3 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 2

Há duas coisas que eu poderia ter dito no post anterior e acabei me esquecendo, mas que ainda dá tempo de dizer, embora sejam meros detalhes. A primeira é a respeito do versículo citado por Crampton, que diz que Deus não é Deus de confusão - e portanto, segundo ele, não há paradoxos lógicos na Bíblia. Já demonstrei que se trata de uma péssima exegese. Faltou dizer que a primeira vez que vi essa passagem bíblica sendo usada fora de seu contexto foi numa brochura da Sociedade Torre de Vigia, a organização das testemunhas de Jeová, que o usava para atacar a doutrina da Trindade, sob a mesmíssima acusação de ser racionalmente incompreensível. Por aí se vê não só em que nível se situa a qualidade da exegese de Crampton, mas também que esse versículo parece ter um histórico de usos racionalistas indevidos. A segunda coisa é que o autor afirmou que a expressão "alto mistério", encontrada na Confissão de Fé de Westminster, significa apenas que é um assunto acerca do qual é difícil adquirir plena compreensão, mas não impossível. Contudo, ele não forneceu nenhum argumento para justificar essa conclusão, e isso basta para me convencer de que sua declaração se baseia tão somente em seus preconceitos teológicos. Dito isso, vamos em frente, analisando o restante do artigo.

Crampton prossegue defendendo a posição de Clark, segundo a qual
"depender de [...] paradoxos [...] destrói tanto a revelação como a teologia e nos deixa na completa ignorância". Ele cita declarações de teólogos da assim chamada neo-ortodoxia, como Karl Barth e Emil Brunner, para os quais as Escrituras necessariamente contêm inúmeras contradições porque Deus não pode se revelar de modo proposicional, e portanto a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus, e tampouco pode ser infalível. Segundo Crampton, a neo-ortodoxia proclama ainda que "a contradição é a marca registrada da verdade religiosa" e que o agnosticismo teológico é o resultado de tudo isso. A consequência, de acordo com o autor, é o divórcio entre a fé e a razão, o abandono da ideia agostiniana de que a lógica, por ser divinamente ordenada, deveria ser confiantemente usada pelo homem. Sem essa concepção, "o homem nunca poderia conhecer verdadeiramente coisa alguma", pois nenhuma proposição tem significado se não invalidar as proposições que a contradizem. Sem a lógica, diz ele, "No princípio criou Deus os céus e a terra" e "No princípio não criou Deus os céus e a terra" significam rigorosamente a mesma coisa.

Entre os criticados estão o filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd e toda a escola de Amsterdã, para os quais há
"um limite entre Deus, como Legislador, e o homem, como recipiente. As leis da lógica existem somente do lado humano do limite." E Crampton descreve as consequências dessa posição: "Se esse limite dooyeweerdiano realmente existe, Deus não pode revelar nada às suas criaturas e o homem não pode conhecer nada sobre Deus, incluindo a noção do limite". Um pouco adiante, o autor transcreve com satisfação as posições de Carl Henry, para quem "a insistência sobre um abismo lógico [...] não pode escapar de uma redução ao ceticismo" e "as questões que se levantam nos círculos ortodoxos sobre se a Bíblia contém paradoxo lógico, sobre o grande divórcio entre a lógica de Deus e a mera lógica humana, e assim por diante, são o resultado da epistemologia dialética da neo-ortodoxia".

Convém fazer uma pausa e tecer algumas observações antes de prosseguir com a exposição do arrazoado de Crampton. O mais importante a dizer é que tudo o que foi dito constitui uma mudança de assunto. É fácil notar que o argumento sobre a importância da validade da lógica, em especial do princípio da não-contradição, é apenas o velho argumento de Aristóteles contra os sofistas adaptado ao contexto e à linguagem da exegese bíblica reformada. E o argumento de Aristóteles foi bem empregado, pois ele estava lidando com céticos absolutos que não viam valor algum na lógica. Porém, o caso dos teólogos criticados por Crampton é evidentemente diverso. O ponto em discussão não é se podemos ou não ler na Bíblia que
"o Senhor é bom" e entender que Deus é mau. Quaisquer que sejam as razões que levam um teólogo reformado a defender a possibilidade da existência de paradoxos lógicos nas Escrituras (e pretendo mostrar algumas dessas razões adiante), elas não exigem que a lógica não valha nada, nem que toda afirmação bíblica possa ser substituída por seu contrário, e muito menos que fazer isso seja o objetivo de alguém. Nada disso vem ao caso, de modo que não se justificam as predições apocalípticas sobre o fim do conhecimento humano que abundam nesse artigo.

O uso do argumento aristotélico é equivocado, mas essa aplicação diz algo sobre o modo de raciocinar de Crampton, de modo que não devo perder a oportunidade de analisar um pouco melhor esse ponto. Se ele não percebe o que expliquei no parágrafo anterior e se apropria do argumento de Aristóteles sem pensar duas vezes, é porque considera sua situação diante de calvinistas como Palmer, Packer, Van Til e Dooyeweerd exatamente análoga à do estagirita diante dos céticos gregos. E pensa assim porque considera que só há duas posições possíveis diante da lógica: ou seu reino se estende incólume sobre todos os assuntos, inclusive os divinos, ou não vale absolutamente nada em domínio algum da realidade. Em outras palavras, Crampton padece daquela doença intelectual demasiado comum entre os modernos, a qual os torna incapazes de compreender qualquer coisa que não seja um "tudo" ou um "nada". Para eles não há exceções, restrições, ressalvas ou casos particulares, nem qualquer posicionamento intermediário entre a adesão entusiástica e a condenação irrestrita a algo. Essa insensibilidade às nuances é sempre algo triste de se ver.


(Já que toquei no assunto da filosofia, convém observar, de passagem, que o tratamento dado a Dooyeweerd foi bastante injusto. Eu mesmo não tenho muita simpatia pela ideia dooyeweerdiana do limite, mas a descrição que o autor faz dela é absolutamente caricatural. O argumento é bom contra Kant, mas não contra o holandês, assim como o argumento de Aristóteles era bom contra os sofistas de Atenas, mas não contra os teólogos calvinistas. Crampton visivelmente não tem grande talento filosófico e vive de fazer associações pueris e sem sentido.)


Isso nos leva a outro aspecto importante da argumentação de Crampton: essa insensibilidade tem como consequência direta a incapacidade de dissociar os teólogos reformados conservadores (ou ortodoxos, como os chama) dos neo-ortodoxos, que são a contraparte pós-moderna do liberalismo teológico racionalista clássico. Crampton sabe que os conservadores atribuem à Bíblia o status de infalível Palavra de Deus, que aceitam o caráter proposicional da revelação bíblica, de modo que não podem aceitar nenhuma forma de agnosticismo, e tampouco idolatram a contradição e o paradoxo como se fossem valiosos em si mesmos. Ainda assim, como vimos, ele atribui a aceitação do paradoxo nas Escrituras por parte desses teólogos a uma influência da
"epistemologia dialética da neo-ortodoxia". Convém que busquemos entender as raízes da plausibilidade de tal associação aos olhos do autor. Mas para isso precisamos fazer um breve retrospecto e analisar novamente, sob um novo ângulo, as declarações de Crampton a respeito da Confissão de Fé de Westminster feitas no início do artigo.

Agora que já foi denunciado o modo de raciocínio "tudo ou nada" de Crampton, podemos entender melhor a razão que o levou a olhar para a Confissão e ver seu próprio rosto ali refletido, a despeito do que esta realmente dizia. Ele inferiu que a doutrina bíblica da predestinação deveria ser totalmente abarcável pela mente humana a partir da recomendação de que ela
"deve ser tratada com especial prudência e cuidado" por homens que buscam "a vontade de Deus [como] revelada em sua Palavra". Para Crampton, em outras palavras, se a doutrina em questão foi revelada por Deus, e se podemos tratá-la com prudência e cuidado, deve ser porque ela é totalmente compreensível à mente humana. Agora estamos em condições de entender melhor esse non sequitur: segundo Crampton, se algo não é compreensível em sua totalidade, só pode ser porque toda afirmação é equivalente ao seu contrário e as leis da lógica não valem nada. Uma vez que sequer lhe passou pela cabeça a hipótese de que uma doutrina pode ser compreendida em parte, ou até certo ponto, mas não de todo, sua obtusidade o levou a inferir, segundo as leis de sua lógica particular, algo que não estava no texto da Confissão. Tampouco lhe ocorreu que a impossibilidade de se abarcar plenamente essa doutrina é justamente a razão que levou os autores da Confissão a recomendar "especial prudência e cuidado" com relação ao assunto.

A importância desse equívoco não pode ser menosprezada nesta altura da discussão, e é por isso que eu trouxe de volta o conteúdo da Confissão neste ponto. Pois a acusação de Crampton de que os teólogos conservadores devem sua aceitação do paradoxo à neo-ortodoxia requer, dentre outras coisas, um fundamento histórico. Crampton precisa sustentar que não havia indícios de tal coisa no meio reformado conservador antes do advento da teologia neo-ortodoxa. Assim, ele pode ocupar confortavelmente sua posição de defensor da autêntica tradição reformada contra as inovações heréticas do século XX. Porém, se for provado que era diverso do seu o espírito dos teólogos puritanos do século XVII, anteriores não só à neo-ortodoxia, mas até ao iluminismo e ao liberalismo teológico, suas afirmações perderão de imediato toda credibilidade, e ele aparecerá como o verdadeiro inovador. Nesse caso, teremos boa razão para sair em busca das fontes espúrias onde ele foi buscar sua própria inovação. Visto que indiquei no primeiro post, com base na Confissão, evidências de que a situação é exatamente essa, encarregar-me-ei dessa tarefa no próximo post, em meio a outras considerações.

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