21 de agosto de 2008

A amizade das leis

Apresento nesta postagem o resumo de um outro diálogo platônico, o Críton. Essa obra está intimamente relacionada à Apologia de Sócrates, que apresentei aqui. Tendo sido condenado, Sócrates aguarda na prisão o cumprimento da sentença de morte. Críton - que é um dos seus melhores amigos, e é também um homem já idoso - vai visitá-lo antes do amanhecer. Contudo, encontra seu amigo num sono tão doce que resolve não interrompê-lo. Senta-se e aguarda que Sócrates desperte por si mesmo, e então começam a conversar. Fora decidido que o filósofo morreria no dia seguinte ao da chegada de um certo navio de Delos. Críton vem informar que tudo indica que o navio chegará naquele mesmo dia. Sócrates, porém, crê que o navio só chegará no dia seguinte, de acordo com um sonho que teve e que considera uma mensagem dos deuses.

De qualquer modo, Críton expõe a razão de sua vinda: pretende convencer seu amigo a fugir da pena, e apresenta seus motivos. 1. Críton teme a má reputação que lhe trará a morte de Sócrates, pois ninguém acreditará que este absteve-se de fugir por decisão própria; todos pensarão que seus amigos não fizeram caso de sua vida, recusando-se a gastar algum dinheiro (subornando os guardas, contratando bandidos para protegê-lo e providenciando sua partida para outra cidade) para vê-lo livre e, desta forma, prezando mais o dinheiro que o amigo. 2. Se Sócrates evita a fuga por temer que seus amigos venham a ser punidos por isso, deve deixar isso de lado, pois seus amigos estão dispostos a correr riscos para vê-lo livre da morte. 3. Críton garante que não é grande a quantia necessária para consumar o plano; seu próprio patrimônio é suficiente, mas há muitas outras pessoas dispostas a colaborar. 4. Também não deve se preocupar com seu sustento no exílio, pois Críton tem amigos ricos e influentes na Tessália, que proverão tudo de que o filósofo necessitar. 5. A recusa em fugir é um erro, pois contribui para a concretização da injustiça desejada por seus inimigos. 6. Sócrates erra também ao não pensar no futuro de seus filhos pequenos, os quais ele tem o dever de educar e preparar para a vida. 7. Ainda pior que a acusação de avareza, o povo atribuirá aos amigos e ao próprio Sócrates a covardia, por não terem feito nada para impedir o desfecho "mais ridículo da história", desde o instante em que o filósofo foi intimado a comparecer ao tribunal.

Após ouvir tudo isso, a primeira reação de Sócrates é exclamar: "Querido Críton, quão precioso o teu ardor, se alguma retidão o acompanhasse!" Propõe-se a examinar a proposta do amigo, a fim de ver se deve proceder de acordo com ela, pois ele só pode agir de acordo com o que sua razão indica ser o melhor caminho. A evolução das circunstâncias não deve, por si mesma, prevalecer sobre as razões atemporais que sempre motivaram suas decisões. Assim, se Sócrates sempre creu que algumas opiniões são dignas de consideração e outras não o são, não pode passar a fingir que isso era uma brincadeira apenas pelo fato de que a persistência nessa idéia o levará à morte. O filósofo propõe começar desse ponto a análise do problema, e vai obtendo, passo por passo, o assentimento de seu amigo.

O ginasta, diz Sócrates, não deve dar importância indiscriminadamente ao parecer de todos os homens quanto à sua dieta e ao seu treinamento, e sim apenas aos dos médicos e instrutores de ginástica. Não procedendo assim, arruinará seu próprio corpo, e é impossível viver com um corpo arruinado. É evidente, portanto, que as opiniões não são todas valiosas: existem as boas, das pessoas judiciosas, e as ruins, das insensatas. Quando se trata de proceder de acordo com o que é justo, belo e bom, deve-se igualmente procurar a aprovação dos que porventura entendam dessas coisas, ainda que sejam poucos, e não a da multidão. A injustiça, no entanto, prejudica uma parte do nosso ser que é muito mais valiosa que o corpo, e a justiça a beneficia. A autoridade nesse assunto é a Verdade mesma, e deve-se proceder de acordo com ela, e não com as opiniões do vulgo.

Pode-se, sem dúvida, objetar que a opinião do povo não deve ser desprezada tão temerariamente já que, como demonstra a própria situação em que o filósofo se encontra, o povo tem o poder de causar a morte do homem que despreza a opinião pública. Sócrates considera, porém, que a mera perpetuação da vida não tem tanto valor em si mesma, se não for possível perpetuar a qualidade da mesma. E viver bem é apenas viver de maneira honrada e justa. Assim, toda a questão se resume a saber se é justo ou não que Sócrates saia da prisão sem o consentimento dos atenienses. É necessário, antes de seguir os conselhos de Críton, certificar-se de que as razões elencadas por ele são criteriosamente justificáveis, e não elaboradas segundo os hábitos inconstantes do povo. "Oxalá, Críton, fosse o povo capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso."

A injustiça, em bons ou em maus momentos, é sempre um mal e uma vergonha para quem a comete, e portanto não deve jamair ser cometida, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. Causar mal a alguém é, portanto, sempre uma injustiça. Poucos compreendem e aceitam esse princípio, mas Sócrates e Críton concordam quanto à sua validade. O filósofo afirma então que o não cumprimento de um acordo é uma injustiça. Fugir da sentença seria reduzir a nada as leis da cidade, pelas quais ele foi condenado, subvertendo, na verdade, toda a cidade, em pequena escala, isto é, na medida de suas possibilidades. Sócrates poderia, naturalmente, justificar-se alegando que a condenação foi injusta. Mas o fato é que ele comprometeu-se de antemão a submeter-se à decisão do tribunal. Foi graças à cidade e às suas leis que Sócrates pôde nascer, crescer e viver, pois a cidade tem leis que regulam os casamentos e a educação dos filhos, leis contra as quais ele nunca teve de que se queixar. Por conseguinte, seu dever de obediência à cidade não é menor que o de obediência do filho ao pai ou do servo ao senhor. É, na verdade, maior, pois é dever de todo cidadão sofrer pelo bem da pátria sempre que for necessário, se não for possível dissuadi-la pelos meios legitimamente proporcionados por ela mesma. A retaliação contra a cidade não se justifica, como não se justifica a retaliação contra os pais e senhores.

A todos os benefícios que a cidade oferece, a Sócrates e a todos os cidadãos, soma-se a concessão do direito ao desacordo quanto ao seu modo de funcionamento. Não há lei alguma que vete ao homem insatisfeito com o povo da cidade e com suas leis a opção de mudar-se para um lugar que o agrade mais. Se, a despeito dessa permissão, Sócrates permaneceu toda a sua vida em Atenas, só se ausentando dela em duas breves ocasiões, e se contraiu casamento e constituiu família ali mesmo, ele comprometeu-se tacitamente a obedecer às suas normas, e não tem o direito de evadir-se repentinamente desse compromisso com base apenas em sua conveniência pessoal, pois as leis determinam que o réu que não consegue convencer a assembléia de sua inocência deve receber a punição. Assim, com atos, e não com palavras, o filósofo selou seu compromisso. Se Sócrates desejava o exílio, deveria tê-lo alcançado pelas vias legais, quando lhe foi dada a oportunidade de propor uma pena para si mesmo. Poderia, então, ter conseguido, com o consentimento do povo, o que agora iria tentar sem ele. Naquela ocasião, enretanto, ele afirmou preferir a morte ao exílio, e agora não tem mais o direito de mudar de opinião.

Além disso, argumenta Sócrates, que benefícios a fuga realmente traria para si ou para seus queridos? Os amigos sem dúvida correrão perigo de sofrer punição por causa dele. Ele próprio chegaria a outra cidade como inimigo das instituições, e seria recebido com desconfiança por todos os que se importam com a lei. Ao fugir, Sócrates favoreceria a reputação dos que os condenaram, pois então se tornaria indiscutivelmente criminoso, e todo criminoso pode passar por corruptor dos jovens. Diante de tal situação, ele não poderia atrever-se a prosseguir em sua missão de incentivar os homens ao bem e à virtude. E, mesmo que fosse para uma cidade em que reina a desordem e as leis não são tidas em alta conta, não poderia manter sua honradez. O povo da cidade dificilmente teria em alta conta um homem que, estando já naturalmente tão próximo da morte e buscando adiá-la por mais um curto intervalo de tempo, não hesitou em submeter-se aos ridículos disfarces dos fugitivos. Ele viveria de favores e envergonhado. Se levasse os filhos para a Tessália, ou para outro lugar qualquer, eles cresceriam como estrangeiros, o que absolutamente não lhes seria um benefício. Será melhor para eles ficarem em Atenas aos cuidados dos amigos de seu pai; e ter um pai fugitivo e exilado não lhes seria mais vantajoso que ter um pai morto por viver segundo a justiça.

Enfim, não é aceitável transgredir as leis em favor de nenhum dos pretextos apresentados por Críton. Submetendo-se à sentença, Sócrates chegará ao Hades tendo sido vítima de injustiça, não por parte das leis, mas por parte dos homens; caso contrário, será ele próprio um transgressor da lei, e as leis do Hades, solidárias às suas irmãs atenienses, não lhe serão favoráveis. E, visto que Críton nada mais tem a dizer, o caminho a tomar está decidido, e o filósofo conclui: "Então desiste, Críton; procedamos daquela forma, porque tal é o caminho por onde a divindade nos guia."

1 de agosto de 2008

Uma grande morte

Hoje vou iniciar um projeto que está nos meus planos há muito tempo, o qual é fruto da confluência de duas constatações: 1. não poderei me considerar gente enquanto não conhecer plena e diretamente as obras de Platão e Aristóteles; e 2. eu aprendo melhor sobre um assunto escrevendo do que simplesmente lendo a respeito. A primeira constatação, feita há mais de dois anos, me fez decidir que, sem perda de tempo, eu deveria ler todos os diálogos platônicos. Apesar disso, perdi bastante tempo desde então, e só agora estou começando realmente a fazer isso: reler os que já li e ler os que ainda não li. A segunda me fez decidir que adotaria o procedimento de escrever resumos das obras na medida em que as fosse lendo, o que me obrigaria a lê-las com calma e atenção, pensando e articulando o melhor possível seus elementos. Esse procedimento traria ainda a vantagem adicional de facilitar a memorização, além de colocar à disposição um esquema ao qual sempre poderei recorrer mais tarde. E, já que vou fazer isso, não vejo razão para não publicar essas anotações. Elas poderão ser úteis - se não como instrução, ao menos como incentivo à instrução - para os leitores não familiarizados com as obras, e poderão ser úteis para mim, na medida em que leitores com mais amplos conhecimentos sobre o tema decidirem compartilhá-los comigo.

Sem mais delongas, portanto, passo a expor algumas anotações sobre um dos mais belos textos que já li, a Apologia de Sócrates, na qual Platão reproduz o discurso de seu mestre por ocasião de seu julgamento pela assembléia de Atenas, o qual culminou, como disse Idel Becker, em "uma das grandes mortes da história".

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O discurso de Sócrates divide-se em três partes, relacionadas às etapas do julgamento. Na primeira, a mais longa, ele faz sua defesa, logo após a acusação feita por Meleto, seu denunciador. O discurso de Sócrates contrasta em vários aspectos com o dele, e também com os procedimentos usualmente adotados pelos réus do tribunal de Atenas. Ele não se considera um orador hábil, recusa-se a utilizar a linguagem dos tribunais e apresenta-se com a simplicidade que caracterizou todos os seus debates públicos. Também não faz drama, não derrama lágrimas, não traz seus filhos pequenos para implorarem por sua vida aos juízes. Todos esses procedimentos, além de indignos de um ancião (ele já tinha mais de setenta anos), são injustos em si mesmos, pois a função do juiz requer que ele não se deixe levar por apelos emocionais e retóricos, mas concentre-se em avaliar à luz da lei as evidências e os argumentos apresentados. Por conseguinte, é errado tentar persuadir os juízes por tais meios. Em sua defesa, o filósofo utiliza como suas únicas armas a justiça e a veracidade da causa que defende.

Antes de reportar-se diretamente ao discurso de Meleto, no entanto, Sócrates vê-se obrigado a defender-se de um outro acusador, pior que ele: a multidão, que é mais temível justamente por ser anônima ("exceto, talvez, algum comediógrafo" - clara referência a Aristófanes, que difamou Sócrates em sua peça As nuvens) e porque o caluniou durante anos a fio, deixando-lhe, no entanto, pouco tempo para defender-se naquele tribunal. Ela o acusou sempre de desprezar os deuses, de especular indevidamente sobre os mistérios do céu e da terra, de ser um sofista (no pior sentido da palavra) e de corromper a juventude. E o fez aproveitando-se da pouca idade de seus ouvintes, os quais, escutando tais calúnias desde a infância, cresceram habituados a tomá-las como verdadeiras, e agora são adultos e compõem aquela assembléia. A acusação de Meleto é apenas um resultado acidental desse problema de proporções muito maiores.

Em sua defesa, Sócrates apela ao testemunho da própria assembléia: que cada um se esforce para lembrar do que o ouviu ensinar, e cada um interrogue seus vizinhos quanto ao que estes ouviram. Isso bastaria para mostrar que as acusações não procedem, que o filósofo não defendeu a doutrina de Anaxágoras, nem as dos sofistas, nem sequer demonstrou interesse por tais idéias ou pretensão de tê-las compreendido. Por isso mesmo jamais procurou reunir discípulos, nem exigiu dinheiro dos jovens que o seguiram espontaneamente, e tampouco prometeu-lhes qualquer coisa ou ensinou a algum deles algo diferente do que disse a todos os demais. Se tivesse dito algo que pudesse corromper os jovens, seria de se esperar que ao menos alguns, tendo alcançado a maturidade, tomassem consciência do fato e se dispusessem a acusá-lo, ou que seus parentes reprovassem a conduta deles e responsabilizassem o filósofo por isso. No entanto, muitos deles estavam ali presentes e nada tinham de que se queixar.

Mas como se explica, então, o surgimento de tais mentiras sobre ele? Elas se devem à natureza da sua missão, que começou de maneira bastante inusitada. Um falecido amigo seu chamado Querofonte, conhecido e querido por todos os presentes na assembléia, havia ido certa vez a Delfos consultar o oráculo de Apolo, e nessa ocasião o deus afirmara não haver homem mais sábio que Sócrates. Tal declaração muito surpreendeu o próprio Sócrates, que não se considerava sábio de modo algum. Não podendo crer, contudo, que o deus mentira, pôs-se a refletir sobre o sentido daquelas palavras. Decidiu então refutar o oráculo, indo ter com eminentes políticos tidos por muitos - e por si mesmos - como sábios. Logo descobriu, porém, que esses homens não eram sábios de fato e, ao tentar fazer-lhes ver isso, conseguiu apenas a inimizade deles e de seus admiradores. Procurou em seguida os poetas, mas descobriu que eles não compreendiam sequer o significado de seus próprios versos, e também granjeou a inimizade deles, pois também estes se consideravam sábios. Foi então, aos artífices e achou-os sábios em sua arte. Porém, erravam em supor que isso os tornava sábios em assuntos mais elevados, e nisso eram iguais aos outros.

Ao longo desse processo, apesar do medo que sentiu ao despertar tanta hostilidade, o filósofo convenceu-se de que devia prosseguir realizando o propósito do deus, cumprindo a missão que este lhe comissionara, pois era necessário que ele compreendesse o sentido do que lhe fora dito. Percebeu, enfim, que sua superioridade em relação a todos aqueles pretensos sábios consistia no fato de que ele, embora também não fosse sábio, sabia que não o era, enquanto os outros falsamente julgavam sê-lo. O oráculo de Apolo era na verdade uma reprovação a toda a sabedoria humana, pois colocava todos os homens abaixo de um que nenhuma sabedoria tinha. Esses eventos trouxeram, no entanto, conseqüências inesperadas: muitas pessoas, vendo Sócrates demonstrar a tolice alheia, concluíram que ele próprio devia ser um sábio. Jovens ricos e ociosos passaram a segui-lo e a imitá-lo, interrogando e desafiando muitos pretensos sábios e obtendo resultados semelhantes aos seus, advindo daí sua fama de corruptor da juventude. E, a fim de difamá-lo, seus inimigos atribuíram a ele ensinamentos de outros.

Passa então a analisar as acusações de Meleto, que são absurdas e contraditórias. A despeito de sua declarada intenção de proteger os jovens, ele demonstra não ter jamais dedicado algum tempo pensando num meio de fazer bem a eles. Buscando bajular os presentes, Meleto aponta a lei e, por consegunte os juízes, senadores e cidadãos em geral, que a fazem cumprir, como aqueles que tornam os jovens melhores. Mas a conclusão é absurda, pois a educação dos jovens, como qualquer outra tarefa complexa, é arte dominada por poucos, e a maioria dos que se põem a opinar sobre o assunto só causa problemas. Todos sabem disso, como se nota no fato de que os cidadãos ricos pagam grandes somas a certos mestres para que eduquem seus filhos, o que seria desnecessário se qualquer um pudesse se incumbir dessa tarefa. É absurda também a acusação de que Sócrates corrompe propositalmente os jovens que o acompanham. Todo homem deseja viver entre pessoas virtuosas, pois estas fazem o bem aos que estão ao seu redor, e ninguém pode ter interesse em tornar piores as pessoas com quem convive. Portanto, ou Sócrates não corrompe seus discípulos, ou o faz sem intenção. Em nenhum dos casos há crime, e em ambos Meleto está enganado. Enfim, é refutada a acusação de ateísmo, que, além de não ter sido corroborada por testemunhas, contradiz outra acusação feita pelo próprio Meleto: a de que o filósofo aprecia os demônios. Levado pela ânsia de difamar, Meleto fez acusações imprudentes que se excluem mutuamente, já que, sendo os demônios filhos bastardos dos deuses, crer naqueles e não nestes é como crer em mulas sem admitir a existência de cavalos e jumentos.

Sócrates analisa sua situação. Se condenado, não será o primeiro justo a ser vítima do ódio do povo, e tampouco o último. Não se envergonha dessa condição, pois o critério orientador das ações humanas não deve estar no risco que proporcionam, e sim na sua justiça ou injustiça. Exemplificam essa virtude Aquiles e todos os heróis que pereceram em Tróia, os quais deram mais valor ao dever que às suas próprias vidas. São exemplares também os atos do próprio Sócrates quando, na juventude, serviu o exército da cidade e quando, como político, sofreu ameaças de prisão e morte por defender o que considerava justo. Retirou-se da vida política porque quem combate pela justiça não deve se meter nos assuntos públicos, e assim se voltou para a realização dessa tarefa no âmbito de suas relações pessoais. Se não tivesse agido assim certamente já estaria morto, pois não há outro destino para os que realmente lutam pela justiça por meios políticos.

Assim, Sócrates jamais tentou transformar sua missão pedagógica em plano de poder. Disso foi proibido pela voz de um gênio que sempre o acompanhou, impedindo-o de praticar ações que acarretassem seu próprio mal. Essa voz sem dúvida tinha origem divina, tanto quanto a sentença de Delfos, e impeliu o filósofo em sua missão. Por causa desta, e não por amor próprio, ele se defende diante do tribunal, temendo que os atenienses recusem a dádiva divina que opera através dele e que os deuses não lhe enviem um sucessor. Prova adicional da origem divina da mesma encontra-se no fato de que o filósofo nada tinha a ganhar com ela, a tal ponto que, não podendo aceitar dinheiro de seus discípulos, ele rapidamente empobreceu, pois tais afazeres o deixaram sem tempo para cuidar de seus próprios assuntos particulares.

Em vista disso tudo, recuar diante da ameaça de morte seria, isso sim, motivo justo para que o acusassem de desprezar os deuses. Se lhe propusessem absolvição sob a condição de não mais filosofar, ele responderia que é mais importante obedecer aos deuses que aos homens, e continuaria exortando os atenienses à preocupação com a sabedoria e a verdade, em detrimento da riqueza e da fama. Sua missão não pode ser abandonada, pois é o que há de mais valioso dentre tudo o que se faz na cidade. Além disso, temer a morte é atribuir-se uma sabedoria ilusória, como a dos políticos, poetas e artesãos. Pois todos a temem sem de fato saberem se ela é um mal ou o supremo bem. Logo, é errado pautar as ações pelo risco de morte que elas acarretam, e muitos homens tidos por sábios já procederam vergonhosamente nessa situação, como, aliás, se a absolvição diante do tribunal os tornasse imortais. O bom critério reside naquilo que é conforme à virtude. A eventual condenação de Sócrates trará menor dano a ele do que aos próprios atenienses, pois o exílio e a perda da vida ou dos bens causa muito menos mal a um homem do que as injustiças que ele faz aos outros.

Vem então a condenação, que o filósofo recebe sem surpresa. De acordo com a lei, deve sugerir uma pena para si mesmo, em contra-proposta à sentença de morte sugerida por seus acusadores. Começa a segunda parte do seu discurso. Sócrates pergunta que pena merece ele, que sempre desprezou tudo aquilo que tantos julgavam tão importante, empenhando-se em levar aos homens o maior bem possível. Mereceria, na verdade, ser sustentado pelo Estado, honra usualmente concedida aos atletas campeões. Tal proposta não seria arrogante, mas sim a correta aplicação do preceito de não cometer injustiça contra ninguém. Além disso, não seria lógico propor em alternativa à morte, que não se sabe se é boa ou má, uma pena que se sabe ser má, como prisão, multa ou exílio. Porém, não sendo permitido fazer uma proposta justa, Sócrates propõe aquela que lhe parece menos injusta: uma multa que ele possa pagar. Mas como é muito pobre, só pode pagar uma mina de prata. Seus ricos discípulos, no entanto, o convencem a propor uma multa de trinta minas, tomando-os por fiadores.

A assembléia condena o filósofo à morte, e começa a última parte do seu discurso. Ele censura os que o condenaram por darem motivo à difamação da cidade, pois todos a acusarão de ter executado um sábio. E isso era desnecessário, pois eles poderiam ter se livrado dessa culpa com um pouco de paciência, já que ele não iria mesmo viver muito. Morre por recusar-se a se defender de maneira indigna, com discursos falsos que agradam aos juízes, pois é injusto sacrificar pela vida a obediência a valores maiores que ela. Fugir da morte, que agora o acomete, é mais fácil que fugir da maldade que domina seus inimigos. Mas a cada um cabe suportar sua pena. Sócrates vaticina-lhes que virá sobre eles vingança severa da parte de Zeus. Condenaram-no para não terem de prestar contas de suas más ações, mas não serão bem sucedidos nesse intento: serão muitos os que os reprovarão.

Volta-se então para os verdadeiros juízes, os que votaram segundo a justiça, e conta-lhes que o resultado daquele julgamento resultaria num bem para ele, pois seu gênio silenciara ao longo de todo aquele dia. Tal conclusão é plausível, pois a morte só pode ser uma de duas coisas: a cessação da existência ou a migração da alma para outro lugar. O primeiro caso é um bem, pois a inconsciência é preferível às tribulações desta vida, e o segundo o é igualmente, ainda mais se for verdade que no Hades encontram-se todos os mortos. Livrando-se dos falsos juízes de Atenas, o filósofo desfrutará a companhia dos verdadeiros: deuses, heróis, homens justos do passado e todos os que, como ele próprio, foram injustamente sentenciados à morte. Tais mortos são mais felizes que os vivos. Os juízes não devem temer a morte, pois o mal jamais atinge os homens bons. Sua própria morte é, naquelas circunstâncias, um bem, pois o liberta do mundo; aqueles que o condenaram, embora cressem estar causando-lhe um mal, eram na verdade instrumentos postos a serviço do seu bem. Sócrates pede que exortem os filhos dele à justiça e à verdade tão veementemente quanto ele próprio exortou a todos. E despede-se com as seguintes palavras: "É hora de irmos: eu para a morte, vós para as vossas vidas. Quem terá a melhor sorte? Só os deuses sabem."