8 de março de 2010

Cadeiras transcendentais - parte 2

5. Os termos "matéria" e "qualidade" designam, na terminologia de Husserl, os dois elementos essenciais que compõem um ato intencional. Designa-se sob o primeiro nome aquilo que determina a direção do ato, isto é, o objeto que lhe serve de alvo. Além disso, a matéria especifica também o modo de referência a esse objeto, isto é, o aspecto sob o qual o objeto é visado; isso é importante, visto que um mesmo objeto pode ser abordado sob muitos aspectos. Posso, por exemplo, pensar em Pelé como "o Pelé", ou como "Edson Arantes do Nascimento", ou como "o melhor jogador de futebol de todos os tempos", ou ainda como "o sujeito que fez o gol da vitória no jogo contra o País de Gales na Copa de 1958". Posso também direcionar meu pensamento a esse mesmo objeto de maneira totalmente não-verbal, lembrando-me dele vestido com a camisa da seleção, ou com a do Santos, ou de algum gol feito por ele. Cada um desses atos psíquicos visa um mesmo objeto sob diferentes aspectos. Esses aspectos são chamados por Husserl de "perfis", em analogia aos vários ângulos sob os quais se pode contemplar visualmente um objeto.

A qualidade, por sua vez, designa aquele elemento do ato psíquico que não possui relação intrínseca com o objeto visado, ou seja, é subjetivo. Duas pessoas podem pensar em Pelé da mesma maneira, como "o sujeito que fez o gol da vitória no jogo contra o País de Gales na Copa de 1958"; mas uma dessas pessoas pode se lembrar disso com alegria e a outra, talvez por ser galesa, fazê-lo com pesar. Ao mesmo tempo, é possível que atos da mesma qualidade se associem a perfis ou objetos inteiramente distintos.

Outra distinção importante a ser feita é aquela entre os conceitos de "conteúdo" e "apreensão". O primeiro representa aquilo que, num ato intencional, é dado de modo objetivo (como na percepção sensorial direta, por exemplo). A percepção do objeto em questão, embora evidentemente condicionada pelas características do próprio objeto, não está, porém, inteiramente sujeita a elas. Um mesmo objeto pode ser apreendido sob diferentes maneiras, conforme o modo sob o qual é encarado, e esse modo de percepção é determinado pela própria consciência que apreende. Esse fato pode ser ilustrado por aquelas bem conhecidas figuras que admitem dupla interpretação: uma moça se transforma numa velha, um pato num coelho, e assim por diante. O fato de vermos uma coisa e não outra se deve a uma diferença no modo de apreensão, e não no conteúdo, que permanece o mesmo enquanto passamos de uma alternativa a outra.


Dá-se o mesmo com as palavras desta frase, que podem ser encaradas como a tentativa de um físico de explicar algum aspecto da fenomenologia husserliana, mas também podem ser consideradas apenas em si mesmas, como uma interessante distribuição de cores pelos pixels do monitor. O leitor pode, de acordo com seus interesses do momento, considerar o texto sob cada um desses aspectos. A distinção entre conteúdo e modo de apreensão esclarece o fato, mencionado anteriormente, de que um signo não é signo por suas propriedades intrínsecas, e sim mediante uma associação efetuada pela consciência, a qual o apreende de maneira tal que ele passa a remetê-la a um objeto exterior a si próprio. Uma mudança no modo de apreensão pode fazer com que a consciência deixe de lado essa associação e o considere apenas em si mesmo; nesse caso, seu caráter de signo, externamente atribuído, desaparece por completo, deixando o conteúdo inalterado.

Um mesmo objeto pode, dessa forma, ser apreendido de diferentes maneiras no que diz respeito a seu caráter signitivo. Em um extremo está a apreensão puramente perceptiva, que considera o objeto apenas em si mesmo, sem atribuir-lhe qualquer significado que remeta a outra coisa; no extremo oposto está a apreensão puramente signitiva, que é, por sua vez, inteiramente arbitrária, no sentido de que abstrai de quaisquer características que o objeto possua, visto que a qualidade de signo, sendo puramente convencional, não mantém com elas relação alguma. Entre esses extremos encontra-se a apreensão imaginativa, que consiste em fazer com que um objeto represente outro, de modo que o primeiro remeta ao segundo sem, no entanto, fazê-lo de maneira arbitrária. O ato imaginativo associa imagens a objetos através de alguma semelhança que possa haver entre ambos, constituindo, portanto, um meio termo entre a percepção pura, que elimina a própria distinção entre objeto e imagem, e a signição pura, que prescinde de toda semelhança entre os dois. Convém lembrar que o uso do termo "imagem" não implica que o contato com o objeto seja visual, ou mesmo sensorial em sentido amplo; a semelhança em questão pode ser de qualquer tipo.

6. Como se pode notar, todo o problema da epistemologia reside, segundo Husserl, no fato de que os objetos do conhecimento estão fora da consciência. Como pode a mente conhecer algo que não faz parte dela? É esse o sentido que possuem, na terminologia adotada por ele, os termos "transcendência" e "imanência". Os atos psíquicos são imanentes, pois ocorrem no interior da consciência, e por isso mesmo o conhecimento deles não é visto como problemático, e sim como forçosamente imediato, por ser parte da própria consciência. Mas o conhecimento de cadeiras e outros objetos transcendentes é o mistério fundamental da filosofia. O conhecimento verdadeiro ocorre na medida em que o acesso ao objeto transcendente se dá sem qualquer mediação e o objeto é apresentado à consciência de maneira pura. O vivido psíquico que se dá ante o reconhecimento da correspondência entre o objeto e aquilo que dele é percebido é denominado "evidência". Esta será tanto maior quanto menos relevantes forem os aspectos signitivos e imaginativos de um ato, isto é, quanto mais próximo for ele do segundo extremo, o das percepções puras.

7. Mais tarde, porém, Husserl abandonou a noção de evidência, por considerá-la incompatível com o princípio de ausência de pressupostos. A adesão a esse princípio pode ser considerada uma continuação dos esforços dos velhos filósofos gregos para estabelecer aquilo que eles denominavam "filosofia primeira", a qual deve fundamentar todo conhecimento possível. Pelo fato mesmo de ser a filosofia primeira, esse fundamento deve evitar todo e qualquer pressuposto não fundamentado, pois não fazer isso equivaleria a condicionar a validade da filosofia primeira a algo não demonstrado e, por conseguinte, demolir por completo sua aspiração a fundamento absoluto e indubitável. (Aqui se revela também um certo cartesianismo na filosofia fenomenológica, e Husserl reconhece essa influência de maneira explícita.) À luz dessas considerações, o pai da fenomenologia se deu conta de que a epistemologia baseada na noção de evidência remete a uma semelhança não demonstrada entre o objeto visado pelo ato intencional e aquilo que a mente percebe acerca desse objeto. Por conseguinte, o problema fundamental da teoria do conhecimento não podia ainda ser dado como resolvido.

8. Prosseguindo, portanto, em suas investigações, Husserl se viu forçado a uma mudança razoavelmente profunda em suas concepções. Lembremo-nos de que a distinção entre transcendência e imanência com a qual se lidou até aqui diz respeito à diferença entre o que está dentro e o que está fora da consciência: a imanência é composta por atos psíquicos e objetos tais como se encontram na consciência, enquanto os objetos transcendentes são os que se encontram fora dela. Nesses termos foi formulado todo o problema do conhecimento, isto é, na questão de saber como se dá o acesso ao transcendente. Mais tarde, porém, Husserl se deu conta de que essa maneira algo kantiana de encarar a situação é enganosa. Ele já demonstrara que existe forçosamente um contato sem mediação entre a consciência e o objeto do ato intencional. Porém, a consciência jamais apreende o objeto em sua totalidade num dado instante, e sim apenas um perfil do objeto, isto é, uma das muitas maneiras pelas quais ele pode ser apresentado.

É importante ressaltar que essa limitação de nosso modo de apreensão é inevitável, visto ser intrínseca ao modo de ser de nossa consciência. É válida, por conseguinte, tanto para os objetos transcendentes quanto para os imanentes. Quando penso numa pessoa de minhas relações, por exemplo, necessariamente focalizo um aspecto dela, dentre muitos que estão à disposição em minha memória, conhecimentos e impressões sobre essa pessoa. E isso, convém enfatizar, independe de se a pessoa tal como se apresenta em minha mente corresponde ou não à pessoa real. Estamos tratando apenas do aspecto imanente, de modo que essa consideração permaneceria inalterada se eu estivesse pensando em um personagem fictício inventado por mim mesmo.

Permanece universalmente válida, portanto, a proposição de que todo objeto, transcendente ou não, sempre se apresenta à consciência em um perfil bem determinado e restrito. A questão a ser esclarecida, portanto, é: como a consciência chega a reconhecer o objeto como uma unidade por trás de tão grande diversidade de manifestações? Como discerne ela o nexo entre todos os perfis, mesmo os mais diferentes entre si, atribuindo-os a uma mesma fonte?

A questão tem sua razão de ser. Quando olho para uma árvore frondosa, não vejo tudo o que ela é, e sequer chego a ver tudo o que ela é exteriormente. Posso, por exemplo, não ser capaz de ver muitos de seus galhos, ramos e folhas, a saber, os que estão do lado oposto àquele em que me encontro. Entretanto, ainda que jamais tenha visto aquela árvore, sei que ela tem galhos, ramos e folhas do outro lado. Muitas outras características das árvores me vêm à mente, e é graças a isso que sou capaz de dizer que esse objeto que está diante de meus olhos é uma árvore.

Portanto, embora o ato intencional seja incapaz de abarcar muitos perfis simultaneamente, ele é composto por algo mais que o próprio perfil. O ato puramente perceptivo, que Husserl julgava ser a fonte do conhecimento perfeito, revela-se como uma pura e simples impossibilidade. Isso fica demonstrado pelo fato de que a consciência discerne um nexo nas informações que lhe chegam pelos sentidos. Se não fosse esse o caso, eu jamais chegaria a desconfiar que todas essas sensações visuais indicam a presença de uma árvore. Esse nexo é objetivo, está presente no objeto, mas de nenhuma maneira se reduz ao perfil que ora se me apresenta.

Tudo isso levou Husserl a reformular o problema do conhecimento. A percepção pura é impossível; e, mesmo que fosse possível, não revelaria senão um único perfil do objeto. Portanto, a questão está mal formulada: a oposição mais fundamental não é entre o que está dentro e o que está fora da consciência, e sim entre o que é imediatamente apresentado a ela e aquilo que extrapola o dado, não importando se objeto é real, ideal ou psíquico. A apresentação do objeto visado sempre "em perfil" não é uma característica peculiar dos objetos transcendentes, e sim uma propriedade universal dos seres em todos os níveis da realidade.

2 de março de 2010

Cadeiras transcendentais - parte 1

No último semestre de minha graduação cursei uma disciplina chamada Tópicos de filosofia contemporânea. Fiz isso movido pela conjunção de vários fatores: 1. eu precisava cursar uma disciplina qualquer para cumprir os requisitos do curso e obter o diploma; 2. já tinha cursado todas as disciplinas interessantes do Departamento de Física, e as de engenharia não me interessavam nem um pouco; 3. tinha de ser uma disciplina com aulas à noite, para não prejudicar meu estágio; 4. eu já havia tido aula com o Bento Prado Neto, professor dessa disciplina, ainda no primeiro ano, em Filosofia da ciência, e achei-o um ótimo professor; e 5. visto que o nome da disciplina era demasiado impreciso, tive de entrar em contato com o professor para descobrir do que se tratava, e foi assim que soube que era sobre a filosofia de Edmund Husserl, um sujeito que eu já vinha querendo conhecer melhor desde algum tempo antes. Na época eu nem sabia que Husserl foi um judeu convertido ao protestantismo luterano; aliás, bem pouca gente parece saber disso.

Inscrevi-me, fui deferido e, a despeito de uma série de ocupações - outras disciplinas, estágio, monografia, igreja, coral, família e amigos -, tive um aproveitamento razoável do curso e apreciei muito o que aprendi ali. Fiz duas provas, das quais a segunda foi feita em casa, no computador, de modo que pude guardá-la. Ela consistia simplesmente em redigir respostas a oito perguntas sobre as ideias do pai da fenomenologia. Lamento apenas ter guardado somente as respostas, e não as perguntas. A despeito disso, ainda consigo compreender o que escrevi, e pretendo agora transcrever essas respostas aqui. Publico-as abaixo com uma quantidade considerável de adaptações, as quais consistem principalmente de acréscimos destinados a ilustrar ou explicar melhor certos tópicos. Também corrigi erros de concordância e tentei tornar o texto mais apresentável de um ponto de vista puramente estético, um fator que hoje me preocupa mais que há quatro anos.


As respostas que escrevi padecem de algumas limitações. A primeira é que não posso garantir que estejam todas inteiramente corretas, embora, a julgar pela nota que recebi, eu considere provável que estejam corretas em seus pontos essenciais. (Não me perguntem a nota, pois já me esqueci, e não vou procurar meu histórico escolar só para fazer este post.) E a segunda é que minhas respostas consistem em meros recortes da filosofia de Husserl, e não numa exposição sistematizada, embora haja alguma continuidade entre as respostas. Isso se agrava pelo fato de que o filósofo em questão mudou de posição muitas vezes sobre muitos assuntos, de modo que ele pode ter abandonado algumas das posições aqui descritas. Depois que concluí essa disciplina, andei estudando alguma coisa a respeito, mas não mais que um livro e, no máximo, uma dezena de artigos. A despeito disso, a fenomenologia é um assunto que julgo muito interessante e que pretendo voltar a estudar futuramente. Como, porém, não está entre minhas prioridades do momento, deixo aqui este texto como um lembrete para mim mesmo. Ele será dividido em duas postagens, sendo que apenas na próxima o título será esclarecido.


1.
A palavra "signo" possui, para Husserl, dois sentidos diferentes, a indicação e a significação, ambos os quais dizem respeito à comunicação entre duas mentes. Na comunicação, uma delas transmite signos e a outra os recebe. (É provável que ambas desempenhem os dois papéis simultaneamente, mas isso não vem ao caso no momento.) O signo indicativo é aquele que fornece ao indivíduo que o recebe o acesso ao estado de consciência de quem o emite. Trata-se, porém, de um acesso indireto, pois o signo indicativo é não-discursivo por natureza. Um gesto, um tom de voz ou uma expressão facial podem revelar algo sobre as emoções de quem fala, ainda que essa pessoa não as expresse verbalmente ou mesmo não tenha intenção consciente de revelá-las. Já o signo significativo é expresso de maneira discursiva, pressupondo assim que quem o emite faz isso de maneira consciente. Esse segundo tipo de signo identifica-se com o conteúdo do discurso, abstraindo-se os demais aspectos, menos diretos, envolvidos numa dada comunicação. Embora ambos os tipos estejam presentes na comunicação humana, são por natureza inconfundíveis e complementares. Alguém pode dizer "Lula venceu as eleições" manifestando alegria, inveja, desprezo, desespero ou indiferença diante desse fato. Todas essas diferenças se situam no plano da indicação, ao passo que o conteúdo significativo permanece idêntico.

2.
A distinção fundamental entre os signos indicativos e os significativos tem sua origem na distinção igualmente fundamental entre o estado psíquico do indivíduo que formula uma expressão discursiva e o conteúdo dessa expressão. A emissão de um signo significativo pressupõe a intenção, em seu autor, de atribuir-lhe esse significado, de modo que é necessário um ato psíquico que dê significação a esse signo. O sentido (ou essência significativa) daquele ato, porém, não é um mero ato psíquico do indivíduo, pois possui um caráter objetivo e universal, embora o ato que o formula seja subjetivo e particular, bem localizado no tempo e no espaço. Um enunciado qualquer (como, por exemplo, "Lula venceu as eleições") traz em si algo que independe do estado da mente que o produziu. Se muitas pessoas disserem isso em locais, momentos, circunstâncias e estados mentais e emocionais inteiramente diferentes, nem por isso deixa de haver plena identidade de signo significativo. Com base nessa percepção, Husserl defende a impossibilidade de se reduzir o sentido de um discurso (isto é, de um signo significativo) aos atos psíquicos de quem quer que seja. Quando alguém diz que zero é diferente de um, o faz em virtude de um ato psíquico subjetivo e localizado, mas esse ato remete a algo que, em si mesmo, nada tem de subjetivo ou localizado: os números zero e um e a diferença entre eles.

Daí decorre que Husserl sustenta a distinção entre duas categorias de objetos imateriais. Essa distinção e essa irredutibilidade, porém, são fatais para o psicologismo, cuja tese central é justamente a de que as ideias, sendo produto de atos psíquicos, constituem um subconjunto da psique humana, sendo, portanto, redutíveis à psicologia. Para um psicologista, todo conteúdo de um ato psíquico (como um pensamento, por exemplo) pode ser investigado e explicado pelas leis da psicologia. Os números zero e um, não sendo materiais, só podem ser meros fenômenos psíquicos. De modo que, em última análise, a matemática estaria fundamentada apenas na psicologia do homem. Husserl sustentou essa posição no início, mas depois abriu mão dela, principalmente sob influência das críticas de Gottlob Frege. Passou, portanto, a aceitar a tese de que os objetos matemáticos são objetivos, embora não materiais, estabelecendo assim uma divisão da realidade em três reinos: material, psíquico e ideal. É esse caráter objetivo dos objetos ideais que Frege desejava enfatizar ao dizer que
"o número quatro é tão psíquico quanto o Mar do Norte".

3.
A despeito da existência de uma importante diferença entre a abordagem fenomenológica da psicologia e as doutrinas psicológicas dominantes na época, a proposta de Husserl mantém-se fiel, de certa forma, à psicologia descritiva. Ao negar o psicologismo pela admissão da realidade do reino das ideias, com o qual a consciência lida constantemente, Husserl se contrapõe também à psicologia empirista, que insiste em tratar a consciência como qualquer outro objeto da natureza e tentar compreendê-la por métodos essencialmente idênticos - ou análogos, pelo menos - aos das ciências experimentais.

Entretanto, a psicologia fenomenológica não prescinde da experiência, se essa palavra for tomada em sentido amplo. Ou seja: não se trata de experiência no sentido de "experimento", o sentido empirista e científico, e sim num sentido mais semelhante ao que temos em mente quando falamos em "experiência de vida". A diferença, para Husserl, reside no fato de que, se é verdade que a consciência humana não pode ser estudada experimentalmente à maneira da física, é também verdade que nossa relação com os objetos desta não é semelhante à nossa relação com os objetos daquela. Como disse C. S. Lewis num outro contexto,
"nós não apenas estudamos homens; nós somos homens". E o fato de que a categoria de objetos estudada pela psicologia inclui o próprio pesquisador abre-lhe possibilidades que não estão disponíveis para um astrônomo ou um entomólogo. A psicologia, segundo Husserl, deve se basear num método filosófico de compreensão dos atos psíquicos do homem, partindo de nossa experiência de nós mesmos enquanto seres conscientes, isto é, da autoconsciência e da introspecção, que evidentemente não se aplicam aos objetos do estudo científico ordinário.

4.
Uma das questões mais importantes que uma filosofia da psique humana deve responder é esta: como se dá o contato entre a mente e um objeto exterior a ela? A tradição filosófica ocidental tem, sobretudo desde Kant, negado de maneira quase unânime a apreensão direta do objeto pela consciência. Muitos preferiram admitir que a consciência entra em contato com o objeto mediante um intermediário, uma projeção ou representação do objeto na própria consciência. As teorias que buscam elucidar esse processo são denominadas "teorias da representação", e se dividem em duas versões. A primeira afirma que o que é representado na consciência é algo como uma imagem ou retrato do objeto: não idêntica a ele, mas semelhante em alguma medida. A segunda nega a necessidade dessa semelhança e defende uma representação puramente signitiva, ou seja, simbólica. A diferença entre a imagem e um signo é sugerida por esses mesmos substantivos: um elefante desenhado representa o elefante real porque se assemelha a ele, e tanto mais quanto maior seja a habilidade do desenhista. A palavra "elefante" não se parece com um elefante, mas o representa mediante uma convenção estabelecida, uma associação livremente efetuada pela mente; trata-se, portanto, de um signo. Cabe lembrar, porém, que as imagens e os signos não precisam ser visuais, e os objetos representados sequer precisam ser materiais. O mesmo princípio se estende a tudo o que se situa fora da consciência.

Husserl rejeita todas as teorias da representação, imaginativas ou signitivas. Recusa-se a admitir que o ato intencional da consciência não é direcionado diretamente ao próprio objeto, que ele não visa o objeto senão através de uma representação, e que esta é o que realmente é projetado na consciência. Considera falha a tese da representação por imagens, uma vez que, ao negar a possibilidade de contato entre a consciência e o objeto, ela destrói o fundamento da semelhança que caracteriza a imagem como tal. Se a consciência reconhece uma certa imagem como representação de um certo objeto, é porque já teve algum contato com esse objeto. Seria absurdo supor o contrário, como se fosse possível reconhecer um rosto nunca visto. Se não houve jamais um contato direto entre o objeto e a consciência, não faz sentido esperar que a imagem formada nesta última tenha alguma semelhança com o primeiro. Seria necessário postular uma imagem da imagem, intermediária entre a imagem e o objeto, e também uma outra imagem para explicar a origem dessa segunda imagem, e assim por diante, conduzindo a um regresso ao infinito que é impotente, no fim das contas, para justificar a presença de qualquer semelhança entre imagens e objetos.


Já a dificuldade da teoria da representação signitiva consiste em que a qualidade de signo não é inerente a nenhum objeto. O conjunto de sinais gráficos ou sons contidos na palavra "elefante", por exemplo, não tem em si nenhuma qualidade intrínseca que o associe necessariamente ao maior mamífero terrestre. Essa associação tem sua razão de ser, sem dúvida, mas é inteiramente arbitrária do ponto de vista ontológico ou epistemológico. Assim, é impossível que o signo seja estabelecido como representação de um objeto sem um ato intencional da consciência que lhe atribua esse estatuto. A presença, na consciência, de um signo como representante e mediador de um objeto não pode ser explicada, a menos que tenha havido um contato de outra natureza entre este e aquela.


Husserl sustenta, portanto, que o banimento completo desse contato direto em favor de teorias da representação precisa ser evitado, e a existência de alguma forma de apreensão direta do objeto deve ser admitida.
"Rumo às coisas mesmas" é um dos lemas fundamentais de sua filosofia.