8 de dezembro de 2008

Aventuras no berço do Ocidente - parte 2

Toulon é uma cidade do litoral sul da França, a quarenta minutos de Marseille (andando de trem). Pouco depois de descer no aeroporto de Toulon descobri que ele, na verdade, não fica em Toulon, e sim numa cidade vizinha chamada Hyères. E logo fiz a descoberta adicional de que a Universidade de Toulon também não fica em Toulon, e sim numa outra cidade vizinha, La Garde. Acabei aprendendo que esses estranhos fatos relacionam-se a certas realidades da distribuição demográfica do país ou, pelo menos, daquela região. A despeito de possuir apenas cento e cinqüenta ou cento e sessenta mil habitantes (menor, portanto, que o pacato município do interior paulista onde resido), Toulon é a maior cidade das redondezas. À sua volta distribuem-se dezenas de cidadezinhas com cinco, dez, vinte mil habitantes, os quais (isto é, boa parte da população economicamente ativa) muito freqüentemente não trabalham na cidade onde moram. Porém, a área ocupada por um município francês costuma ser consideravelmente menor que a de um município de população equivalente no Brasil. E é menor também a distância entre cidades vizinhas, a ponto de não haver, em alguns casos, descontinuidade alguma no grau de urbanização. É possível passar de uma cidade a outra sem se dar conta disso, especialmente se o transeunte em questão for tão distraído quanto eu.

Na minha primeira semana morei numa casa bem próxima à do professor Yves, num bairro situado perto da praia - quinze minutos a pé. A casa era cerca de duas vezes maior que a minha habitação atual em São Carlos; tinha quarto, sala, copa-cozinha e banheiro (dou esse nome ao último cômodo, embora contivesse também uma máquina de lavar roupas e um guarda-roupa embutido), estava muito bem mobiliada e tinha, junto à porta da cozinha, um pé de azeitonas pretas. Achei-a muito agradável, assim como o local onde estava situada. E, visto que eu ia à universidade bem cedo e retornava apenas quando estava escurecendo (de carona com o professor, em ambos os casos), só me restavam as noites para passear pelo bairro. Foram passeios exploratórios, feitos a pé, como os que eu faria na minha própria cidade, exceto pelo passaporte no bolso e pela câmera fotográfica (gentilmente emprestada pela minha amiga Ana Flávia), da qual raramente me separei - e me arrependi em todas as ocasiões em que fiz isso.

Tais andanças acabaram por revelar muitos outros fatos sobre a vida na França. A primeira coisa que notei foi que as ruas são muito sinuosas; não me lembro de ter visto trechos retilíneos de comprimento superior a cem metros. Não existem caminhos com poucas curvas para lugar algum. "Até parece que por aqui ninguém anda a pé", pensei. E acabei descobrindo que era isso mesmo. Vi uma quantidade razoável de pessoas que caminhavam por exercício, ou para passear com seus cães, mas pouquíssimas que pareciam de fato estar andando com o simples objetivo de ir de um lugar a outro. Na verdade, andar a pé aparenta ser algo tão pouco valorizado que a existência de possíveis praticantes desse hábito não chega sequer a ser levada em consideração às vezes, como se nota, por exemplo, pelo fato de que não poucos trechos de ruas são inteiramente desprovidos de calçadas. Nada disso me causou algum problema com os motoristas, pois os franceses parecem ser muito corteses ao volante. Mas esses fatos contribuíram para fazer com que eu andasse mais do que andaria no Brasil, e também exigiu mais do meu senso de direção, que é apenas mediano. Felizmente, porém, quase todos os pontos de ônibus têm um mapa da cidade - e também das cidades vizinhas, na verdade, abrangendo toda a rede de transportes públicos, de ônibus e barcos - com a indicação "vous êtes ici" ("você está aqui") em algum ponto. Visto que passeei sozinho na quase totalidade das vezes, só posso dizer que, sem o recurso constante aos pontos de ônibus, não sei o que teria sido desses passeios; ou, pior ainda, dos retornos.

Mas estou me adiantando demais; outros passeios serão descritos mais tarde. As ruas sinuosas contribuem para dar uma aparência especial à paisagem, mas são menos importantes que as residências. Mal posso descrever a experiência de andar entre as casas de um bairro francês. É quase como se um aspecto inteiramente novo da realidade se descortinasse diante dos meus olhos. Percebi, de repente, o motivo pelo qual meu interesse por arquitetura sempre foi tão limitado. A resposta parece ser, muito simplesmente, que bem poucas vezes ao longo da minha vida eu havia visto casas verdadeiramente bonitas. Ou, dizendo de maneira mais precisa, poucas vezes eu vira casas com um tipo de beleza tão pungente. Algo que estava adormecido despertou em mim. As belas casas do Brasil, embora não sejam menos belas por isso, parecem ter um ar de ostentação, não necessariamente motivada por uma vaidade tola, mas sim num sentido algo mais difícil de explicar. É como se todos os detalhes tivessem sido meticulosamente planejados para despertar a admiração de uma categoria de pessoas na qual não estou incluído.

Eu jamais havia me dado conta disso até então, e nem mesmo estou certo de que tais palavras traduzem da melhor maneira possível esse estranho sentimento que me acometeu. Mas há algo nas casas francesas, com seus muros de pedra, seus portões aparentando uma idade enorme, a abundância de árvores e de plantas trepadeiras, que dá ao conjunto um tom espontâneo, natural, bucólico, impressão essa reforçada pelo clima temperado, outonal, com folhas de diversas cores e tamanhos espalhando-se pelo chão. Eu tinha a sensação de que todos os diversos aspectos que eu discernia - edificações, vegetação, clima, nuvens, ruas, cães, transeuntes e seu estranho idioma - harmonizavam-se de maneira admirável (embora talvez num relacionamento conturbado, cheio de altos e baixos, ao longo dos séculos), que haviam sido feitos uns para os outros. As casas e seus habitantes pareciam ter brotado do chão junto com as árvores.

Poucos dias depois do meu retorno a estas plagas, ao contemplar uma bela paisagem natural bem mais brasileira, tive uma percepção vinculada precisamente a essa questão da harmonia: aqui, exceção feita aos ambientes quase inteiramente rurais, a presença de edificações feitas por mãos humanas quase sempre diminui a beleza da paisagem. Na França, por alguma misteriosa razão, isso não acontece. Meus devaneios quanto a ter pousado no território de uma raça estranha não são tão absurdos, afinal. Mas agora eu pensaria menos em algum planeta distante do que na Terra-média de Tolkien, com seus elfos, anões, hobbits e mesmo homens preocupados em edificar coisas boas e úteis sem jamais ferir a beleza do mundo circundante. Falando de uma perspectiva muito mais estética do que propriamente ecológica, ao menos, creio que temos algo a aprender com os franceses no que tange à harmonia entre o homem civilizado e a natureza.

Mas talvez haja um outro segredo por trás da beleza de Toulon e, quem sabe, das cidades francesas em geral: o peso da história se faz sentir em todo lugar, inexoravelmente. O antigo e o moderno misturam-se de uma maneira que surpreende, mas justamente por aparentar uma harmonia natural e profunda. O centro de Toulon - a única parte da cidade, creio eu, onde é possível encontrar ruas retas em abundância - é um espetáculo disso mesmo: prédios antigos e cheios de uma beleza inconfundivelmente ancestral abrigam não apenas igrejas, museus e instituições públicas, mas também bancos com caixas eletrônicos e lojas do McDonald's, em ruas intensamente movimentadas por muitos carros (pois embora haja, naturalmente, mais gente andando a pé no centro do que nos bairros, o trânsito de veículos continua sendo o fator mais impressionante, a julgar pelo tamanho da cidade). As ruas que descem para o mar, situado a poucos minutos da praça central, são geralmente estreitas e ladeadas por prédios de aparência antiga, com quatro ou cinco andares, dos quais o térreo abriga geralmente algum tipo de estabelecimento comercial, e os andares superiores contêm apartamentos onde, suponho, vivem pessoas relativamente pobres. Não é muito difícil, caminhando por ali, imaginar-se no século XVIII ou mesmo num ambiente urbano do fim da Idade Média.

Na beira do mar há restaurantes caros (ao menos para mim), iates e navios modernos. E, no entanto, aquele mar é o mesmo de sempre, o velho Mediterrâneo, à beira do qual floresceram várias das mais importantes culturas da história, mar que foi palco e testemunha de muitos dos eventos de mais decisiva influência sobre a trajetória humana no mundo. Quando o contemplei pela primeira vez, ainda de longe, não pude deixar de sentir uma certa emoção, um frêmito que traduzia, talvez, uma reverência mal contida pela riqueza do passado. O mar, creio eu, é encantador por si mesmo, e assim será sempre, em qualquer parte do mundo. Mas no Brasil a única massa de água que se vê é aquela que foi desbravada apenas pelas grandes navegações empreendidas pelos colonizadores europeus há não muito mais de cinco séculos. Mas aquele que eu tinha diante dos olhos, em eras muitíssimo anteriores à própria da existência da Europa como civilização, havia sido cruzado pelos fenícios e disputado por Cartago, antes de ter sua posse enfim reivindicada pelos romanos e ser batizado por eles com um nome que evoca, ao mesmo tempo, intimidade e ousadia: Mare Nostrum.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fala rapaz!!

e ai td bem,aki +/-, gostei deste segundo texto e do primeiro tb. Não havia reparado que tinha lugar pra comentario. Desculpa mas sou pouco ou quase nada frequentador de blogues!!

Abssss
Rodrigo