28 de janeiro de 2010

O Diabo e seu advogado francês

Hoje, pela primeira vez, farei uma resenha de um livro que não li. Bem, na verdade não é bem isso, mas a vaga semelhança entre esse absurdo e o que pretendo fazer de fato tornou irresistível a ideia de começar o texto dessa forma. Mais de um ano atrás, minha então namorada - e atualmente noiva - me deu um livro que parecia interessante, mas cuja leitura fui adiando, movido por uma certa preguiça devida sobretudo ao fato de que o exemplar estava em espanhol. Mais recentemente, encontrei num sebo de Ribeirão Preto a mesma obra em português, a um preço acessível, e comprei-a. Trata-se de um livro do filósofo francês Jean-François Revel, que escreveu muito sobre política, arte e literatura. Eu sabia bem pouco sobre o autor além do fato de que ele escreveu um livro célebre, L'obsession anti-américaine: son fonctionnement, ses causes, sas inconsequences, que eu, aliás, ainda não li, mas sei que é uma crítica ao antiamericanismo idiota da Europa Ocidental. Mas desse livro que agora tenho em mãos, intitulado Nem Marx nem Jesus, publicado em 1970, eu não tinha a menor ideia do que esperar. No entanto, os títulos - do livro e dos capítulos - me pareceram interessantes. Cheguei, então, ao prefácio de treze páginas escrito por uma tal Mary McCarthy, de quem eu nunca havia ouvido falar. Ela fala algo sobre a vida de Revel e de sua obra pregressa, e em seguida se posiciona a respeito de algumas de suas opiniões. Algo sobre a própria prefaciadora pode ser inferido claramente a partir daí: é amiga pessoal de Revel, boa escritora, americana e esquerdista. Resumo-a em tão poucas palavras porque são as ideias do próprio Revel que devem ocupar o centro das atenções neste post, e algumas delas transparecem nos comentários de sua amiga.

O livro, ao que tudo indica, é sobre política, e as posições políticas de Revel são bastante incomuns entre os intelectuais franceses: nesse país em que o esquerdismo e o conservadorismo gaullista faziam uma oposição política e cultural comum aos Estados Unidos, ele surgiu para, na condição de autêntico advogado do diabo, defender a grande potência do Ocidente. Outros exemplos citados por Mary McCarthy confirmam a impressão de que Revel nutria o hábito de defender tudo quanto era tido como evidente de maneira unânime. "Parece, às vezes, que Revel, em criança, foi educado numa escola de debates onde o treino consistia em defender a negativa de afirmações tão evidentes e inatacáveis como 'a Terra é redonda', 'Proust era um snob', 'o ar puro é bom para a saúde', 'o trabalho desenvolve o cérebro', etc.". Mas, segundo ela, seu amigo "apenas se preocupa com que sua agressividade atinja a cultura respeitável e as opiniões preconcebidas". Assim, parece que, de alguma forma, a obra de Revel já continha certos elementos de sua crítica ao antiamericanismo francês, e isso mais de trinta anos antes que fosse publicado o livro destinado exclusivamente a combater essa tendência.


Se for correta a descrição feita por sua amiga americana - e parece que é -, o filósofo francês de modo algum pode ser considerado um conservador; ou, pelo menos, não podia há quarenta anos. Embora fosse crítico ferrenho do socialismo, mesmo em suas vertentes mais moderadas, Revel se colocava declaradamente no campo dos intelectuais que viam a revolução como uma coisa ótima. Como pode ele, então, defender o baluarte do capitalismo, do imperialismo e do espírito reacionário? A contradição é bem menor do que parece, visto que o propósito do livro é justamente dissolver, na mente do leitor, os clichês da propaganda esquerdista e sustentar, com firmeza e seriedade, o que diz já na sentença inicial do livro: "A revolução do século XX terá lugar nos Estados Unidos". Mary McCarthy comenta: "é indispensável ser francês para receber todo o impacto, para ter uma 'reação visceral'. Desde que alguém aprendeu a contar até dez e a soletrar g-a-t-o, ficou com a ideia bem firme de que os E.U.A. são a cidadela do imperialismo, do racismo, da vulgaridade e do conformismo". A autora do prefácio cita esse início bombástico como ilustração do método argumentativo de Revel: "Caracteristicamente, nas suas primeiras páginas ele se arrisca a ser retirado do palco numa camisa de força".


O prefácio fornece uma prévia dos argumentos usados por Revel para defender sua tese, que devia soar tão implausível aos esquerdistas franceses de então quanto aos esquerdistas brasileiros de hoje e sempre. A segunda sentença do livro já dá um passo nesse sentido, e Mary McCarthy também fez questão de citá-la: "Só lá poderá ela ter lugar", disse ele, imediatamente após declarar que a revolução ocorreria nos Estados Unidos. Na verdade, conforme nos é explicado, o pensador francês não crê que a "segunda revolução americana" (título do primeiro capítulo), como a chama, ocorrerá e triunfará inevitavelmente, pois não compartilha da crença no determinismo histórico do marxismo. Apenas considera impossível que ocorra em qualquer outro lugar, e, a julgar pelo índice, parece que parte do livro é dedicada à defesa desta tese: em nenhum outro canto do mundo os revolucionários possuem aquela originalidade capaz de provocar mudanças profundas e autênticas na estrutura da sociedade, e nenhum outro país possui o clima cultural capaz de fomentá-la.


Mary McCarthy faz ainda algumas críticas ao pensamento de Revel. Basicamente, ela crê que seu otimismo com relação aos Estados Unidos é um tanto exagerado, parecendo derivar sobretudo do fato de que o antiamericanismo é quase uma unanimidade na França, e Revel vive para contrariar unanimidades. Além disso, ela considera que o termo "revolução" é utilizado por ele de modo vago e algo inapropriado; uma palavra mais branda como "reforma" seria, segundo ela, mais correta, inclusive por não dar a entender necessariamente um rompimento violento e súbito com o passado e o presente. Mas não me deterei muito nessas questões. Tive uma grata surpresa ao terminar a leitura do comentário de McCarthy e, virando a página, encontrar o início da réplica de Revel às palavras dela. Em nove páginas, redigidas em março de 1971, ele presta alguns esclarecimentos e responde às críticas de sua amiga de modo a lançar mais luz sobre a natureza de suas ideias sem que, no entanto, o quadro pintado por ela possa ser considerado equivocado, sobretudo quanto aos pontos que destaquei até aqui.


Revel defende seu otimismo quanto aos revolucionários americanos contrastando-os com os de outras nações, sobretudo os europeus ocidentais em geral e franceses em particular, que pecam por falta de criatividade e iniciativa. Ele considera que mesmo o maio de 1968 foi inspirado nas rebeliões estudantis americanas dos anos anteriores. O filósofo também se propõe a reexaminar a noção de revolução predominante na esquerda e substituí-la por um conceito mais amplo, e é por isso que não se importa em especificar se o fenômeno revolucionário se dá "lenta ou brutalmente, temporária ou permanentemente, pela revolução ou por reformas, com violência ou por aceitação passiva - esses métodos serão determinados pelo contexto histórico particular". É por isso que Revel se dispõe a aceitar como positivas e autenticamente revolucionárias certas mudanças que o esquerdista típico vê como insatisfatórias, insuficientes ou mesmo alienadoras.


Revel provavelmente pode ser considerado um liberal, e isso constitui boa parte da razão pela qual tanto conservadores quanto esquerdistas podem endossar entusiasticamente certas declarações suas e, ao mesmo tempo, repudiar muitas outras. Nele a fidelidade ao espírito revolucionário é mais evidente; ele se parece mais com um discípulo autêntico da Revolução Francesa que qualquer outro liberal que eu já tenha lido - muito embora, é claro, eu não tenha lido tantos assim. O progressismo de Revel se manifesta no fato de que ele vê as revoluções como fenômenos essencialmente bons e construtivos; se se opõe ao comunismo e outras formas de socialismo, é apenas por não crer que a esquerda tradicional seja capaz de gerar uma revolução autêntica; quase todas revoluções, diz ele, deixam as coisas como estão. (No que eu discordo: penso as revoluções deixam as coisas muito piores.) Nada disso faz de Revel um sujeito mais amigável ou mais correto que os liberais reacionários que estou acostumado a ver por aí, que gastam quase todo o seu tempo e seus esforços em demonstrar a ineficiência econômica do centralismo estatal, quando não chegam a defender que o livre mercado resolverá por si todos os problemas do mundo. Como eu dizia, isso não o torna mais amigável ou mais correto que tais sujeitos, mas ao menos faz dele mais interessante. Em ambientes dominados pela hegemonia da esquerda, como no Brasil atual, o lado revolucionário do liberalismo político costuma ficar menos evidente. Ler Revel é bom para evitar que nos esqueçamos disso; e, ao mesmo tempo, ele tem muito a ensinar. O francês parece ser o tipo de sujeito que pensa com clareza, mesmo quando pensa errado. E isso basta para colocá-lo muito acima de boa parte do mundo acadêmico de hoje.


Revel parece, em resumo, uma interessante combinação de ideias; algumas corretas, outras equivocadas, mas todas expressas de maneira clara, elegante e apaixonada. Eis meus motivos para crer que a leitura de Nem Marx nem Jesus será proveitosa e desafiadora. Tenho uma impressão preliminar de que, embora seja provável que ele confundirá uma porção de coisas, considerando bons alguns fatos que são ruins e vice-versa, a essência do que ele diz é correto e pertinente: parece que a maior parte das grandes transformações que têm conquistado o mundo vem dos Estados Unidos ou, pelo menos, passa por lá. E isso inclui as boas, as ruins, as boas que muitos consideram ruins e as ruins que muitos consideram boas. A grande potência do norte é ao mesmo tempo o laboratório da revolução e a cidadela da reação, como disse o próprio Revel. Todas as correntes políticas do Ocidente encontram ali muito o que admirar e muito o que repudiar.


Adendo:
escrevi o texto acima há alguns meses. Concluí a leitura do livro em dezembro e devo dizer que, se tivesse de escrever hoje um comentário sobre sua introdução, teria adotado outras ênfases. A despeito disso, não há correções a fazer.

Um comentário:

Mulher na Polícia disse...

Parece um menino que come uma fruta pela primeira vez. E olha pra casca, e sente o cheiro, o peso, a textura. E posterga a mordida... E no final, pra minha surpresa limpa a boca e diz que já comeu...

Inusitado!