24 de dezembro de 2008

Velhas lições sobre o futuro

Nota introdutória: o texto abaixo é uma adaptação - para melhor, espero - de algo que minha própria inépcia me impediu de publicar há um ano, conforme expliquei no primeiro parágrafo deste post.

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A fim de não deixar passar em branco essa grande e bem justificada comemoração da cristandade, resolvi transcrever neste blog um poema natalino. Por ter sido composto em inglês, ele não está apenas transcrito: acrescentei uma tradução feita por mim mesmo, em parceria com Ivan Junqueira. É claro que meu ilustre parceiro não tem consciência alguma de que ocupa essa posição. Ocorre que o autor é o grande poeta T. S. Eliot, a quem já aludi mais de uma vez neste blog. Algum tempo atrás adquiri, a preço de banana, dois volumes publicados pela editora Arx, os quais reúnem grande parte da produção escrita do poeta inglês: o primeiro contém suas poesias, e o segundo suas peças de teatro. Ficaram de fora, infelizmente, todos os seus escritos dissertativos, inclusive sua vastíssima obra de crítica literária. No momento, porém, o que importa é destacar que os dois volumes possuem a excelente característica de conter lado a lado a tradução ao português e o original em inglês, o que proporciona ao leitor a dupla vantagem de ter acesso à poesia original, que é sempre melhor que qualquer tradução que dela se faça, e ao mesmo tempo poder tirar prontamente suas dúvidas quanto ao sentido dos trechos difíceis. Pois bem; Ivan Junqueira é o tradutor do primeiro volume. Não reproduzo aqui sua tradução, por julgar que ele tomou certas liberdades poéticas que o afastaram demais do sentido original das palavras de Eliot. Não o condeno por isso, de modo algum. Ele é um profissional do ramo, e provavelmente sabe o que faz muito melhor que qualquer físico metido a tradutor. De qualquer forma, embora minha preocupação (talvez excessiva) pela exatidão da mensagem tenha me levado a fazer minha própria tradução, seria injusto de minha parte não reconhecer que ela deve muito à de Junqueira.

O poema abaixo não é, nem de longe, um dos mais belos de Eliot, e não chega sequer a ser o melhor dos seus poemas natalinos. Mas tem ao menos a vantagem de ser o mais natalino de todos. Para mim, seu valor reside justamente naquilo que ele explicitamente defende. A religião cristã não é um mero conjunto de enunciados ou dogmas sobre Deus e sobre o homem; ela se propõe a atingir e transformar todos os aspectos do ser do devoto, e não apenas seu lado intelectual. Por conseguinte, a educação para a vida cristã não pode jamais reduzir-se à mera catequese. O próprio Senhor apontou parte da solução para esse problema ao instituir os ritos do batismo e da ceia. Embora o papel desses sacramentos vá, na verdade, muito além disso, eles desempenham também a função pedagógica de preparar nosso espírito para abrir-se a realidades mais sublimes que as que costumamos vivenciar. E para isso contribuem também muitos outros procedimentos ritualizados, embora de maneira menos formal e rigorosa, entre os quais encontra-se a tradição milenar da celebração do nascimento do Salvador, com seus costumeiros acessórios. O tema da poesia abaixo toca em tudo isso, e é por essa razão que resolvo publicá-la, mesmo sabendo que postar um poema que faz referência a uma santa, ainda que apenas parenteticamente, é algo que pode pegar mal para um cristão protestante como eu.

O cultivo das árvores de Natal

Há várias atitudes diante do Natal,
algumas das quais podemos desconsiderar:
a social, a entorpecida, a patentemente comercial,
a barulhenta (os bares abertos até meia-noite),
e a infantil - que não é a da criança
para quem a vela é uma estrela, e o anjo dourado,
estendendo suas asas no topo da árvore,
não é apenas uma decoração, mas um anjo.
A criança fica extasiada com a Árvore de Natal;
deixem-na continuar nesse espírito de êxtase
na Festa como um evento não aceito como um pretexto;
de modo que o arrebatamento reluzente, o assombro
da primeira Árvore de Natal lembrada;
de modo que as surpresas, o deleite em novas posses
(cada uma com seu cheiro peculiar e excitante),
a expectativa pelo ganso ou pelo peru
e o tão aguardado pasmo diante de seu aparecimento;
de modo que a reverência e o júbilo
possam não ser esquecidos na experiência posterior,
no hábito enfadonho, na fadiga, no tédio,
na antevisão da morte, na consciência do fracasso,
ou na piedade do convertido
que pode ser maculada por uma presunção
desagradável a Deus e desrespeitosa às crianças
(e aqui me lembro também com gratidão
de Santa Lúcia, seu canto e sua coroa de fogo);
de modo que antes do fim, no octogésimo Natal
("octogésimo" significando qualquer que seja o último),
as memórias acumuladas da emoção anual
possam ser concentradas numa grande alegria
que será também um grande temor, como na ocasião
em que o temor virá sobre toda alma:
porque o começo nos lembrará do fim
e a primeira vinda, da segunda vinda.

The cultivation of Christmas trees


There are several attitudes towards Christmas,
Some of which we may disregard:
The social, the torpid, the patently commercial,
The rowdy (the pubs being open till midnight),
And the childish - which is not that of the child
For whom the candle is a star, and the gilded angel
Spreading its wings at the summit of the tree
Is not only a decoration, but an angel.
The child wonders at the Christmas Tree:
Let him continue in the spirit of wonder
At the Feast as an event not accepted as a pretext;
So that the glittering rapture, the amazement
Of the first-remembered Christmas Tree,
So that the surprises, delight in new possessions
(Each one with its peculiar and exciting smell),
The expectation of the goose or turkey
And the expected awe on its appearance,
So that the reverence and the gaiety
May not be forgotten in later experience,
In the bored habituation, the fatigue, the tedium,
The awareness of death, the consciousness of failure,
Or in the piety of the convert
Which may be tainted with a self-conceit
Displeasing to God and disrespectful to children
(And here I remember also with gratitude
St. Lucy, her carol, and her crown of fire):
So that before the end, the eightieth Christmas
(By 'eightieth' meaning whichever is the last)
The accumulated memories of annual emotion
May be concentrated into a great joy
Which shall be also a great fear, as on the occasion
When fear came upon every soul:
Because the beginning shall remind us of the end
And the first coming of the second coming.

Posso reconhecer no meu próprio caso a importância pedagógica das experiências natalinas na infância. Poucas vezes tive em casa árvores enfeitadas, luzes e coisas do tipo, embora sempre tenha havido decorações mais discretas. Na igreja, entretanto, sempre participei dos preparativos para a comemoração. Atuei raras vezes na decoração, tarefa para a qual nunca levei muito jeito, mas quase sempre nas dramatizações e, principalmente, nas músicas, com todos os ensaios e outros desafios a superar. Tudo muito trabalhoso, é verdade, mas sempre feito com aquela espécie de alegria constantemente presente num grupo de pessoas que não apenas gostam do que fazem como também estão profundamente convictas da importância do seu trabalho e empenhadas em contemplar seu resultado final. Nisso, aliás, jamais me decepcionei: a noite da véspera, na qual era sempre realizado o culto de Natal, sempre nos fazia sentir que valeram a pena todos os reveses que a antecederam. (Esse fenômeno, aliás, não se extinguiu na minha infância, pois vejo ainda hoje, com o coração cheio de alegria e gratidão, a mesma coisa acontecer nas celebrações musicais do Natal na minha igreja atual.)

Mais importante que tudo isso, porém, era o dia de Natal propriamente dito, que sempre passei na casa dos meus avós maternos. Era a única ocasião do ano em que era possível reunir toda a família. Era o dia de matar a saudade dos primos e primas, da vó e do vô, dos tios e tias. Era o dia da refeição mais gostosa e mais alegre do ano. Ao almoço sempre seguia-se a entrega dos presentes, com os quais ficávamos entretidos em brincadeiras (interrompidas ocasionalmente por pequenas brigas) no quintal até depois do anoitecer. Lembro-me vagamente de uma ou outra decoração de Natal, mas nunca lhes dei muita atenção. Nesse aspecto, as palavras de Eliot não se aplicam à minha própria experiência. Mas pouco importa: o Natal não era um dia como os outros. Era o mais esperado e o mais feliz dentre todos os dias do ano, possuía seus ritos peculiares, seguidos à risca por toda a família, e era, em sua totalidade, um enorme e agradabilíssimo ritual. O eco do júbilo daqueles poucos e esparsos momentos enche minha vida ainda hoje.

Talvez pareça ao leitor que essas reminiscências que descrevo são demasiado seculares, desprovidas de significado espiritual. Há, sem dúvida, alguma dose de verdade nesse julgamento. O divino aniversariante não estava entre as pessoas mais lembradas por mim naquelas ocasiões. Mas o benefício espiritual que eu não soube aproveitar na ocasião foi entesourado para ser recebido com juros, anos mais tarde, por uma personalidade mais amadurecida. Afinal, foi aquela mesma boa nova, anunciada pelos anjos aos pastores de Belém e pelos céus aos magos do Oriente, que me permitiu viver esses momentos inesquecíveis na infância. A memória de tais acontecimentos me ajuda hoje a compreender e receber essa boa nova com a gratidão e o regozijo que ela requer, e assim me preparar melhor para a segunda vinda de que Eliot fala no final do poema. Acredito sinceramente que sem aquelas experiências do passado, vividas de maneira não inteiramente consciente, eu não estaria apto a desfrutar de maneira tão intensa no presente a esperança pelas maravilhas que hão de vir.

Feliz Natal a todos!

8 de dezembro de 2008

Aventuras no berço do Ocidente - parte 2

Toulon é uma cidade do litoral sul da França, a quarenta minutos de Marseille (andando de trem). Pouco depois de descer no aeroporto de Toulon descobri que ele, na verdade, não fica em Toulon, e sim numa cidade vizinha chamada Hyères. E logo fiz a descoberta adicional de que a Universidade de Toulon também não fica em Toulon, e sim numa outra cidade vizinha, La Garde. Acabei aprendendo que esses estranhos fatos relacionam-se a certas realidades da distribuição demográfica do país ou, pelo menos, daquela região. A despeito de possuir apenas cento e cinqüenta ou cento e sessenta mil habitantes (menor, portanto, que o pacato município do interior paulista onde resido), Toulon é a maior cidade das redondezas. À sua volta distribuem-se dezenas de cidadezinhas com cinco, dez, vinte mil habitantes, os quais (isto é, boa parte da população economicamente ativa) muito freqüentemente não trabalham na cidade onde moram. Porém, a área ocupada por um município francês costuma ser consideravelmente menor que a de um município de população equivalente no Brasil. E é menor também a distância entre cidades vizinhas, a ponto de não haver, em alguns casos, descontinuidade alguma no grau de urbanização. É possível passar de uma cidade a outra sem se dar conta disso, especialmente se o transeunte em questão for tão distraído quanto eu.

Na minha primeira semana morei numa casa bem próxima à do professor Yves, num bairro situado perto da praia - quinze minutos a pé. A casa era cerca de duas vezes maior que a minha habitação atual em São Carlos; tinha quarto, sala, copa-cozinha e banheiro (dou esse nome ao último cômodo, embora contivesse também uma máquina de lavar roupas e um guarda-roupa embutido), estava muito bem mobiliada e tinha, junto à porta da cozinha, um pé de azeitonas pretas. Achei-a muito agradável, assim como o local onde estava situada. E, visto que eu ia à universidade bem cedo e retornava apenas quando estava escurecendo (de carona com o professor, em ambos os casos), só me restavam as noites para passear pelo bairro. Foram passeios exploratórios, feitos a pé, como os que eu faria na minha própria cidade, exceto pelo passaporte no bolso e pela câmera fotográfica (gentilmente emprestada pela minha amiga Ana Flávia), da qual raramente me separei - e me arrependi em todas as ocasiões em que fiz isso.

Tais andanças acabaram por revelar muitos outros fatos sobre a vida na França. A primeira coisa que notei foi que as ruas são muito sinuosas; não me lembro de ter visto trechos retilíneos de comprimento superior a cem metros. Não existem caminhos com poucas curvas para lugar algum. "Até parece que por aqui ninguém anda a pé", pensei. E acabei descobrindo que era isso mesmo. Vi uma quantidade razoável de pessoas que caminhavam por exercício, ou para passear com seus cães, mas pouquíssimas que pareciam de fato estar andando com o simples objetivo de ir de um lugar a outro. Na verdade, andar a pé aparenta ser algo tão pouco valorizado que a existência de possíveis praticantes desse hábito não chega sequer a ser levada em consideração às vezes, como se nota, por exemplo, pelo fato de que não poucos trechos de ruas são inteiramente desprovidos de calçadas. Nada disso me causou algum problema com os motoristas, pois os franceses parecem ser muito corteses ao volante. Mas esses fatos contribuíram para fazer com que eu andasse mais do que andaria no Brasil, e também exigiu mais do meu senso de direção, que é apenas mediano. Felizmente, porém, quase todos os pontos de ônibus têm um mapa da cidade - e também das cidades vizinhas, na verdade, abrangendo toda a rede de transportes públicos, de ônibus e barcos - com a indicação "vous êtes ici" ("você está aqui") em algum ponto. Visto que passeei sozinho na quase totalidade das vezes, só posso dizer que, sem o recurso constante aos pontos de ônibus, não sei o que teria sido desses passeios; ou, pior ainda, dos retornos.

Mas estou me adiantando demais; outros passeios serão descritos mais tarde. As ruas sinuosas contribuem para dar uma aparência especial à paisagem, mas são menos importantes que as residências. Mal posso descrever a experiência de andar entre as casas de um bairro francês. É quase como se um aspecto inteiramente novo da realidade se descortinasse diante dos meus olhos. Percebi, de repente, o motivo pelo qual meu interesse por arquitetura sempre foi tão limitado. A resposta parece ser, muito simplesmente, que bem poucas vezes ao longo da minha vida eu havia visto casas verdadeiramente bonitas. Ou, dizendo de maneira mais precisa, poucas vezes eu vira casas com um tipo de beleza tão pungente. Algo que estava adormecido despertou em mim. As belas casas do Brasil, embora não sejam menos belas por isso, parecem ter um ar de ostentação, não necessariamente motivada por uma vaidade tola, mas sim num sentido algo mais difícil de explicar. É como se todos os detalhes tivessem sido meticulosamente planejados para despertar a admiração de uma categoria de pessoas na qual não estou incluído.

Eu jamais havia me dado conta disso até então, e nem mesmo estou certo de que tais palavras traduzem da melhor maneira possível esse estranho sentimento que me acometeu. Mas há algo nas casas francesas, com seus muros de pedra, seus portões aparentando uma idade enorme, a abundância de árvores e de plantas trepadeiras, que dá ao conjunto um tom espontâneo, natural, bucólico, impressão essa reforçada pelo clima temperado, outonal, com folhas de diversas cores e tamanhos espalhando-se pelo chão. Eu tinha a sensação de que todos os diversos aspectos que eu discernia - edificações, vegetação, clima, nuvens, ruas, cães, transeuntes e seu estranho idioma - harmonizavam-se de maneira admirável (embora talvez num relacionamento conturbado, cheio de altos e baixos, ao longo dos séculos), que haviam sido feitos uns para os outros. As casas e seus habitantes pareciam ter brotado do chão junto com as árvores.

Poucos dias depois do meu retorno a estas plagas, ao contemplar uma bela paisagem natural bem mais brasileira, tive uma percepção vinculada precisamente a essa questão da harmonia: aqui, exceção feita aos ambientes quase inteiramente rurais, a presença de edificações feitas por mãos humanas quase sempre diminui a beleza da paisagem. Na França, por alguma misteriosa razão, isso não acontece. Meus devaneios quanto a ter pousado no território de uma raça estranha não são tão absurdos, afinal. Mas agora eu pensaria menos em algum planeta distante do que na Terra-média de Tolkien, com seus elfos, anões, hobbits e mesmo homens preocupados em edificar coisas boas e úteis sem jamais ferir a beleza do mundo circundante. Falando de uma perspectiva muito mais estética do que propriamente ecológica, ao menos, creio que temos algo a aprender com os franceses no que tange à harmonia entre o homem civilizado e a natureza.

Mas talvez haja um outro segredo por trás da beleza de Toulon e, quem sabe, das cidades francesas em geral: o peso da história se faz sentir em todo lugar, inexoravelmente. O antigo e o moderno misturam-se de uma maneira que surpreende, mas justamente por aparentar uma harmonia natural e profunda. O centro de Toulon - a única parte da cidade, creio eu, onde é possível encontrar ruas retas em abundância - é um espetáculo disso mesmo: prédios antigos e cheios de uma beleza inconfundivelmente ancestral abrigam não apenas igrejas, museus e instituições públicas, mas também bancos com caixas eletrônicos e lojas do McDonald's, em ruas intensamente movimentadas por muitos carros (pois embora haja, naturalmente, mais gente andando a pé no centro do que nos bairros, o trânsito de veículos continua sendo o fator mais impressionante, a julgar pelo tamanho da cidade). As ruas que descem para o mar, situado a poucos minutos da praça central, são geralmente estreitas e ladeadas por prédios de aparência antiga, com quatro ou cinco andares, dos quais o térreo abriga geralmente algum tipo de estabelecimento comercial, e os andares superiores contêm apartamentos onde, suponho, vivem pessoas relativamente pobres. Não é muito difícil, caminhando por ali, imaginar-se no século XVIII ou mesmo num ambiente urbano do fim da Idade Média.

Na beira do mar há restaurantes caros (ao menos para mim), iates e navios modernos. E, no entanto, aquele mar é o mesmo de sempre, o velho Mediterrâneo, à beira do qual floresceram várias das mais importantes culturas da história, mar que foi palco e testemunha de muitos dos eventos de mais decisiva influência sobre a trajetória humana no mundo. Quando o contemplei pela primeira vez, ainda de longe, não pude deixar de sentir uma certa emoção, um frêmito que traduzia, talvez, uma reverência mal contida pela riqueza do passado. O mar, creio eu, é encantador por si mesmo, e assim será sempre, em qualquer parte do mundo. Mas no Brasil a única massa de água que se vê é aquela que foi desbravada apenas pelas grandes navegações empreendidas pelos colonizadores europeus há não muito mais de cinco séculos. Mas aquele que eu tinha diante dos olhos, em eras muitíssimo anteriores à própria da existência da Europa como civilização, havia sido cruzado pelos fenícios e disputado por Cartago, antes de ter sua posse enfim reivindicada pelos romanos e ser batizado por eles com um nome que evoca, ao mesmo tempo, intimidade e ousadia: Mare Nostrum.