28 de abril de 2010

O terror das nações - parte 2

No texto anterior discuti os pontos essenciais da argumentação de Revel em favor de um governo mundial, visto por ele como requisito imprescindível para a resolução dos males que afligem a humanidade atual, e apresentei as razões que me impedem de concordar com ele. No capítulo de Nem Marx nem Jesus destinado a essa questão existem, contudo, alguns pontos mais periféricos que fui obrigado a deixar de lado. Mas não resisti à tentação de comentar um desses pontos, e é isso o que passo a fazer neste post.

O primeiro fato que convém destacar é que o projeto da supressão das nações anunciado e defendido por Revel combina muito bem com o sentimento fortemente negativo manifestado por ele (tanto no capítulo em questão quanto em outras partes do livro) contra todo patriotismo ou apego às tradições culturais. Revel as repele com uma indignação tal que parece considerá-los essencialmente associados ou idênticos ao espírito xenofóbico das ideologias nazistas e fascistas. Em alguns momentos, chega a parecer que a própria diversidade cultural dos povos é vista como um problema a ser suprimido pelo governo mundial.

Para esclarecer devidamente o que penso sobre isso, servir-me-ei de um atalho proporcionado por um artigo me foi enviado recentemente por um amigo: Meet the president of Europe. O objetivo principal do texto é falar sobre certos eventos ocorridos há pouco tempo nos gabinetes dos burocratas da União Europeia, mas ele menciona de passagem as origens do Estado belga, que foi artificialmente construído pela reunião de duas regiões - uma francesa e outra holandesa, do ponto de vista cultural e étnico - sob um governo único. Segundo o autor, Paul Belien, seus habitantes "foram forçados a viver juntos em um único Estado". A descrição que se segue está reproduzida abaixo:

"Os belgas não gostam de seu Estado. Eles o desprezam. Dizem que ele nada representa. Não há patriotas belgas, pois ninguém quer morrer por uma bandeira que nada representa. Porque a Bélgica não representa nada, ideólogos multiculturais a amam. Eles dizem que sem patriotismo não haveria guerras e o mundo seria um lugar melhor. Em 1957, políticos belgas alojaram-se no berço da União Europeia. Sua meta era transformar a Europa inteira em uma grande Bélgica, de modo que as guerras entre as nações europeias não mais fossem possíveis, visto que não mais existiriam nações, pois estas seriam incorporadas em um super-Estado artificial. Porém, um olhar mais atento sobre a Bélgica, o laboratório da Europa, mostra que falta ao país algo mais que o patriotismo. Falta também democracia, respeito pela lei e moralidade política. Em 1985, em seu livro De Afwezige Meerderheid (A maioria ausente), o falecido filósofo flamengo Lode Claes (1913-1997) argumentou que sem identidade e sem um senso de genuína nacionalidade não pode haver democracia nem moralidade."

Li esse artigo depois que já tinha dado início à leitura de Nem Marx nem Jesus, e não pude deixar de perceber certa infantilidade no horror de Revel às identidades nacionais. Veja-se especialmente o seguinte trecho do livro:

"Nada é mais estreito que a concepção substancialista ou essencialista das nacionalidades, segundo a qual os contornos das nações estariam inscritos na 'natureza das coisas'. É esquecer-se de que o Estado moderno e a nação, oriundos da primeira revolução mundial, emergiram, eles próprios, da destruição de toda sorte de sistemas e laços feudais, eclesiásticos, provinciais, corporativos e familiares que repartiam as fontes do poder e o faziam circular de uma maneira de que nos falta hoje qualquer experiência."

Não sei que tipo de críticos Revel tinha em mente ao escrever tais sentenças, mas reservo-me o direito de desconfiar que a descrição da posição contrária como "substancialista ou essencialista" é um artifício puramente retórico destinado a ridicularizá-la, ou então é fruto de mais uma insensatez característica do modo revolucionário de raciocinar. É verdade que os Estados nacionais modernos - inclusive os europeus - são instituições relativamente recentes que substituíram e extinguiram outras. Contudo, isso não altera o fato de que essas construções só prosperaram, na medida em que chegaram a prosperar, justamente porque, na maioria dos casos, a delimitação de seus territórios - e, portanto, a definição de suas respectivas populações - não foi feita de modo arbitrário, e sim segundo os contornos gerais determinados pelos povos então existentes e suas respectivas culturas. Tudo teria ido por água abaixo se os povos e as elites que compuseram os Estados nacionais recém-nascidos não vissem alguma conexão entre as novas instituições e as precedentes. Paul Belien está aí para nos explicar, mediante a análise de uma exceção, o que teria acontecido se as coisas não tivessem se passado dessa maneira. Para mim é perfeitamente evidente que a tese de Lode Claes é correta: nenhuma nação pode sobreviver de maneira saudável sem que seu povo a ame e se identifique com ela.

Mas Revel não está preocupado com esses pormenores. Sua visão do tema é reducionista, pois pressupõe que o poder político subsiste por si só, isto é, à parte dos fatores culturais, como se esses últimos fossem supérfluos à conservação da integridade de uma comunidade política. Só esse pensamento pode justificar a ideia de que é irrestritamente legítimo e saudável o estabelecimento artificial de um Estado supranacional por um processo governado a partir de cima, como vem acontecendo na centralização europeia, dispondo de tudo segundo critérios que nada dizem ao coração dos governados. Para Revel, aparentemente, essa ideia é "substancialista ou essencialista". Na verdade, contudo, não se trata de apregoar alguma imutabilidade essencial, e sim apenas de respeitar o rumo natural das coisas, ditado pela própria natureza delas. Um dos erros principais do movimento revolucionário consiste na incapacidade desse respeito ao que Ortega y Gasset considerou um dos direitos fundamentais do homem: o direito à continuidade.

(Quem quer que já tenha lido A rebelião das massas sabe, contudo, que Ortega y Gasset era bastante favorável à unificação da Europa sob um governo único. Mas suas razões e seu enfoque sobre essa questão eram, se bem me lembro, consideravelmente diferentes do espírito revolucionário que domina a mente de Revel. Dentre outros motivos, Ortega via com bons olhos essa unificação por considerá-la um desenvolvimento natural da história de seu continente, assim como o foram a uniformização da língua italiana sob a influência de Dante, ou da língua alemã sob a influência de Lutero. Não se trata, pois, de um rumo artificialmente imposto pelas conveniências políticas ou ideológicas de um punhado de burocratas.)

Todas essas considerações reforçam a probabilidade de que um governo mundial construído segundo os iluminados planos do filósofo francês desemboque num totalitarismo sem precedentes, exercido por um governo opressor sobre um povo que não tem nenhuma afeição por ele, que não tem meios de influenciá-lo e em cuja memória ele nada representa de bom.

Mas, a fim de não dar a entender que não há nada que preste nesse capítulo, encerrarei esta postagem transcrevendo um trecho que dispensa comentários adicionais.

"Os critérios de sucesso para os países comunistas há muito já deixaram de ser comunistas. São os da Realpolitik mais tradicional, avaliados em potencial de impacto, e não critérios ligados a uma moral nova de libertação humana. Desta maneira, os voos espaciais russos e o satélite chinês (1970) foram saudados como grandes realizações, o que sem dúvida são, da mesma forma como eram saudados os primeiros foguetes aprontados e lançados em 1944 por Hitler. A escolha oferecida por Goering ao povo alemão, 'canhões ou manteiga', foi suprimida pelos regimes comunistas em proveito dos canhões, quer por amor a estes, quer pela incapacidade de arrumar manteiga. O sacrifício do nível de vida do povo aos instrumentos da política de poder, a compensação do chauvinismo oferecida como paliativo contra suas dificuldades e a proibição de se lamentar são o caminho clássico das ditaduras: basta lembrar-se da Itália de Mussolini. O fracasso do plano interno e a necessidade de disfarçar periodicamente as revoltas dos países-satélites levam a dar prioridade à força militar do Estado. É mais fácil, com efeito, tornar-se em pouco tempo uma potência nuclear que uma sociedade de abundância; e é igualmente necessário, para os detentores do poder, ser tanto mais uma coisa quanto menos se tiver atingido a outra."

2 comentários:

Mulher na Polícia disse...

Olá André!

É um assunto muito interessante. E fica melhor podendo acompanhar as suas idéias em contraposição aos argumentos de Revel.

A situação da Bélgica é o que me falou mais forte. Há um sentimento de nação bem ligado à questão da identidade que dificilmente poderia ser substituído por qualquer outra proposta.

Sabes que tal sentimento me parece ser tão primitivo a ponto de sequer me permitir pensar seriamente em qualquer proposta no sentido de um governo mundial?

Na verdade quando imagino por exemplo como legitimar um governo desses, já me sinto muito incomodada. Será isso trauma do imperialismo americano? Ou das manipulações na época da guerra fria? Da eterna exploração dos países pobres pelos países ricos??? Não sei explicar. Sei que não me agrada nem um pouco essa idéia do seu amigo Revel.

E agora?
O que anda fazendo da vida?

Um beijão pra você!

Ps. Obrigada por colocar o link do meu blog ali do lado. Agora posso dizer que quase acredito que você me lê.
: )

André disse...

Oi, Novinha!

Fico feliz que tenha gostado do assunto. O interessante é que o pretexto dos adeptos do governo mundial é justamente acabar com o imperialismo e a exploração dos países pobres pelos ricos, bem como impossibilitar qualquer coisa semelhante a uma Guerra Fria. Mas nisso, como em muitas outras coisas, eu considero as soluções bem piores que os problemas, em parte pelos motivos que expus aqui, principalmente na parte 1 e nos comentários.

Minha vida continua a mesma. hehe Espero agora em junho conseguir entregar a dissertação.

Não precisa agradecer. Eu comento pouco, mas leio tudo, e gosto muito. Continue assim!

Beijos!