas. Ainda assim, o texto veterotestamentário leva vantagem sobre muitas obras da Antigüidade. Isso só é possível graças a um batalhão de heróis do passado que tomaram parte na árdua tarefa de transmitir esses textos de geração em geração, sobretudo os já mencionados soferim e massoretas. Gleason Archer descreve sem exageros o mérito desses homens ao notar que eles "dedicaram a mais diligente atenção à conservação exata das Escrituras Hebraicas, a um ponto nunca igualado na dedicação dada a qualquer literatura, antiga ou moderna, secular ou religiosa, em toda a história da civilização humana". Graças a isso, chegou a nós um texto essencialmente idêntico, no mínimo, ao que era usado por volta do primeiro século.