4 de julho de 2008

A esposa e o marido

Nota introdutória: este post é continuação do post O primeiro e o último. Os dois formam, na verdade, um único texto. Por isso, é recomendável ler aquele antes de dar início a este.

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O terceiro lugar deste temível quarteto é o único a ser ocupado por uma mulher: minha possível futura esposa. Aqui caberia uma série de minuciosos esclarecimentos sobre o modo como encaro essa questão. Pois eu costumo ser muito cuidadoso ao falar de assuntos importantes, e poucas coisas me parecem mais sagradas que o casamento. Mas farei uma tentativa de me refrear e dizer apenas o essencial para o propósito deste texto. E provavelmente nada é mais importante do que dizer que, diferentemente do que parece ocorrer com muitos solteiros, eu estou muito longe de ter certeza de que um dia vou me casar, ou de que não vou. O matrimônio é para mim uma dentre duas opções, e não posso afirmar que seja a mais atraente. A outra opção - o celibato - oferece vantagens no mínimo igualmente interessantes. Creio que alguns tomarão essas declarações como evidência de que estou acima dos prazeres da carne, e a maioria suporá tratar-se apenas de um exemplo daquela afetação de auto-suficiência adolescente que todos conhecemos tão bem. Mas ambos os grupos estarão enganados a meu respeito: não estou acima de nada, e tampouco sou auto-suficiente, ou penso sê-lo, ou penso que devo fingir que sou. Apenas levo muito a sério aquela história de "antes só que mal acompanhado", e reservo-me o direito inalienável de ser exigente; afinal, só uma mulher muito especial seria capaz de suportar a convivência com alguém como eu. Estou dizendo tudo isso apenas para deixar claro que, embora eu não saiba se vou me casar ou não, e embora não dedique nem uma fração do meu tempo à tentativa de concretizar essa possibilidade, nem por isso deixo de considerá-la aquilo que é: uma possibilidade que, aliás, não merece nenhum desprezo, tal é a seriedade e importância do assunto.

Feitos esses esclarecimentos, devo dizer algo sobre como espero que seja a minha possível futura esposa, a mulher pela qual eu deverei abrir mão de todas as outras. Faz vários anos que, sempre que penso nisso, me vem à mente em primeiro lugar uma mesma idéia. E ela me vem com ainda maior nitidez desde que li a peça O velho estadista (The elder statesman), que considero a segunda mais bela de T. S. Eliot (pois Murder in the cathedral permanece imbatível) e que contém uma admirável dedicatória à esposa do grande poeta. Talvez eu possa dizer simplesmente que estou me referindo ao desejo de conhecer e de ser conhecido. Mas haverá, de fato, alguma simplicidade nisso? Não ignoro que é praticamente impossível permanecer desconhecido por alguém com quem convivemos o tempo todo e em tão alto grau de intimidade. Mesmo assim, parece-me que um instinto de auto-preservação, um empenho em evitar conflitos desnecessários ou mesmo o mero desejo de sermos admirados por alguém que admiramos pode nos levar a ocultar algo da parte mais profunda do nosso ser, aquela da qual eu mesmo só me atrevo a falar durante as minhas orações - e mesmo assim nem sempre. Eliot expressou isso muito bem através destas palavras do seu idoso protagonista, quando falava à filha e ao genro sobre sua relação com sua falecida esposa e com certos dilemas que sempre o haviam afligido (a tradução é de Ivo Barroso, e o texto original está no final do post):

E se não há nada que dela você oculte
- ainda que possa considerar importante
ocultá-lo do resto do mundo - sua alma está salva.
Se na vida de um homem há uma pessoa, uma só que seja,
a quem ele esteja disposto a confessar tudo -
e isto inclui, veja bem, não apenas atos criminosos,
não apenas torpezas, mesquinharias e covardias,
mas igualmente situações que são apenas ridículas,
nas quais agiu como tolo (e quem nunca o foi?) -
então ele ama essa pessoa e seu amor irá salvá-lo.
Quanto a mim, jamais amei alguém de fato. [...]
Passei a vida tentando esquecer-me a mim mesmo,
tentando identificar-me com o papel
que escolhi representar. E quanto mais fingimos,
tanto mais difícil se torna livrar-nos do fingimento,
sair do palco, vestir nossas próprias roupas
e falar como nós mesmos. [...]
Sua mãe nada sabia a esse respeito. E sei
que nunca conheci sua mãe, nem ela me conheceu.
Imagino que ela jamais compreenderia
ou então teria ciúmes dos fantasmas que me perseguem.
Ainda sou dessa opinião. Como abrir seu coração
quando se está certo da reação contrária?
Como confessar-se sem esperança de absolvição?
Ela não teve culpa. Nunca nos entendemos propriamente.
Por isso, vivemos com um profundo silêncio entre nós dois,
e ela morreu em silêncio. Nada tinha a me dizer.

Creio que o que mais temo no casamento é a possibilidade de jamais vencer essa barreira. Talvez as pequenas máscaras do dia a dia sejam muito difíceis de tirar; talvez algumas pequenas e insignificantes mentiras ou omissões se reforcem mutuamente e se consolidem com o passar do tempo, bloqueando para sempre o acesso dela a certas obscuras regiões da minha alma. Talvez isso afinal resulte em alguma medida de incompreensão, frieza e solidão, mesmo que o amor verdadeiro jamais deixe de existir. É por isso que, mesmo sem saber sequer se terei ou não uma esposa, adquiri muito cedo a convicção de que ela seria alguém de quem eu jamais desejaria esconder nada. Hoje percebo que isso não é assim tão simples, mas permanece como um ideal a ser atingido e constantemente buscado. E assim coloca-se inevitavelmente, com relação aos meus maus atos, a seguinte questão: como será se um dia, movido pela necessidade de ser sincero, eu tiver de confessar esses atos à minha esposa? Deve ser terrível contemplar a decepção nos olhos da mulher amada. O problema é semelhante ao que ocorre no caso do primeiro acusador, com o agravante de que desta vez não se trata de um artifício da minha mente, mas sim de uma possibilidade real de ocorrência futura, e com uma pessoa não menos real. Os olhos dela, olhos cuja cor eu ignoro, me seguem incessantemente.

Nenhum olhar se compara, entretanto, ao do quarto acusador, a começar pelo fato de que este, ao contrário dos três primeiros, não é uma metáfora, nem uma figura do passado, nem uma possibilidade não concretizada, mas uma pessoa real, ainda mais real que eu mesmo. Possui planos mais sublimes e grandiosos para o meu futuro do que eu fui capaz de imaginar durante a infância, e é ele próprio mais puro do que jamais fui em qualquer momento da mesma. Sua sabedoria é infinitamente maior que o máximo que poderei obter dela até minha velhice. Seu amor por mim é incomparavelmente superior ao de qualquer mulher, assim como a intensidade do seu sofrimento em decorrência das minhas faltas, passadas ou futuras. Por tudo isso, e por várias outras razões, ele requer, com muita justiça, maior fidelidade que todos os outros. Nele se reúnem, enfim, todos os elementos presentes nos três primeiros: a pureza, a sabedoria, a morte, o tempo, a fidelidade, o amor. Quão doloroso, portanto, não deverá ser o dia da minha morte, ou o dia em que o Senhor ressurreto surgir entre as nuvens para buscar sua noiva!

Sei que o que eu disse pode parecer chocante e dar margem facilmente a más interpretações. Nós cristãos estamos acostumados, e não sem razão, a pensar nesse dia com os corações cheios de alegria e esperança. Pois a Bíblia nos fala de Cristo como perdoador e consolador, e não como acusador e vingador, daqueles que nele depositaram sua fé. E talvez, de fato, no último dia seja totalmente ausente todo sofrimento em decorrência de pecados já cometidos, embora eu ache isso pouco provável. Mas haverá qualquer contradição real entre a severidade do olhar divino e a abundância da misericórdia divina? Ao contrário, parece-me que a profundidade insondável desse amor deve apenas tornar mais pungente a dor do nosso arrependimento. Quando chegamos à presença do Rei cobertos pelas nossas porcarias, causa-nos alívio a promessa de que seremos limpos pelo poder dele; mas, enquanto isso não acontece, o amor que encontramos em seu olhar apenas torna mais esmagador o peso da nossa sujeira. A dor na consciência decorrente da desobediência a um código moral abstrato, imposto por um princípio metafísico ou uma divindade distante, não pode se comparar à visão das cicatrizes nas mãos e nos pés do próprio Criador, que somam sobre todas as nossas faltas o peso da suprema ingratidão. Pois nossos pecados, especialmente os voluntários, revelam a nossa indiferença, mesmo que momentânea, em relação à eterna dor, sofrida com o fim de nos livrar deles. O desprezo pela cruz é pior que o desprezo pelos sofrimentos humanos. Ela nos livra da ira, mas apenas aumenta nossa responsabilidade. Pois o sangue de Cristo fala coisas superiores às que fala o sangue de Abel.

Os quatro personagens estão agora apresentados. Só o que me falta é fazer deles instrumentos eficazes no combate ao meu mal interior, ou seja, lembrar-me deles não apenas ao refletir sobre os erros que cometi, mas também sobre os que ainda posso cometer; e assim, quem sabe, evitar ao menos alguns deles. Eis a meta. Que Deus me ajude.

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And if there is nothing you conceal from her
however important you may consider it
to conceal from the rest of the world - your soul is safe.
If a man has one person, just one in his life,
to whom he is willing to confess everything -
and that includes, mind you, not only things criminal,
not only turpitude, meanness and cowardice,
but also situations which are simply ridiculous,
when he has played the fool (and who has not?) -
then he loves that person, and his love will save him.
I'm afraid that I've never loved anyone, really. [...]
I've spent my life in trying to forget myself,
in trying to identify myself with the part
I had chosen to play. And the longer we pretend
the harder it becomes to drop the pretence,
walk off the stage, change into our own clothes
and speak as ourselves. [...]
Your mother knew nothing about them. And I know
that I never knew your mother, as she never knew me.
I thought that she would never undestand
or that she would be jealous of the ghosts who haunted me.
And I'm still of that opinion. How open one's heart
when one is sure of the wrong response?
How make a confession with no hope of absolution?
It was not her fault. We never understood each other.
And so we lived, with a deep silence between us,
and she died silently. She had nothing to say to me.

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