10 de junho de 2010

Viagens doloridas - parte 2

Neste post e no próximo darei continuidade ao anterior. Ali transcrevi trechos da viagem de Albert Camus à América do Norte. Agora, passo a transcrever trechos de seu Diário de viagem que narram a visita à América do Sul. Isso aconteceu em 1949, e a maior parte do tempo foi passada no Brasil. Essa viagem está mais bem documentada, o que resultou num volume maior de trechos interessantes; eis a razão pela qual dividi essa parte em dois posts.

Mantive os nomes de pessoas e lugares que Camus escreveu de maneira incorreta. Além disso, a única coisa que tenho a comentar é que, vistos sob a perspectiva de Camus, alguns de nossos compatriotas famosos de seis décadas atrás se revelaram ridículos ao extremo.

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No navio:

"Por duas vezes, a ideia de suicídio. Na segunda vez, sempre olhando para o mar, um terrível ardor me vem às têmporas. Acho que agora compreendo como a pessoa se mata."

"É preciso que se diga, no entanto, que bronzeado, descansado, alimentado e vestido de roupas claras, tenho todos os ares de vida. Parece-me que eu poderia agradar. Mas a quem?"

"Chegamos daqui a dois dias. De repente, a ideia de deixar este navio, este camarote estreito em que, durante longos dias, pude abrigar um coração desligado de tudo, esse mar que tanto me ajudou, me assusta um pouco. Recomeçar a viver, a falar. Seres, rostos, um papel a desempenhar, seria preciso mais coragem do que sinto em mim."

Chegando ao Rio de Janeiro:

"Às quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos - velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe, luzes. [...] Volto para o meu camarote. Quando torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o 'Pão de Açúcar', com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso. À medida que nasce a luz, vê-se melhor a cidade, espremida entre o mar e as montanhas, estendida no comprimento, interminavelmente estirada. No centro, prédios enormes. [...] Estamos no meio da baía e as montanhas, à nossa volta, fazem um círculo quase perfeito. Finalmente, uma luz mais sanguínea anuncia o raiar do sol, que surge por trás das montanhas a leste, em frente à cidade, e começa a subir, num céu pálido e fresco. A riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. [...] Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar."

"No automóvel, peço que não se vá a um restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, com o dedo em riste: 'Não há luxo no Brasil. Somos pobres, miseráveis', dando tapinhas afetuosos no ombro do motorista engalanado, que dirige seu enorme Chrysler. [...] Aterrissamos num restaurante perto do Mercado, onde só se come peixe, numa sala quadrada, com um pé-direito muito alto, tão brutalmente iluminada a neon que parecíamos pálidos peixes fazendo evoluções numa água irreal. O señorito quer escolher minha comida. Mas, esgotado, gostaria de uma refeição leve, e recuso tudo o que ele me oferece. Servem primeiro o poeta, que começa a comer sem esperar por nós, substituindo às vezes o garfo pelos dedos grossos e curtos. Fala de Michaux, Supervielle, Béguin, etc., e interrompe-se, vez por outra, para cuspir no prato, lá do alto, as espinhas de seu peixe. É a primeira vez que vejo fazer-se essa operação sem curvar o corpo. Aliás, com uma destreza maravilhosa, ele só não acerta o prato uma vez. [...] Essa grosseria, essa falta de modos, se expõe de forma tão natural que se torna amável. [...] O señorito aproveita para explicar as dificuldades administrativas do Figaro, que eu conheço bem, mas das quais ele nos faz peremptoriamente uma descrição absolutamente falsa. Chamfort, porém, tem razão: quando se quer ser agradável no mundo, é preciso decidir deixar que nos ensinem muitas coisas que sabemos, por pessoas que as desconhecem."

Segundo os editores, o poeta acima mencionado é Augusto Frederico Schmidt. O "señorito" não foi identificado. E o "Barleto" citado a seguir é João Batista Barreto Leite Filho, jornalista que trabalhara como correspondente na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

"Almoço com Barleto na casa de uma romancista e tradutora brasileira. [...] Os convivas se espantam quando peço para assistir a uma partida de futebol e literalmente deliram ao descobrir que tive uma longa carreira de jogador de futebol. Encontrei, sem querer, sua paixão principal."

"Os jardins da Tijuca, a capela Meyrink, o Corcovado, a baía do Rio, visualizada cem vezes sob os aspectos mais diferentes. E as imensas praias do sul, de areia branca e ondas cor de esmeralda, que se estendem, desertas, por milhares de quilômetros até o Uruguai. A floresta tropical e seus três níveis. O Brasil é uma terra sem homens. Tudo é criado aqui às custas de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem. O espaço basta para criar a cultura?, indaga-me o bom professor brasileiro. É uma pergunta sem sentido. Mas estes espaços são os únicos à altura dos progressos técnicos. Quanto mais veloz o avião, menos importância têm a França, a Espanha e a Itália. Elas eram nações, ei-las províncias e, amanhã, aldeias do mundo. O futuro não está em nós, e nada podemos contra esse movimento irresistível. A Alemanha perdeu a guerra porque era nação e porque a guerra moderna exige os meios de impérios. Amanhã, serão necessários meios de continentes. E eis os dois grandes impérios partindo para a conquista de seu continente. Que fazer? A única esperança é que nasça uma nova cultura, e que a América do Sul talvez ajude a temperar a besteira mecânica. Eis o que digo, e mal, ao meu professor, enquanto deixamos escorrer a areia por entre os dedos, diante de um mar sibilante."

"Assistimos a um dos inúmeros acidentes provocados pelo trânsito inverossímil. Um pobre velho negro mal embrenhado numa avenida rutilante de luzes é colhido por um ônibus, que o lança dez metros à frente, como uma bola de tênis, contorna-o e foge. Isso se deve à estúpida lei de flagrante delito, segundo a qual o motorista teria sido levado à prisão. Portanto, ele foge, não há mais flagrante delito e não será preso. O velho negro fica lá, sem que ninguém o levante. Mas o impacto teria matado um boi. Descubro mais tarde que será colocado sobre ele um lençol branco, em que o sangue se irá espalhando, com velas acesas ao redor, e o trânsito continuará à sua volta, contornando-o, somente até que cheguem as autoridades para a reconstituição."

"Jantar na casa dos Chapass, com o poeta nacional Manuel Bandera, pequeno homem extremamente fino. Depois do jantar, Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido."

Em Recife:

"Terra vermelha e coqueiros. E, em seguida, o mar e praias imensas. [...] Igrejas coloniais admiráveis, onde domina o branco, em que o estilo jesuíta é iluminado e tornado mais leve pela caiação. O interior é barroco, mas sem o peso excessivo do barroco europeu. A Capela Dourada, em especial, é admirável. Os azulejos aqui estão perfeitamente conservados. Simplesmente, como também nas pinturas, os 'maus' Judas, os soldados romanos, etc., foram desfigurados pelo povo. Todos mostram as faces corroídas e sangrentas. Admiro a cidade antiga, as casinhas vermelhas, azuis e ocre, as ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas. [...] Positivamente, gosto de Recife. Florença dos trópicos, entre suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas."

2 comentários:

Gustavo Nagel disse...

Como tive oportunidade de lhe dizer, André, comprei o livro só por conta dessas notas sobre o tempo no Brasil. Comprei mas não li. Por isso seus posts acabam me sendo útil. Duas coisas interessantes a respeito dessa segunda parte: Camus lia Chamfort e gostava de futebol. Ótimos sinais, hehe.

Abraços.

Gustavo Nagel disse...

Úteis, né?