20 de novembro de 2008

Aventuras no berço do Ocidente - parte 1

"Você descobrirá que o mundo todo prega para uma mente atenta; e que, se você apenas tiver ouvidos para ouvir, quase todas as coisas que você encontra ensinam uma lição de sabedoria." (William Law)

Como muitos dos meus prováveis leitores devem saber, estive na França entre 14 de outubro e 13 de novembro. Creio que seria uma experiência marcante para qualquer pessoa, mas o é ainda mais para alguém tão pouco viajado como eu. Digo isso porque esta foi a minha primeira viagem para fora do Brasil, e a segunda para fora do Estado de São Paulo (a primeira foi há cerca de um ano e está registrada aqui). Justifica-se, portanto, que eu relate aqui alguns dos mais importantes acontecimentos relacionados a essa viagem, bem como as lições que extraí deles. A própria diversidade das experiências vividas, cuja riqueza atinge quase todos os níveis da vida, torna impossível expressar em palavras o efeito que elas tiveram sobre mim. Nem mesmo posso afirmar que estou plenamente consciente da extensão desse efeito. O tempo trará à luz alguns aspectos dele, creio eu, mas outros certamente exercerão para sempre uma influência subconsciente. Conseqüentemente, talvez seja cedo demais para uma apreciação que vá além de um mero relato de curiosidades desconexas. Parece-me inevitável, portanto, que a narrativa a seguir pareça justamente isso aos leitores, embora a mim mesmo pareça algo muito diferente. Assim sendo, dou início agora a um despretensioso relato de alguns acontecimentos relacionados a essa viagem, o qual certamente terá continuidade em posts futuros e não necessariamente consecutivos.

Nada é mais natural que começar apresentando o motivo da minha ida: foi uma viagem a trabalho, possibilitada por uma parceria já meio antiga do laboratório PROTEE (Processus de Transferts et d'Echanges dans l'Environnement) da Universidade de Toulon com diversos centros brasileiros de pesquisa relacionada à agricultura, entre os quais o Laboratório de Óptica e Lasers da Embrapa Instrumentação Agropecuária, no qual, em meio a outras atividades, desenvolvo minha pesquisa de mestrado. Trabalhamos há vários anos com aplicações da espectroscopia de fluorescência à resolução de problemas na citricultura, e nisso o emprego de ferramentas de análise matemática, estatística e computacional tem se revelado de grande ajuda. Essa é, porém, uma área na qual nossos conhecimentos são bastante deficientes; mas nossos parceiros franceses, felizmente, sabem bem mais. Foi isso, essencialmente, o que fui fazer na França: apresentar um problema concreto e aprender possíveis soluções. O trabalho foi produtivo, a despeito de uma série de imprevistos. E bastam essas informações sobre isso.

A viagem começou a ser cogitada por volta de abril, quando recebemos a rápida visita dos professores Stéphane e Roland, que vieram se juntar à Marie, estudante de mestrado que passou três meses conosco. Confesso que não levei muito a sério a possibilidade de concretização do plano, talvez em parte por minha desconfiança instintiva contra qualquer coisa que envolva muita burocracia, e em parte também por influência de um hábito mental de longa data que me leva a ter expectativas bastante modestas quanto ao futuro. O fato é que visitar a Europa é algo que jamais me passou pela cabeça com seriedade. E, no entanto, pouco a pouco as coisas foram dando certo, apesar de alguns contratempos: acabei indo em meados de outubro, em vez de ir no de início de setembro, como estava originalmente previsto; e, pior ainda, fui comprar euros bem no auge de crise econômica, o que me fez chegar à França com apenas três quartos do dinheiro que teria se os tivesse comprado um mês antes. Nenhum desses empecilhos foi decisivo, porém, e lá fui eu.

O trajeto envolveu muitos elementos: durou quase vinte e quatro horas, da saída da casa dos meus pais até a chegada ao aeroporto de Toulon, tendo sido metade desse tempo gasto no vôo de Guarulhos a Paris; quase não dormi nos vôos, o que me levou a assistir três filmes e ouvir dois CDs inteiros, além de ler um pouquinho; o jantar e o café da manhã servidos no avião foram muito bons. Muitos outros detalhes poderiam ser citados, mas nada é tão importante quanto a lenta tomada de consciência da mudança de ambiente. Todas as mensagens transmitidas pelo comandante eram dadas em português, inglês e francês; muitos passageiros eram estrangeiros, assim como quase toda a tripulação; o aeromoço que me atendeu na maior parte das vezes e a aeromoça que o fez nas vezes restantes eram provavelmente franceses, e não falavam português; pela telinha era possível acompanhar o vôo e ver a posição do avião no mapa, e assim eu o vi se afastar lenta e firmemente da costa brasileira e adentrar no Oceano Atlântico, passando depois perto da costa da África e sobrevoando a Península Ibérica até, finalmente, atingir a França. Acompanhei tudo isso com uma sensação mista de temor, incredulidade, empolgação e serenidade, pensando a cada quinze minutos algo como "caramba, jamais estive tão longe!" Quando o avião começou a descer dos quase doze mil metros de altitude em que vinha se mantendo para aterrissar no Aeroporto Internacional Charles de Gaulle, eu já estava dominado por uma forte sensação de que ia pousar, não em outro continente, mas em outro planeta. E quando descemos o suficiente para que o espesso tapete de nuvens se dissipasse e fosse possível entrever a paisagem que se descortinava lá embaixo com nitidez crescente, algo me surpreendeu. Aquele lugar podia se parecer muito com o planeta de onde vim, mas eu jamais poderia confundi-los. Demorei um minuto para descobrir o que estava "errado", mas enfim percebi: eram as cores. Estávamos sobrevoando uma zona rural e florestal, mas o outono da França apresenta a vegetação não apenas nos diversos tons de verde que observamos no Brasil, mas também com tons de marrom, de amarelo, de laranja, de vermelho. (Aproveito a ocasião para registrar minha alegria por ter ido à França justamente no outono, alegria esta motivada exatamente por essas cores.) Quando descemos um pouco mais pude constatar que, além das cores, as formas das árvores também eram diferentes. E, no momento em que o avião se aproximou do aeroporto, cruzou a minha mente um estranho pensamento: "Quão curiosas devem ser as formas de vida inteligentes que governam este mundo tão colorido!"

Esses devaneios interplanetários, porém, foram logo substituídos por uma sensação muito mais realista; creio que poderia expressá-la dizendo que me senti abandonado, se a melancolia não estivesse inteiramente ausente. Estava mais para uma espécie de euforia, na verdade: ali estava eu, a uns dez mil quilômetros de casa, num continente estranho, numa grande cidade, numa terra onde ninguém me conhecia, ninguém falava a minha língua e - o que é pior ainda - cuja língua eu desconhecia quase inteiramente. Repassei mentalmente o itinerário: eu deveria apresentar meu passaporte para ser carimbado pela polícia, pegar minha mala, achar o ponto de parada do ônibus que me levaria ao aeroporto de Orly, onde faria um novo check-in e tomaria o avião para Toulon, em cujo aeroporto eu seria recebido por alguém da universidade. Parece simples, mas tudo se torna muito mais complicado para alguém que teve apenas dois meses para aprender, da maneira mais autodidática possível, alguma coisa sobre o idioma local. Quando o avião finalmente parou, adiantei o relógio em cinco horas. Esse ato banal estava, para mim, carregado de significado: era o símbolo máximo do rompimento temporário com aquela terra distante onde estava quase tudo o que eu conhecia e amava, e do mergulho definitivo nesse lugar desconhecido e algo assustador.

Deu tudo certo. Consegui chegar ao ponto de ônibus em apenas uma hora, aproximadamente o dobro do tempo necessário para alguém que sabe o que está fazendo. Para isso andei bastante, estudei todas as placas e painéis disponíveis, consultei o dicionário umas três vezes e solicitei a ajuda de duas pessoas. Pedi em inglês, língua que aparentemente é falada por boa parte dos funcionários do aeroporto, o que para mim foi um alívio, visto que eu não tinha ainda nem capacidade nem coragem para tentar uma conversa em francês. O mesmo embaraço com a língua se deu dentro do ônibus, em Orly e no segundo avião. Mas, a despeito de todas as dificuldades, as etapas foram sendo vencidas, e no fim da tarde eu finalmente me encontrei, no aeroporto de Toulon, com o professor Yves, chefe do laboratório, vice-reitor da universidade e - o que me parecia ainda mais importante - ótimo falante do português. Ele me levou à universidade, onde conheci o laboratório (e boa parte dos seus integrantes, que me receberam muito bem), e em seguida à casa onde eu deveria morar durante a primeira semana; depois disso, muito gentilmente me levou à sua própria casa, onde tive um ótimo jantar com sua família, antes de finalmente ir para a cama. Creio que, em virtude do enorme cansaço, adormeci menos de um minuto depois de ter fechado os olhos, mas esse tempo foi suficiente para a ocorrência de um fenômeno que iria se repetir muitas vezes nos dias seguintes: tudo o que eu ouvira ao longo de todo o dia naquela língua incompreensível pareceu retornar aos meus ouvidos, como se eu estivesse num salão onde muitas pessoas falavam ao mesmo tempo, resultando numa agradável melodia de entonações e fonemas estranhos que iam e vinham, como ondas num oceano tranqüilo.