12 de fevereiro de 2009

A enxaqueca na alma - parte 1

Hoje darei continuidade ao projeto de resumir os diálogos platônicos, fazendo com o Cármides o mesmo que já fiz com a Apologia de Sócrates e o Críton. O texto traz o nome de um jovem primo de Crítias, amigo de Sócrates; ambos travam diálogo com o filósofo, que acaba de voltar de Potidéia, onde tomou parte em uma batalha. Após narrar os eventos bélicos a um grupo ansioso, Sócrates passa a indagar sobre a juventude ateniense, interessado em saber se alguém se destaca por sua sabedoria ou beleza. Crítias chama sua atenção para alguns jovens que se aproximam seguindo Cármides, líder natural entre eles, e dono de estatura e beleza notáveis. Sócrates compartilha da admiração pela compleição do rapaz, mas deseja investigar se ele possui uma alma igualmente nobre. Crítias assegura que Cármides é tão belo por dentro quanto por fora e, a fim de demonstrar o que diz, chama-o para vir conversar com seu amigo e sugere a este que se faça passar por um médico que conhece a cura da enxaqueca, mal de que o jovem vinha se queixando nos últimos dias.

Sócrates de fato afirma ao rapaz que conhece a cura desejada, a qual consiste num encantamento a ser repetido em voz alta durante a aplicação do remédio. Mas os grandes médicos jamais tratam uma parte do corpo isoladamente do conjunto. O filósofo conta que o encantamento lhe foi ensinado por um médico da Trácia, para quem o erro dos gregos é não levar esse princípio às últimas conseqüências: não se deve tentar a cura do corpo sem a cura da alma, "pois a parte não pode ficar bem a menos que o todo esteja bem". O bem e o mal, dizia o trácio, têm início na alma, e só depois afloram para o corpo. O encantamento trata justamente da alma, dando-lhe sensatez, e esta promove a cura física. Não é recomendável, portanto, dar início ao tratamento pela enxaqueca em si, e Sócrates jurou ao médico que jamais o faria. É necessário, portanto, começar a cura de Cármides pelo exame de sua alma. Sócrates afirma que o rapaz foi privilegiado por ter antepassados nobres e belos; se for verdade que ele possui sensatez em alto grau, como garante Crítias, então sua alma está curada e pode-se passar diretamente à cura da doença. Mas o jovem, temendo vangloriar-se e, ao mesmo tempo, não desejando desmentir seu parente, afirma não saber se deve dizer-se sensato ou não. O filósofo propõe, então, que descubram juntos a resposta a essa questão, e começa perguntando a Cármides o que pensa ele ser a sensatez. Cinco definições são propostas ao longo da conversa, sendo cada uma refutada por Sócrates, conforme se vê a seguir.

(Há cinco elementos soltos ao longo do diálogo que vale a pena mencionar, dos quais o primeiro é narrativo e os demais dizem respeito ao espírito do diálogo: a. a proximidade do rapaz deixa o filósofo - assim como outros ali presentes - momentaneamente embaraçado; na verdade, as expressões utilizadas parecem indicar, por eufemismos, nada menos que atração sexual; b. a identidade do autor de uma idéia não tem importância para o julgamento de sua veracidade ou falsidade; c. não há problema em definir os termos de maneira estranha à usual, desde que seus respectivos significados fiquem claros a todos os participantes; d. a tentativa de refutação é parte da investigação de um assunto, e a descoberta da verdade é um bem para todos os homens, de modo que a pessoa cujas posições são refutadas não deve se ressentir disso; e e. é dever de todo homem examinar todo pensamento que lhe ocorre, por mais absurdo que pareça.)

1. Ser sensato é ser tranqüilo, fazer tudo de maneira calma e ordeira. Mas a sensatez é uma coisa nobre e boa, e no entanto considera-se que os melhores em muitas ações - leitura, corrida e todo tipo de aprendizado, por exemplo - são aqueles capazes de realizá-las com rapidez e agilidade. Em tais atividades, a sensatez - conforme definida por Cármides - seria um mal, não um bem, e uma vida humana na qual todas as ações fossem efetuadas com lentidão estaria longe de ser a melhor possível. Cármides reconhece prontamente seu erro e reflete sobre os efeitos da sensatez em seu próprio ser para produzir uma nova definição.

2. Ser sensato é ser modesto. Cármides mantém que a sensatez é nobre e boa, e sempre faz bem ao seu possuidor. Entretanto, concorda com Homero, segundo o qual "a modéstia não é boa para o necessitado". Tais posturas são mutuamente contraditórias, pois seu assentimento ao antigo poeta implica que a modéstia, ao contrário da sensatez, não é sempre um bem, de modo que não pode haver identidade entre os dois conceitos.

3. Ser sensato é se ocupar apenas de seus próprios assuntos. Tal idéia não foi elaborada por Cármides, e sim por Crítias, embora este negue a autoria. O filósofo acredita ser impossível determinar se a definição é correta, visto que é inerentemente ambígua, e que seu autor não pretendia dizer o que disse. O menino que aprende a escrever os nomes de outros, além de seu próprio, não está de modo algum sendo intrometido ou insensato. De maneira similar, as profissões do pedreiro, do tecelão e do médico dizem respeito, por natureza, aos interesses de outras pessoas. Uma lei que obrigasse cada cidadão a construir sua própria casa, fabricar suas próprias vestimentas e curar suas próprias doenças não promoveria a ordem, e assim não favoreceria a sensatez, pois aquela é produzida por esta. Tamanha tolice não pode ser o sentido pretendido pelo autor da definição, que Cármides garante ser um grande sábio, e portanto só resta concluir que esse homem elaborou propositalmente um enigma, de modo que seu verdadeiro sentido permanecesse oculto.

Então Crítias, apesar de não assumir a autoria da definição, vê-se obrigado a defender sua validade, e assim toma o lugar de seu primo na discussão. Ele sustenta que há uma distinção entre se ocupar dos assuntos alheios, coisa que os sensatos não fazem, e apenas fazer coisas que afetam ou dizem respeito a outras pessoas, o que qualquer um faz. Este último verbo se relaciona ao trabalho e, segundo Hesíodo, "nenhum trabalho é desonroso". Pois essa ação só inclui aquilo que é nobre e útil, enquanto a ocupação pode não possuir essas características: ocupar-se do que é prejudicial ou desonroso não é trabalhar, e portanto não é um dos assuntos próprios do indivíduo. Com base nisso produz-se uma nova definição.

4. Ser sensato é fazer coisas boas. Acrescenta-se que o homem não pode exercer sua sensatez de modo inconsciente. Mas da obra que um artesão faz para outra pessoa pode resultar benefício para si próprio (ao receber pagamento, por exemplo), assim como um médico ao curar um paciente, ou qualquer um que cumpre seu dever com relação a outros. Entretanto, tal pessoa não necessariamente sabe de antemão se virá daí algum benefício. Sendo assim, o homem pode fazer o bem, e portanto agir de maneira sábia e sensata, sem perceber isso durante o próprio ato. Crítias reconhece a contradição, mas vê o auto-conhecimento como inerente à própria noção de sensatez e requisito para todo conhecimento. Renuncia, portanto, a tudo o que disse antes e propõe a última definição, que dá ensejo a um novo debate sobre outros assuntos, como será mostrado na próxima postagem.

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