27 de fevereiro de 2011

Belas palavras de vida

Não muito tempo atrás, recebi o texto abaixo de uma nova amiga que, não sei exatamente como, foi parar no meu breve texto publicado no outro blog por ocasião do último aniversário da morte de C. S. Lewis. Trata-se do escritor que mais li, e seguramente é um dos que mais me ensinaram. Embora hoje minhas afinidades com ele sejam menores do que já foram, ainda lhe devo imensa gratidão e admiração. O autor do texto chama-se Douglas Wilson, e eu já adianto que nada sei sobre ele. Mas o texto é bom, de modo que o traduzi e o estou publicando aqui.

Tenho uma ressalva quanto à primeira parte do texto. Ela não contém erros, mas creio que transmite uma ideia equivocada sobre o grau de concordância do escritor irlandês com relação à doutrina calvinista da predestinação. Ele de fato tinha o mérito de não ser um racionalista e não renunciar à absoluta soberania divina, bem como de compreender bem os Trinta e Nove Artigos, os grandes mestres puritanos e os ideais da Reforma. Mas ele pensava tudo isso a despeito de ter severas ressalvas quanto à própria necessidade da Reforma, e de dar à liberdade humana uma importância algo humanista e que contrariava sua própria experência pessoal da graça de Deus - fato a que também aludi no post indicado acima. Para que seu conceito de predestinação se tornasse reformado, ele teria de aderir à doutrina da depravação total, coisa que, até onde sei, ele jamais chegou perto de fazer.

No entanto, de modo algum pretendo censurar Wilson, especialmente porque seu objetivo declarado não é o de reclamar para os reformados os méritos de Lewis - o que seria um exemplo de uma classe de atitudes mentais que considero bestas em demasia. Ao contrário, ele pretende apenas expor uma das coisas que nós, reformados, temos a aprender com Lewis. Ele fala sobre o pouco valor dado à beleza, o que de modo algum é um mal universal no meio reformado, mas é, ainda assim, uma tentação em que muitos calvinistas caem. Publico o texto de Wilson porque concordo com o que ele escreveu sobre isso, porque gostei da forma como o fez e porque a experiência que ele teve ao ler o irlandês coincide com a minha. E também porque estou devendo explicações sobre esse tema a um amigo que pertence a outro ramo da cristandade. Esta postagem serve, pois, para mostrar que não me esqueci de minha promessa, e também já diz algo sobre o que penso acerca do assunto.

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Era C. S. Lewis um reformado?

É claro que a resposta à pergunta do título é "não exatamente". Ao mesmo tempo, e em um sentido diferente, a resposta é "sim, claro". E isso significa que, ao mesmo tempo em que há acordo substancial, há uma clara diferença entre a maneira com que alguns modernos reformados articulam a verdade sobre certos assuntos e a maneira com que Lewis o fazia. E eu quero sugerir, ao dizer isto, que muitos pastores reformados modernos, em algumas áreas cruciais, têm algo a aprender com Lewis sobre essa articulação.

Primeiro, C. S. Lewis acreditava na predestinação, e o fazia sem fugir da questão principal. Ele se recusava a erigir uma verdade em oposição à outra. Assim, afirmou: "É claro que a realidade deve ser consistente; mas, até que possamos enxergar essa consistência, se é que a enxergaremos, é melhor sustentar duas visões inconsistentes que ignorar um dos lados da evidência. [...] As Escrituras deixam claro que, qualquer que seja o sentido em que a doutrina paulina é verdadeira, ela não é verdadeira em nenhum sentido que exclua seu (aparente) oposto." É importante notar aqui o nome que Lewis deu à doutrina da predestinação que vinha discutindo: a "doutrina paulina". E ele admitiu que ela era verdadeira em "algum" sentido que levaria as pessoas a pensar que ela "poderia" excluir seu oposto aparente - a genuína liberdade dos homens e mulheres. Mas é claro que, porque Deus não pode mentir, as verdades não se contradizem no nível último. Deus é soberano e a criatura é livre.

Como deixou claro em sua magnum opus sobre literatura inglesa, C. S. Lewis a entendia como a razão básica para a exuberância dos primeiros tempos da Reforma. "Dessa humildade leve, desse adeus ao eu e a todas as suas boas resoluções, sua ansiedade, seus escrúpulos e sua sondagem de motivos, saíram todas as doutrinas protestantes originais. Pois é preciso compreender com clareza que elas não eram, em princípio, doutrinas de terror, e sim de alegria e esperança; na verdade, mais que de esperança, de fruição, pois, como disse Tyndale, o homem que se converteu já está provando da vida eterna. A doutrina da predestinação, diz o Artigo 17, é 'repleta de doce, agradável e indizível conforto para as pessoas piedosas'. [...] Alívio e leveza são as notas características." É difícil deixar de perceber a simpatia consumada de Lewis por essa ideia.

Lewis não nega a genuína liberdade humana (como a Confissão de Fé de Westminster também não), mas recusa-se terminantemente a instalar a doutrina da soberania na cama de Procusto da doutrina da liberdade genuína, ou vice-versa. Essa recusa soa como transigência aos hipercalvinistas deste mundo e parece inconsistente ao racionalismo frio do arminianismo. Mas é, não obstante, a posição confessional reformada. Como Ransom descobriu em Perelandra, liberdade e necessidade são a mesma coisa. [Nota minha: essa é uma cena de um dos livros ficcionais de Lewis; Perelandra é o nome do segundo livro da trilogia espacial, e é também o nome do lugar onde se passa a aventura ali narrada.] Um dos teólogos favoritos de Lewis foi o anglicano elizabetano Richard Hooker, que era protestante extremado quanto às doutrinas da graça. Os Trinta e Nove Artigos, citados por Lewis acima, são uma maravilhosa declaração da fé da Reforma, e Lewis foi um eclesiástico conservador que entendeu o contexto original desses artigos - o que não pode ser dito de muitos daqueles que os subscrevem hoje. Ele entendeu a eficácia da graça, a soberania da graça, a "graciosidade" da graça. Quando Jill quis ir às águas, disse que havia chamado por Aslam. Mas Aslam observou que ela não teria chamado por ele a menos que tivesse sido chamada por ele. [Outra nota minha: essa é outra cena de um dos livros ficcionais de Lewis, A cadeira de prata, o quarto volume da série As crônicas de Nárnia.]

Mas qual é a importância disso? Não estou escrevendo para que lutemos contra os anglocatólicos e os evangélicos modernos pelo corpo de Moisés. Estou dizendo essas coisas para que nossos VRs, os verdadeiros reformados entre nós, sintam-se encorajados a aprender algo que realmente precisam aprender. C. S. Lewis tem muito a ensinar aos ferrenhos defensores dos cinco pontos, mas abandonar os cinco pontos não é uma das lições. Uma vez, alguém fez uma declaração maravilhosa sobre Lewis: ele tornou a retidão legível. Do mesmo modo, ele fez com que as doutrinas da predestinação e da justificação inundassem os pecadores com doce alívio. Ele não fez isso ao nosso infeliz modo "agradável ao ouvinte" ["seeker friendly"] de tratar tudo com condescendência e de modo pouco inteligente. Ele não confundia inteligência com ininteligibilidade, nem ser inteligível com falar em linguagem infantil. Ele pressupunha a inteligência do leitor, e escrevia para ela.

Isso não significa endossar cada detalhe do que Lewis possa ter escrito. Reli recentemente suas Reflections on the Psalms, livro ao longo do qual ele diz algumas coisas apavorantes. Mas a coisa mais esquisita é que ele era um escritor gracioso e edificante, mesmo quando se ocupava em defender algum de seus erros. Eu prefiro Urias bêbado a Davi sóbrio, e recebi mais bênçãos de alguns dos piores livros de Lewis (incluindo o Reflections) que de material ostentosamente reformado, ortodoxo dos pés à cabeça. E isso nos leva de volta ao que afirmei acima. As verdades que Lewis apresenta são legíveis, compreensíveis e completamente amáveis, mesmo quando ele está errado. Ele amava as verdades que apresentava, e era um homem tão talentoso que tornava amável tudo aquilo que amava.

Muitos pastores da tradição reformada ortodoxa precisam aprender essa lição em particular. Mais beleza ao moldar as palavras não diminui a porção de verdade que elas carregam; pelo contrário, a beleza a aumenta drasticamente. As belas palavras que Naftali pronuncia não deslocam as palavras que carregam o significado. Um colar de pérolas no pescoço de uma mulher bonita não é algo estranho ao conjunto.

Um homem que é chamado para fazer uso das palavras, como são os ministros, e que ignora o aspecto estético delas a fim de se concentrar na "verdade" está, de fato, em guerra contra a verdade. Em vez de dar à mulher bonita um colar de pérolas, ele lhe dá uma coleira canina, e depois finge que fez isso porque ama e respeita essa mulher.

Ame sua fé como Lewis fazia, e vista-a com beleza.