31 de outubro de 2010

O direito ao mistério - parte 1

Hoje é dia de eleições presidenciais e a Reforma completa 493 anos de existência. Mas não vou falar sobre nenhum dos dois assuntos, muito embora o de hoje tenha alguma relação com o segundo tema. Ontem à noite minha esposa me mostrou um artigo que recebeu por e-mail, e nós o lemos juntos. Fiquei suficientemente impressionado para dedicar a ele esta breve análise. O texto é de W. Gary Crampton, está disponível neste endereço e seu título é uma interrogação: A Bíblia contém paradoxo?. É um pdf de apenas cinco páginas. Recomendo aos interessados que o leiam, de preferência antes de prosseguir com a leitura deste meu post, para que possam aprovar ou condenar minha análise com propriedade. Contudo, não acho justo exigir de meus leitores que leiam dois textos, uma vez que vieram aqui esperando ler no máximo um. Por isso, na medida do possível, esforçar-me-ei para transmitir de modo fidedigno e completo os pontos essenciais do artigo em questão.

Crampton dá início ao artigo citando e endossando a distinção feita por Kenneth Kantzer entre paradoxos retóricos e paradoxos lógicos. A existência da primeira classe de paradoxos na Bíblia é ponto pacífico, mas Crampton dedica o restante do artigo a refutar a ideia da existência de paradoxos do segundo tipo no texto sagrado. Ele se queixa, a respeito de declarações em contrário, de que "mui frequentemente tais comentários são ouvidos dentro do campo da ortodoxia", citando como exemplos teólogos reformados de renome como Edwin Palmer, J. I. Packer e Cornelius Van Til. E lança então seu primeiro argumento: "Deus nos fala em tal linguagem? Ele é o autor do paradoxo lógico? Não, diz o apóstolo Paulo, 'Deus não é o autor de confusão' (1 Coríntios 14.33)."

Aqui Crampton cometeu seu primeiro deslize, e de não pouca importância. O texto de onde foi retirada a citação do apóstolo não fala de confusão lógica, e sim de confusão litúrgica. Paulo está dando instruções para combater a desordem no culto, evitando a balbúrdia decorrente do uso desenfreado do dom de línguas, profecias e interpretações que se instalara na igreja de Corinto. Paulo ensina que devem falar um de cada vez, e que "Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus não é de confusão e sim de paz". Extrair daí uma lição sobre a existência ou não de elementos obscuros nas obras de Deus em geral (e de paradoxos lógicos nas Escrituras em particular) é desprezar uma das regras fundamentais da hermenêutica, que é a atenção ao contexto. Crampton começou, pois, dando ensejo a dúvidas sobre sua capacidade como exegeta.

O argumento seguinte do autor consiste em dizer, endossando uma afirmação de Gordon Clark, que é puramente subjetiva a opinião de que determinada questão é um paradoxo. Ele afirma, por exemplo, que a tensão entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, que parece paradoxal a vários teólogos reformados, não parece assim a John Gerstner, que escreveu: "Nós não vemos por que é impossível para Deus predestinar que um ato aconteça por meio da escolha deliberada de indivíduos específicos". Devemos recordar que nenhum dos teólogos até agora criticados por Crampton, que são todos calvinistas, nega que tal coisa seja possível a Deus. Apenas negam compreender como Deus faz isso, o que não é a mesma coisa. Se Gerstner ou outro qualquer acredita ter a solução para o enigma (sei que Clark, por exemplo, acreditava), não vejo problema algum. Mas vou descrever uma situação pela qual certamente muitos leitores já passaram: alguém propõe uma questão difícil - pode ser uma charada numa roda de amigos ou uma questão numa lista de exercícios na escola - que deixa todos os presentes quebrando a cabeça, até que chega alguém e anuncia que a solução, na verdade, é muito fácil e não oferece dificuldade alguma. Em alguns casos esse é de fato o caso, e os outros, depois de ouvir a solução, ficam tentando descobrir como não pensaram nela antes. Mas em muitos outros casos a solução proposta apenas evidencia aos demais presentes que seu autor não chegou a compreender bem a natureza do problema.

Quem garante que não é esse o caso de Gerstner ou Clark? A única maneira de solucionar a dúvida seria expor as soluções disponíveis e colocá-las em debate. Mas Crampton não faz isso, pois não é esse seu objetivo. Ele não está interessado em provar que as soluções racionais existem (o que seria a única maneira válida de mostrar que não há paradoxos lógicos na Bíblia), e sim em condenar de antemão os que, por uma razão qualquer, não se satisfazem com as soluções existentes. Parece-me um procedimento flagrantemente injusto. De qualquer forma, se Crampton julga subjetiva a afirmação de que algo é um paradoxo, respondo trazendo à luz o corolário dessa afirmação: a negação de que algo é um paradoxo também é subjetiva, ao menos até que a candidata a solução seja trazida ao debate. Não há objetividade alguma enquanto a conversa ficar no "é, sim" contra o "não é, não". E se o assunto é debatível - como parece que é, já que estamos falando da validade de soluções racionais para um possível paradoxo - é porque não é tão subjetivo assim.

Logo depois de citar Gerstner, nosso autor prossegue dizendo que o assunto da soberania divina e da responsabilidade humana também não era um paradoxo para os teólogos de Westminster, e passa a citar o trecho da Confissão que diz que "Deus, desde toda a eternidade, pelo muito sábio e santo conselho de sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas". Não é difícil perceber, no entanto, que essa passagem se limita a afirmar essa verdade, nada declarando sobre se os meios de sua concretização são ou não compreensíveis à mente humana. Para demonstrar o que diz, Crampton faz referência a outra parte da Confissão: "A doutrina pode ser um 'alto mistério' (isto é, difícil de plena compreensão), mas não é de forma alguma paradoxal (isto é, impossível de ser reconciliada), diz Westminster (III, 8)". Porém, Crampton só cita pequenos trechos da seção 8 do capítulo III, que não bastam para informar o leitor sobre o conteúdo desse trecho, de modo que o transcrevo aqui integralmente:

"A doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado, a fim de que os homens, atendendo à vontade de Deus, revelada em sua Palavra, e prestando obediência a ela, possam, pela evidência de sua vocação eficaz, certificar-se de sua eterna eleição. Assim, a todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho, esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e admiração para com Deus, bem como de humildade, diligência e abundante consolação."

Em qual parte da seção acima Crampton encontrou a prova de que os teólogos de Westminster não viam paradoxo nessa questão reconhecidamente complicada? Parece que em parte alguma, pois ele se viu obrigado a complementar o conteúdo da Confissão com uma sentença de sua própria lavra, nos seguintes termos: "Isso certamente não seria possível com qualquer doutrina que não possa ser reconciliada pela mente do homem". A Confissão nao diz isso em lugar nenhum, evidentemente. É Crampton quem crê na impossibilidade de tratar "com especial prudência e cuidado" alguma coisa que extrapola os limites de sua razão. Os teólogos de Westminster não só não dizem nada sobre esse assunto, mas também dão mostras de pensar de maneira diversa, já que, entre as referências bíblicas apontadas por eles em apoio ao conteúdo da seção 8 do capítulo III, existem duas que falam claramente acerca dos limites da mente humana: "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Porventura, pode o objeto perguntar àquele que o fez: por que me fizeste assim?" (Romanos 9.20) e "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus; porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" (Deuteronômio 29.29).

É desnecessário dizer que não é citada nenhuma passagem bíblica sobre a importância de uma compreensão racional exaustiva das doutrinas reveladas nas Escrituras. Os teólogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relação ao assunto da predestinação, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua própria eleição e ver nessa doutrina motivo de louvor, reverência, admiração, humildade, diligência e consolo. O resto é invenção da cabeça de Crampton, que, além de mau exegeta, acaba de demonstrar que também não é bom leitor, já que não é capaz de distinguir entre seu próprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histórico que tem diante dos olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinação antes de dar louvores a Deus, se essa compreensão se lhe afigura um requisito para tributar a Deus aquilo que a Confissão prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os teólogos de Westminster deram sinais de não precisar disso para ter uma atitude correta diante de Deus.

Até aqui analisei apenas os seis parágrafos iniciais do texto de Crampton. O restante fica para um post futuro, que deverá ser publicado tão logo eu tenha tempo de escrevê-lo. Apenas adianto que ainda não cheguei ao fundo do problema.