30 de agosto de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 6

Embora eu ainda tenha algumas aventuras para narrar, sinto necessidade de fazer uma pausa para contar algo sobre certos fatos e experiências que, como agora percebo, não foram adequadamente descritos nas postagens anteriores, e nem poderiam ser nas que ainda pretendo publicar. O que há em comum entre eles é o fato de que se estendem por todo o período de minha viagem, não se concentrando em nenhum momento e não podendo, portanto, ser senão parcamente ilustrados pela narração de eventos específicos. Refiro-me, principalmente, a coisas triviais que qualquer um que andou por terras distantes deve contar, por estarem entre as primeiras que todo mundo pergunta. De alguma maneira que nem eu compreendo bem, consegui não falar sobre esses tópicos até agora.

O primeiro deles é a comida. Em vista da fama da culinária francesa, várias pessoas vieram me perguntar a respeito. Respondo apenas que, até onde pude constatar, a fama se justifica. Mas os elementos de que disponho para emitir tal parecer são bem menos abundantes do que seria de se esperar de alguém que esteve lá, ainda que por pouco tempo. E a razão disso é muito simples: na França, de fato, pode-se comer muito bem, desde que se tenha dinheiro. É desnecessário dizer que não era o meu caso. Dadas as minhas condições financeiras, comer em restaurantes era exceção, e não regra. Sendo mais preciso, pisei quatro vezes em estabelecimentos desse tipo. Em todas elas comi muito bem, exceto quando decidi comer uma pizza - ocasião a que já aludi anteriormente. E em nenhuma gastei menos de onze euros, sem contar a bebida.

Visto que meus talentos na cozinha estão em algum ponto entre o desprezível e o inexistente, surge naturalmente a questão: o que fazer se o dinheiro não basta para comprar comida pronta todos os dias? A resposta é dupla. Em primeiro lugar, os supermercados: neles há uma profusão de produtos semiprontos ou de preparação facílima a um preço relativamente baixo. (Praticamente tudo na França é bem mais caro que no Brasil, de modo que os produtos de supermercado se tornam, em comparação, consideravelmente baratos.) Há inclusive, uma porção de elementos provenientes da culinária marroquina e de outros países da África setentrional. As frutas são todas lindas e apetitosas - como raramente se vê nos supermercados daqui do paraíso da fruticultura -, mas muito caras. Cheguei a ver em Paris um quilo de cerejas por mais de trinta euros. Em compensação, há uma estonteante diversidade de queijos, e quase todos a um preço acessível. Se há uma coisa que lamento no que diz respeito à alimentação durante essa viagem, é justamente o fato de ter comprado e provado apenas uma minúscula parte de toda a variedade disponível desse gênero alimentício. Mas a maior de todas as minhas surpresas foi ter descoberto que lá aparentemente inexiste uma coisa tão banal quanto o chá mate. (Os franceses a quem perguntei dividem-se quanto a isso: a maioria garante que o chá mate não existe na França; alguns, porém, afirmam que já viram isso à venda alguma vez.)

Em segundo lugar, é claro, existem os lanches e alimentos semelhantes. Há pães de todos os tamanhos, sempre bonitos e deliciosos. Também não cheguei a provar senão uma ínfima parte da variedade disponível no que diz respeito aos formatos, tamanhos, coberturas e recheios. Alguns deles de fato valem sozinhos por uma refeição. Não tenho motivo algum para reclamar das padarias. Boa parte doque digo sobre os pães aplica-se também aos doces. De modo geral, os franceses são tão bons em café da manhã quanto em almoço e jantar. O mesmo, porém, não pode ser dito quanto ao fast food, a velha arte de enganar o estômago. A pizza a que já aludi é bem ilustrativa quanto a esse ponto. O povo dessa terra é tão ruim com a má alimentação quanto é excelente com a boa. Posso resumir a situação dizendo que os melhores lanches da França são os do McDonald's, tanto pelo sabor quanto pelo preço. Eu, que detesto o McDonald's por razões vinculadas estritamente ao meu sistema digestório - pois minha língua e meu estômago, posso garantir, não ligam para questões ideológicas -, vi-me comendo lá mais frequentemente que em qualquer outro lugar. Há outras redes do mesmo tipo, francesas mesmo, como o Quick; entretanto, embora algumas delas ofereçam lanches maiores, o sabor tende a ser sensivelmente inferior. Todos os salgados que vi - inclusive os célebres croissants - eram pequenos, de aparência muito oleosa e pouco apetitosa, de modo que não julguei que valesse a pena pagar por eles. E as lanchonetes comuns oferecem lanches de tamanho razoável, mas bem pouco saborosos. O preço costuma ser algo em torno de cinco euros. E em alguns estabelecimentos o atendente nem mesmo se dá ao trabalho de esquentar sua mercadoria.

Não posso deixar de fazer também um comentário geral sobre as cinco vezes em que fui convidado para jantar ou almoçar em algum lar francês. A comida era leve e simples, e estava deliciosa em todas as ocasiões. Não cheguei a notar grandes diferenças no cardápio. Há, porém, dois detalhes dignos de menção. O primeiro é que os franceses não têm o hábito de tomar sucos ou refrigerantes como acompanhamento. Tomam vinho, e quem não quer vinho toma água. Eu gostaria de entender alguma coisa de vinhos para poder comentar mais extensamente a respeito, ou mesmo apenas para poder me lembrar de quais deles experimentei. Não sendo o caso, porém, sou obrigado a me contentar com essas poucas palavras a respeito, sem deixar de observar, contudo, que todos os vinhos que provei eram excelentes. E o segundo detalhe, que apreciei ainda mais, diz respeito aos já mencionados queijos, que os franceses têm o hábito de servir como uma espécie de sobremesa, numa bandeja contendo cinco ou seis tipos. Portanto, o cotidiano gastronômico dos franceses parece consistir de comida leve e saborosa, acompanhada de vinhos e queijos. Li recentemente que na França há quatrocentos tipos de vinho, e um queijo apropriado para acompanhar cada um deles. Não vi todo esse rigor no dia a dia, e nem de longe provei tamanha variedade. De maneira geral, porém, o panorama culinário desse país me agradou bastante.

O segundo tópico digno de nota é o clima. Já falei sobre a beleza do outono francês, e de como fiquei satisfeito por ter estado lá justamente durante essa estação; contei também que o sol daquele país não foi capaz de me deixar suado. Contudo, há mais a ser dito. Embora eu tenha permanecido na França por apenas um mês, e todo ele dentro de uma mesma estação, nem por isso deixei de experimentar certa diversidade climática. No primeiro sábado fui passear pela praia e pelo centro de Toulon vestindo apenas bermuda e camiseta, e o clima estava muito agradável: sol ameno, vento moderado e não gelado, céu azul com bem poucas nuvens. Na última semana o tempo estava cinzento, ventava muito, chovia todos os dias, várias horas por dia, e era impossível sair de casa com menos de dois casacos. O clima era um tanto deprimente, e se eu não estivesse avidamente interessado em aproveitar os últimos momentos da viagem - isto é, se houvesse perspectiva de permanecer na França por mais alguns meses com aquele clima horrível (e, na verdade, a tendência é ir piorando) -, creio que teria de fato ficado deprimido.

Mas não digo isso só por causa do clima. Um dos aprendizados mais importantes dessa viagem foi a descoberta de que gosto do Brasil mais do que eu mesmo supunha. Por mais deslumbrante que a França seja em muitos aspectos, ela é incapaz de aquecer o coração de um brasileiro. A viagem só foi maravilhosamente boa por ter sido curta. Senti falta de uma boa companhia, de ter com quem compartilhar os passeios e conversar longamente sem entraves linguísticos. Teria sido muito pior, é claro, se eu não fosse tão introvertido. Mesmo assim, creio que não gostaria de voltar sozinho à França, nem de ir sozinho a qualquer outro país.

É interessante ressaltar que a alteração climática a que me referi não é como as que estou acostumado a presenciar no Brasil. Aqui em São Carlos não é raro termos as quatro estações num único dia. Mesmo em outros lugares, porém, são comuns as mudanças mais ou menos bruscas de temperatura e outras variáveis - de um dia para o outro, por exemplo. Nada parecido com isso aconteceu na França: o processo foi tão gradual que só me dei conta dele depois de umas duas semanas.

Há um terceiro tópico de descrição não tão fácil e cuja natureza é psicológica, mas que creio ter ficado perfeitamente nítido em um evento proporcionado pela conjunção dos dois elementos acima mencionados, comida e clima. Num dia da última semana, almocei numa loja do KFC próxima ao campus. O KFC é parecido com o McDonald's, mas com duas importantes diferenças: todos os lanches são à base de frango, e as bebidas (refrigerantes, chá gelado ou suco) são fornecidas à vontade por um preço único, naquelas máquinas com torneirinhas. O próprio atendente fornece o copo no qual se bebe. Depois de enfrentar fila, fiz meu pedido, peguei o lanche e o copo e, não havendo lugar vago no interior do prédio, fui me sentar numa das mesinhas colocadas lá fora. Não estava chovendo, mas havia um vento fortíssimo, o qual prontamente levou o copinho de plástico, que eu ainda não tivera oportunidade de encher. Sem pensar duas vezes, deixei o lanche sobre uma das mesas e saí correndo atrás do precioso recipiente. Não foi uma tarefa fácil recuperá-lo, mas, depois de uma perseguição de dois ou três minutos, que me conduziu por todo o estacionamento, enfim alcancei meu objetivo ao me abaixar para apanhar o objeto buscado, que jazia enroscado sob um carro, e voltei ostentando meu troféu diante de uma plateia de quatro ou cinco famílias. Foi apenas nesse momento que constatei, não sem uma certa surpresa, que eu não estava nem um pouco constrangido.

Esse episódio ilustra o mais interessante fenômeno psicológico que me acometeu na França: a perda da vergonha de pagar mico. Fui forçado a perdê-la por razões estritamente práticas: eu poderia, é claro, ter me dirigido ao balcão, explicado o que houve e solicitado outro copo, se já não soubesse, com base na experiência das semanas precedentes, o quanto isso seria trabalhoso. Estimo que eu gastaria uns dez minutos no processo de formular mentalmente uma maneira de explicar o ocorrido em francês (após várias consultas ao dicionário que eu carregava o tempo todo) e fazer com que alguém me entendesse (pois a experiência me ensinou que aquilo que eu julgava ser uma explicação perfeitamente clara quase nunca o era de fato). Seria muito mais fácil e rápido simplesmente fazer o que fiz. Além disso, pagar mico num país estrangeiro cuja língua se ignora é algo tão frequente e inevitável que o constrangimento acaba por se desvanecer sem que cheguemos a nos dar conta, e somos acometidos por um sentimento que, se traduzido em palavras, seria algo assim: "Não sou daqui, não sei falar a língua dessas pessoas e não sei bem como me comportar neste ambiente. Não tenho obrigação alguma de evitar todos os micos. Fugir de tantos quanto puder é um desafio muito interessante e digno, mas não há grande problema nos fracassos. Ninguém é prejudicado por eles. Logo estarei bem longe daqui, e tudo isso que agora vivo será apenas uma lembrança engraçada. E é também exatamente isso que serei na memória desses que agora me vêem."