14 de janeiro de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 3

No post anterior desta série sobre minha viagem à França relatei alguns fatos constatados em minhas andanças por Toulon e seus arredores. Agora vou escrever sobre outras coisas, enfatizando menos o ambiente e mais as pessoas, pelo menos num primeiro momento. Antes de falar dos franceses, contudo, abordarei os elementos estrangeiros (como eu mesmo) ali presentes. Dois desses elementos me surpreenderam por sua abundância. O primeiro, mais visível na universidade, compõe-se dos estudantes chineses. Dentro do campus, bem como nos pontos de ônibus das redondezas, ouvi conversas em mandarim quase tão freqüentemente quanto no próprio idioma local. Até no laboratório onde trabalhei havia uma estudante chinesa, tão simpática, aliás, quanto seu namorado (ou marido) francês. (O pessoal do laboratório é muito gentil e atencioso, de maneira geral.) O segundo elemento, mais presente no centro da cidade, é a população islâmica, facilmente distinguível pelos cabelos totalmente cobertos das mulheres. (Havia também uma representante dessa classe no meu local de trabalho.) É evidente que muitos são imigrantes, provavelmente oriundos das antigas colônias francesas da África setentrional. Mas uma boa parcela é claramente francesa, e sua presença em quantidades nada desprezíveis é o sintoma mais evidente que pude constatar do processo de islamização atualmente em curso na Europa, um fenômeno que, como tantos dos eventos mais importantes da atualidade, parece quase ignorado por nossa imprensa.

Aproveito para relatar que não apenas é fácil distinguir um europeu de um africano de origem árabe, mas também, depois que a gente se acostuma a ver rostos franceses o tempo todo, é até relativamente fácil distingui-los de outros europeus como, por exemplo, os marinheiros holandeses que encontrei no porto. Os próprios franceses, entretanto, não parecem ter a mesma facilidade com essas distinções: bem poucos percebiam que eu era estrangeiro, e muitos que vieram me atender, conversar comigo ou me pedir informações ficaram notavelmente espantados ao ouvir uma balbuciante tentativa de resposta (nas raras vezes em que eu compreendia o que me fora dito) ou um simples "pardon, je ne parle pas français". E os que percebiam que eu não era francês tendiam a inferir, por alguma misteriosa razão, que eu era inglês. Foi esse o caso do homem muito gentil a quem fui perguntar onde era o porto e que acabou me dando carona até lá, por ter ficado penalizado ao me imaginar percorrendo a pé o trajeto de dois quilômetros (um indício adicional de que os franceses de fato costumam andar muito pouco). Foi também o caso de um outro homem, tão atencioso quanto o primeiro, que me ajudou a encontrar um estabelecimento comercial que vendesse cartões telefônicos às onze da noite - uma proeza de fato quase impossível numa cidade onde até os ônibus são muito raros depois das oito. A tradicional rivalidade entre a França e a Inglaterra - rivalidade que remonta, segundo dizem, à Guerra dos Cem Anos - apenas torna mais notável a prontidão de cada um desses homens em me prestar ajuda mesmo antes de descobrir que eu era brasileiro.

Esses episódios inserem-se em aventuras mais longas que eu certamente narrarei em outra ocasião, de modo que não convém me estender sobre eles agora. Mas devo mencionar ainda, em conexão com esses comentários sobre a presença estrangeira no sul da França, que é mais fácil encontrar nas ruas um francês que fala espanhol do que um falante do inglês. E, embora eu não saiba dizer quanto ao primeiro desses idiomas, do qual conheço pouco demais, posso garantir que o inglês das pessoas que não trabalham na universidade é, em geral, muito ruim, tendendo ao incompreensível. (Algumas vezes eu de fato cheguei a me arrepender por ter aceitado a generosa oferta dos meus interlocutores que, vendo minha dificuldade com sua língua mãe, decidiram conceder a possibilidade de uma comunicação na língua inglesa. A essa altura, entretanto, era tarde demais para que eu dissesse "no, no, speak French, please!" sem parecer mal educado.) E, já que estamos falando em incompreensão, creio que o momento é oportuno para mencionar ainda o provençal, idioma específico daquela região, que hoje é falado por poucos e que guarda fortes similaridades com o italiano. Dizem, aliás, que com o português também. Mas quando, durante um almoço na casa do professor Stéphane, ouvi um CD de música provençal, não entendi uma palavra sequer; eu me saí até pior na compreensão desse dialeto do que com as músicas francófonas.

Toda essa questão de línguas estrangeiras rendeu também algumas das minhas experiências mais inusitadas. Durante meu primeiro passeio pelo centro de Toulon, enquanto eu fotografava o belo edifício que abriga o teatro municipal, fui interrompido por um homem que me dirigiu a palavra - em francês, naturalmente. Comuniquei-lhe minha ignorância do idioma, e ele logo repetiu em um inglês muito compreensível o que acabara de dizer: queria cinqüenta centavos para comer alguma coisa. Dei-lhe o dinheiro, ele agradeceu e se foi. Uma cena muito natural, talvez, mas enquanto eu tateava o bolso à procura de moedas não me saía da mente o seguinte pensamento: "Puxa vida! Um mendigo poliglota! Que país estranho!" Depois, pensando melhor, percebi ele não devia ser um mendigo. Não estava mal vestido, embora trajasse roupas simples, e visivelmente não era de ascendência européia. Era provavelmente um imigrante desempregado, talvez em situação ilegal. Não sei. Seja como for, o fato é que nada disso me ocorreu naquele momento, e é por isso mesmo que a situação pareceu-me deveras irreal e engraçada.

Mas logo descobri, com espanto ainda maior, que esse meu pensamento, embora talvez mal aplicado àquela circunstância específica, não deixou de captar algo verdadeiro sobre a realidade da França: o pedido de esmolas seguinte, que recebi duas semanas depois, foi feito por um mendigo autêntico e que parecia francês de verdade. E, no entanto, ao saber que eu era estrangeiro deu-me a opção de ouvir o pedido em inglês ou em espanhol. Além desses dois casos, houve apenas mais uma situação em que um homem me pediu dinheiro: um bêbado que, tarde da noite, queria uns trocados para comprar um cigarro. Não sei se era mendigo. Seja como for, desconfio que, objetivamente falando, os desabrigados da França meridional vivem uma vida até confortável, se comparada à dos andarilhos brasileiros. O melhor exemplo disso é um rapaz que costuma pedir esmolas em frente à loja do McDonald's, a menos de um quarteirão da praça central da cidade. Não pode haver dúvida de que ele é de fato um habitante das ruas, pois o vi dormindo ali mesmo na calçada todas as vezes em que passei pelo local num horário bastante avançado. Ao que parece, ele passa os dias sem tédio, pois, enquanto aguarda sossegadamente as moedas que são jogadas pelos transeuntes, vai ouvindo músicas com seus fones de ouvido. O sul da França é habitado por mendigos tão chiques que chegou a me passar pela cabeça a idéia de pedir-lhes recibo a cada esmola concedida.

Ao longo de meus trinta dias em Toulon e cidades vizinhas vi cerca de cinco mendigos (nem todos comprovados) e, conforme acabo de dizer, fui interpelado três vezes por algum possível representante dessa classe; índices muito baixos, levando-se em conta a quantidade de lugares que visitei e o tempo que gastei andando por aquelas bandas. A prosperidade material da França é visível também nisso, assim como em muitas outras coisas. É raro que alguém ganhe mais de quatro salários mínimos, mas o salário mínimo vale mil euros. E as habitações mais pobres da cidade, o equivalente francês das favelas (segundo ouvi de franceses que já moraram no Brasil), pareceram-me semelhantes a um prédio de apartamentos pequenos: sem luxo ou grande beleza, mas também sem goteiras, esgoto a céu aberto ou traficantes.

Falando em traficantes, lembro-me do que foi uma das experiências mais memoráveis de toda a viagem: a sensação de tranquilidade no que diz respeito à segurança pessoal. Toulon é uma cidade onde se podem deixar destrancadas as portas dos carros, e na qual é possível andar por todos os lugares, a qualquer momento, sem o mais ínfimo medo de assaltos ou outras formas de violência. Eis uma sensação que eu jamais havia sentido ao andar à noite por uma rua deserta no Brasil, nem mesmo no mais pacato recanto do interior paulista em que já estive. Mesmo que essa sensação de segurança tenha sido ilusória - e tudo leva a crer que não era -, ela permanecerá para sempre como uma das lembranças mais caras da minha estadia naquela terra. Sob esse aspecto, ao menos, a memória de Toulon remete a algo como um vislumbre do Paraíso. Talvez essa comparação pareça exagerada ao leitor; e é bom que soe dessa forma, pois ela é exatamente isso. Mas não se trata uma hipérbole sem propósito, já que comunica algo sobre a natureza da sensação. Eu mesmo me surpreendi com a intensidade do bem-estar proporcionado por essa segurança. Porém, estando ali e desfrutando daquele sentimento agradabilíssimo, não pude deixar de me lembrar do povo brasileiro, que geme sob uma criminalidade cada vez mais sufocante e alimentada pela negligência e pelo apoio efetivo dos governantes. Não, é claro, que essas realidades não fossem do meu conhecimento há um certo tempo. Mas foi apenas em minhas caminhadas noturnas por aquela terra à beira do Mediterrâneo que pude compreender o real valor dessa bênção da qual nós, brasileiros, temos sido privados.

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