2 de março de 2010

Cadeiras transcendentais - parte 1

No último semestre de minha graduação cursei uma disciplina chamada Tópicos de filosofia contemporânea. Fiz isso movido pela conjunção de vários fatores: 1. eu precisava cursar uma disciplina qualquer para cumprir os requisitos do curso e obter o diploma; 2. já tinha cursado todas as disciplinas interessantes do Departamento de Física, e as de engenharia não me interessavam nem um pouco; 3. tinha de ser uma disciplina com aulas à noite, para não prejudicar meu estágio; 4. eu já havia tido aula com o Bento Prado Neto, professor dessa disciplina, ainda no primeiro ano, em Filosofia da ciência, e achei-o um ótimo professor; e 5. visto que o nome da disciplina era demasiado impreciso, tive de entrar em contato com o professor para descobrir do que se tratava, e foi assim que soube que era sobre a filosofia de Edmund Husserl, um sujeito que eu já vinha querendo conhecer melhor desde algum tempo antes. Na época eu nem sabia que Husserl foi um judeu convertido ao protestantismo luterano; aliás, bem pouca gente parece saber disso.

Inscrevi-me, fui deferido e, a despeito de uma série de ocupações - outras disciplinas, estágio, monografia, igreja, coral, família e amigos -, tive um aproveitamento razoável do curso e apreciei muito o que aprendi ali. Fiz duas provas, das quais a segunda foi feita em casa, no computador, de modo que pude guardá-la. Ela consistia simplesmente em redigir respostas a oito perguntas sobre as ideias do pai da fenomenologia. Lamento apenas ter guardado somente as respostas, e não as perguntas. A despeito disso, ainda consigo compreender o que escrevi, e pretendo agora transcrever essas respostas aqui. Publico-as abaixo com uma quantidade considerável de adaptações, as quais consistem principalmente de acréscimos destinados a ilustrar ou explicar melhor certos tópicos. Também corrigi erros de concordância e tentei tornar o texto mais apresentável de um ponto de vista puramente estético, um fator que hoje me preocupa mais que há quatro anos.


As respostas que escrevi padecem de algumas limitações. A primeira é que não posso garantir que estejam todas inteiramente corretas, embora, a julgar pela nota que recebi, eu considere provável que estejam corretas em seus pontos essenciais. (Não me perguntem a nota, pois já me esqueci, e não vou procurar meu histórico escolar só para fazer este post.) E a segunda é que minhas respostas consistem em meros recortes da filosofia de Husserl, e não numa exposição sistematizada, embora haja alguma continuidade entre as respostas. Isso se agrava pelo fato de que o filósofo em questão mudou de posição muitas vezes sobre muitos assuntos, de modo que ele pode ter abandonado algumas das posições aqui descritas. Depois que concluí essa disciplina, andei estudando alguma coisa a respeito, mas não mais que um livro e, no máximo, uma dezena de artigos. A despeito disso, a fenomenologia é um assunto que julgo muito interessante e que pretendo voltar a estudar futuramente. Como, porém, não está entre minhas prioridades do momento, deixo aqui este texto como um lembrete para mim mesmo. Ele será dividido em duas postagens, sendo que apenas na próxima o título será esclarecido.


1.
A palavra "signo" possui, para Husserl, dois sentidos diferentes, a indicação e a significação, ambos os quais dizem respeito à comunicação entre duas mentes. Na comunicação, uma delas transmite signos e a outra os recebe. (É provável que ambas desempenhem os dois papéis simultaneamente, mas isso não vem ao caso no momento.) O signo indicativo é aquele que fornece ao indivíduo que o recebe o acesso ao estado de consciência de quem o emite. Trata-se, porém, de um acesso indireto, pois o signo indicativo é não-discursivo por natureza. Um gesto, um tom de voz ou uma expressão facial podem revelar algo sobre as emoções de quem fala, ainda que essa pessoa não as expresse verbalmente ou mesmo não tenha intenção consciente de revelá-las. Já o signo significativo é expresso de maneira discursiva, pressupondo assim que quem o emite faz isso de maneira consciente. Esse segundo tipo de signo identifica-se com o conteúdo do discurso, abstraindo-se os demais aspectos, menos diretos, envolvidos numa dada comunicação. Embora ambos os tipos estejam presentes na comunicação humana, são por natureza inconfundíveis e complementares. Alguém pode dizer "Lula venceu as eleições" manifestando alegria, inveja, desprezo, desespero ou indiferença diante desse fato. Todas essas diferenças se situam no plano da indicação, ao passo que o conteúdo significativo permanece idêntico.

2.
A distinção fundamental entre os signos indicativos e os significativos tem sua origem na distinção igualmente fundamental entre o estado psíquico do indivíduo que formula uma expressão discursiva e o conteúdo dessa expressão. A emissão de um signo significativo pressupõe a intenção, em seu autor, de atribuir-lhe esse significado, de modo que é necessário um ato psíquico que dê significação a esse signo. O sentido (ou essência significativa) daquele ato, porém, não é um mero ato psíquico do indivíduo, pois possui um caráter objetivo e universal, embora o ato que o formula seja subjetivo e particular, bem localizado no tempo e no espaço. Um enunciado qualquer (como, por exemplo, "Lula venceu as eleições") traz em si algo que independe do estado da mente que o produziu. Se muitas pessoas disserem isso em locais, momentos, circunstâncias e estados mentais e emocionais inteiramente diferentes, nem por isso deixa de haver plena identidade de signo significativo. Com base nessa percepção, Husserl defende a impossibilidade de se reduzir o sentido de um discurso (isto é, de um signo significativo) aos atos psíquicos de quem quer que seja. Quando alguém diz que zero é diferente de um, o faz em virtude de um ato psíquico subjetivo e localizado, mas esse ato remete a algo que, em si mesmo, nada tem de subjetivo ou localizado: os números zero e um e a diferença entre eles.

Daí decorre que Husserl sustenta a distinção entre duas categorias de objetos imateriais. Essa distinção e essa irredutibilidade, porém, são fatais para o psicologismo, cuja tese central é justamente a de que as ideias, sendo produto de atos psíquicos, constituem um subconjunto da psique humana, sendo, portanto, redutíveis à psicologia. Para um psicologista, todo conteúdo de um ato psíquico (como um pensamento, por exemplo) pode ser investigado e explicado pelas leis da psicologia. Os números zero e um, não sendo materiais, só podem ser meros fenômenos psíquicos. De modo que, em última análise, a matemática estaria fundamentada apenas na psicologia do homem. Husserl sustentou essa posição no início, mas depois abriu mão dela, principalmente sob influência das críticas de Gottlob Frege. Passou, portanto, a aceitar a tese de que os objetos matemáticos são objetivos, embora não materiais, estabelecendo assim uma divisão da realidade em três reinos: material, psíquico e ideal. É esse caráter objetivo dos objetos ideais que Frege desejava enfatizar ao dizer que
"o número quatro é tão psíquico quanto o Mar do Norte".

3.
A despeito da existência de uma importante diferença entre a abordagem fenomenológica da psicologia e as doutrinas psicológicas dominantes na época, a proposta de Husserl mantém-se fiel, de certa forma, à psicologia descritiva. Ao negar o psicologismo pela admissão da realidade do reino das ideias, com o qual a consciência lida constantemente, Husserl se contrapõe também à psicologia empirista, que insiste em tratar a consciência como qualquer outro objeto da natureza e tentar compreendê-la por métodos essencialmente idênticos - ou análogos, pelo menos - aos das ciências experimentais.

Entretanto, a psicologia fenomenológica não prescinde da experiência, se essa palavra for tomada em sentido amplo. Ou seja: não se trata de experiência no sentido de "experimento", o sentido empirista e científico, e sim num sentido mais semelhante ao que temos em mente quando falamos em "experiência de vida". A diferença, para Husserl, reside no fato de que, se é verdade que a consciência humana não pode ser estudada experimentalmente à maneira da física, é também verdade que nossa relação com os objetos desta não é semelhante à nossa relação com os objetos daquela. Como disse C. S. Lewis num outro contexto,
"nós não apenas estudamos homens; nós somos homens". E o fato de que a categoria de objetos estudada pela psicologia inclui o próprio pesquisador abre-lhe possibilidades que não estão disponíveis para um astrônomo ou um entomólogo. A psicologia, segundo Husserl, deve se basear num método filosófico de compreensão dos atos psíquicos do homem, partindo de nossa experiência de nós mesmos enquanto seres conscientes, isto é, da autoconsciência e da introspecção, que evidentemente não se aplicam aos objetos do estudo científico ordinário.

4.
Uma das questões mais importantes que uma filosofia da psique humana deve responder é esta: como se dá o contato entre a mente e um objeto exterior a ela? A tradição filosófica ocidental tem, sobretudo desde Kant, negado de maneira quase unânime a apreensão direta do objeto pela consciência. Muitos preferiram admitir que a consciência entra em contato com o objeto mediante um intermediário, uma projeção ou representação do objeto na própria consciência. As teorias que buscam elucidar esse processo são denominadas "teorias da representação", e se dividem em duas versões. A primeira afirma que o que é representado na consciência é algo como uma imagem ou retrato do objeto: não idêntica a ele, mas semelhante em alguma medida. A segunda nega a necessidade dessa semelhança e defende uma representação puramente signitiva, ou seja, simbólica. A diferença entre a imagem e um signo é sugerida por esses mesmos substantivos: um elefante desenhado representa o elefante real porque se assemelha a ele, e tanto mais quanto maior seja a habilidade do desenhista. A palavra "elefante" não se parece com um elefante, mas o representa mediante uma convenção estabelecida, uma associação livremente efetuada pela mente; trata-se, portanto, de um signo. Cabe lembrar, porém, que as imagens e os signos não precisam ser visuais, e os objetos representados sequer precisam ser materiais. O mesmo princípio se estende a tudo o que se situa fora da consciência.

Husserl rejeita todas as teorias da representação, imaginativas ou signitivas. Recusa-se a admitir que o ato intencional da consciência não é direcionado diretamente ao próprio objeto, que ele não visa o objeto senão através de uma representação, e que esta é o que realmente é projetado na consciência. Considera falha a tese da representação por imagens, uma vez que, ao negar a possibilidade de contato entre a consciência e o objeto, ela destrói o fundamento da semelhança que caracteriza a imagem como tal. Se a consciência reconhece uma certa imagem como representação de um certo objeto, é porque já teve algum contato com esse objeto. Seria absurdo supor o contrário, como se fosse possível reconhecer um rosto nunca visto. Se não houve jamais um contato direto entre o objeto e a consciência, não faz sentido esperar que a imagem formada nesta última tenha alguma semelhança com o primeiro. Seria necessário postular uma imagem da imagem, intermediária entre a imagem e o objeto, e também uma outra imagem para explicar a origem dessa segunda imagem, e assim por diante, conduzindo a um regresso ao infinito que é impotente, no fim das contas, para justificar a presença de qualquer semelhança entre imagens e objetos.


Já a dificuldade da teoria da representação signitiva consiste em que a qualidade de signo não é inerente a nenhum objeto. O conjunto de sinais gráficos ou sons contidos na palavra "elefante", por exemplo, não tem em si nenhuma qualidade intrínseca que o associe necessariamente ao maior mamífero terrestre. Essa associação tem sua razão de ser, sem dúvida, mas é inteiramente arbitrária do ponto de vista ontológico ou epistemológico. Assim, é impossível que o signo seja estabelecido como representação de um objeto sem um ato intencional da consciência que lhe atribua esse estatuto. A presença, na consciência, de um signo como representante e mediador de um objeto não pode ser explicada, a menos que tenha havido um contato de outra natureza entre este e aquela.


Husserl sustenta, portanto, que o banimento completo desse contato direto em favor de teorias da representação precisa ser evitado, e a existência de alguma forma de apreensão direta do objeto deve ser admitida.
"Rumo às coisas mesmas" é um dos lemas fundamentais de sua filosofia.

6 comentários:

Edson Camargo disse...

Um amigo meu, daqui de Curitiba, sabe tudo de Husserl e vê na obra do luterano um verdadeiro tesouro, a começar por sua trajetória intelectual. Uma vida inteira dedicada à filosofia, na busca da defesa de um realismo cognitivo que, apesar de algumas semelhanças, segue por caminhos muito diferentes dos da filosofia clássica.

Esse meu amigo acredita que é possível amalgamar e aliançar a fenomenologia com o realismo clássico num só sistema que defina e fundamente esse retorno "às coisas mesmas", que para mim, é parte importante até da apologética cristã. Espezinhado o acognosticismo, Deus não mente, e podemos apreender os fatos e a história à partir da nossa estrutura mental e mesmo da realidade, que o próprio Deus criou.

Depois conversamos mais sobre.
Abração!

André disse...

Olá, caro Edson!

Ao contrário de seu amigo, não sei tudo sobre Husserl. Mas também admiro muito a honestidade intelectual do sujeito e o afinco com que perseguiu a verdade por toda a vida. A interação de Husserl com os gregos, os escolásticos e os modernos me interessa muito. Pretendo um dia conhecer muito melhor tudo isso. Também acredito (ou desconfio) que as investigações fenomenológicas podem contribuir de alguma forma para uma epistemologia autenticamente cristã.

Podemos conversar mais sobre isso, sim. Nos próximos dias virá a segunda parte do texto.

Abraços!

Anônimo disse...

"Espezinhado o acognosticismo, Deus não mente, e podemos apreender os fatos e a história à partir da nossa estrutura mental e mesmo da realidade, que o próprio Deus criou."

Isso me lembra muito um artigo de Josef Pieper, "Luz inabarcável", nesse link:

http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm

Foi traduzido por Gabriele Greggersen, conhecida por seus estudos da obra de C.S. Lewis.

Rodrigo

André disse...

Olá, caro Rodrigo!

O texto que você indicou é muito bom. Muito obrigado pela recomendação.

Abraços!

Mulher na Polícia disse...

Eu sempre achei que deviam ensinar metafísica, fenomenologia, existencialismo na Academia de Polícia... Então... Acho que o que você quer fazer entre fenomenologia e cristianismo é o que eu queria fazer entre fenomenologia e investigação policial. Porém, da mesma forma que o Inquérito Policial é inquisitivo, ou seja, já entra em débito com a subjetividade (não há no inquérito o direito ao contraditório, por exemplo. É a "persecutio" do grande Leviatan), o cristianismo também parte de um pressuposto e pre-requisito essencial, a fé.

Tava sumido, você!

André disse...

Olá, Mulher na Polícia!

Você deve estar achando que não entendo nada de inquéritos policiais. E tem razão nisso. Mas fiquei aqui imaginando como seria viver numa sociedade protegida por policiais filósofos. Acho que só seriam bons policiais na medida em que fossem bons filósofos. Já imaginou um policial discípulo de Foucault, defendendo "intelectualmente" os bandidos?

Se já não tiver lido, recomendo que leia "O homem que foi quinta-feira", de G. K. Chesterton. É uma novela policial muito criativa e interessante, em que um grupo de policiais filósofos enfrenta uma organização anarquista e niilista.

Há alguma discussão entre os filósofos cristãos quanto ao sentido exato em que a fé pode ser considerada requisito para uma filosofia cristã. Ainda não sei bem como me posicionar quanto aos detalhes da coisa. Mas adianto algo sobre o próximo post: Husserl acreditava na possibilidade de uma filosofia isenta de pressupostos, e foi esse o objetivo perseguido por ele a vida toda. Não concordo com ele nesse ponto. Embora eu tenha várias ressalvas quanto ao que conheço das correntes pressuposicionalistas do calvinismo, acredito que todo sistema filosófico pressupõe algumas coisas.

Eu sumi por andar muito atarefado com o fim do mestrado. Mas escreverei aqui sempre que puder. E continuo lendo e gostando dos textos que você tem publicado em seu blog. Pretendo me manifestar por lá novamente quando tiver algo minimamente interessante a dizer.

Abraços!