31 de dezembro de 2012

Personalidade absoluta - parte 1

Em diversas oportunidades, quase sempre conversas informais com amigos, afirmei - talvez não exatamente com essas palavras - que o dilema entre causalidade e casualidade é típico do materialismo. Esse dilema brota de uma tensão entre o racionalismo e o irracionalismo: metafisicamente, ao primeiro estão ligadas ideias como o determinismo, leis ou "causalidade irrestrita" (expressão cunhada por Einstein, se bem me lembro), ao passo que ao segundo se relaciona a ideia de aleatoriedade, caos ou acaso. Na época, eu ainda não havia lido de Cornelius Van Til algo mais que citações isoladas, e portanto não sabia que ele já havia trabalhado com as categorias de "racionalismo" e "irracionalismo", mostrando que são duas faces da apostasia humana não totalmente opostas entre si, apesar do que sugerem os termos. Em outras palavras, essas duas categorias não são completamente dissociáveis, o que significa que na cosmovisão de um incrédulo sempre encontraremos elementos de ambas. Eu nunca havia pensado nesses termos, mas já faz tempo que percebi que o cristão precisa transcender essas categorias a fim de fazer justiça à revelação bíblica. Por conseguinte, percebi também que racionalismo e irracionalismo são farinha do mesmo saco (como afirmei aqui em conversa com Alan Myatt), de modo que o cristão que toma partido entre eles, ou que toma um dos dois como "mal menor" em um sentido absoluto, possui uma cosmovisão contaminada em algum grau pelo materialismo.

Acabo de falar em transcender as categorias de racionalismo e irracionalismo, causalidade e casualidade, determinismo e aleatoriedade, leis e caos. Mas eu nunca tinha feito uma tentativa séria de explicar como e por que devemos fazê-lo, e como é uma cosmovisão que não o faz. Vários meses atrás, porém, fiz uma exposição mais extensa dessa ideia à Norma, minha amada esposa, durante um almoço na praça de alimentação de um shopping center. Não por acaso, na ocasião estávamos lendo juntos a Apologética cristã de Van Til, em uma de nossas quase intermináveis leituras conjuntas. Nesse dia, como frequentemente acontece, a leitura avançou bem pouco, mas rendeu uma longa e proveitosa conversa. Expus à Norma minha visão de que o ateísmo é fundamentalmente uma recusa da personalidade (ou pessoalidade, caso se prefira). Ocorreu que a Norma julgou esse tese suficientemente interessante para tomar notas na folha em branco do final do livro enquanto eu falava. Outro dia achei essas notas enquanto mexia nos nossos livros, e isso me incentivou a elaborar essa percepção em um texto - que é, de longe, o modo pelo qual expresso melhor minhas ideias. Portanto, o que farei na presente série, em três postagens, é uma exposição sobre os motivos pelos quais considero válido e proveitoso encarar o ateísmo como um modo de recusa da personalidade, e que isso tem implicações relevantes para a apologética.

Sobre esta exposição, convém fazer desde já dois esclarecimentos. O primeiro é que não farei aqui nenhuma distinção entre "materialismo" e "ateísmo", que tomo como sinônimos no texto a seguir. E tudo o que direi se aplica também ao agnosticismo, ao ceticismo e a todas as demais vertentes aparentadas que porventura existam. Há contextos em que traçar distinções entre essas variantes é necessário e útil, mas isso é de todo dispensável para os propósitos da presente exposição. E o segundo esclarecimento é que este texto não é muito mais que um rascunho, e ao redigi-lo estou bem menos preocupado com a forma e a sequência das ideias do que costumo estar ao escrever. Escrevi o texto mais para mim mesmo que para os outros, e não estou, no momento, em condições de desdobrá-lo devidamente. Só me resta, portanto, esperar que, apesar disso, o resultado seja claro o suficiente e contar com a benevolência dos leitores.

Vale a pena dizer que a percepção que exponho neste texto foi não só endossada, mas também generalizada por um dos últimos livros que li: Apologetics to the Glory of God [Apologética para a glória de Deus], de John Frame. Nessa obra, o autor desenvolve, dentre outras coisas, uma linha apologética baseada na ideia do Deus bíblico como "personalidade absoluta", o que inclui a percepção de que só a cosmovisão bíblica e outras por ela influenciadas concebem a realidade última como pessoal. Por conseguinte, a recusa da personalidade seria a marca fundamental não somente do materialismo, mas também de cosmovisões de caráter pagão ou oriental. Dessa forma, Frame argumenta que defender a "personalidade absoluta" implica na defesa do cristianismo bíblico. Eu considero essa tese válida e pertinente, mas carente de maiores desenvolvimentos, que não foram feitos no livro, e que eu mesmo não me julgo qualificado para fazer. Por ora, então, limito-me a registrar esse interessantíssimo endosso de Frame, implícito em uma exposição cuja perspicácia é muito superior à minha, e recolho-me à tarefa muito mais modesta de explicar aquilo que conheço bem, a saber, a recusa da personalidade no ateísmo. Retroativamente, o que estou fazendo é apenas desenvolver a tese de Frame aplicando-a a um caso mais restrito. Mas, diante do exposto, creio que é mais justo dizer que, quanto à questão do racionalismo e do irracionalismo, a eventual incoerência da cosmovisão de um cristão é uma concessão, não tanto especificamente ao materialismo, como eu dizia antes, e sim, talvez, ao que há em comum entre todas as formas de apostasia.

Cabe esclarecer também que, quando falo no ateísmo enquanto recusa da personalidade, não estou me referindo apenas às consequências supostamente científicas do dogma materialista. A psicologia do século XX de fato testemunhou a negação da consciência pelo behaviorismo, e goza de certa popularidade a filosofia da mente de Daniel Dennett. Na verdade, todos ao menos já ouvimos falar no costumeiro reducionismo que busca explicar nossos estados mentais e emocionais em termos de reações químicas no sistema nervoso, e depois alardeia essa bobagem patentemente autocontraditória como um grande progresso das luzes da ciência contra o obscurantismo religioso. C. S. Lewis escreveu brilhantemente sobre isso há mais de meio século, num ensaio do qual ofereci um resumo nesta postagem, e não pretendo fazer acréscimos nessa linha. No entanto, tenho uma razão importante para mencionar que o materialismo, se levado às últimas consequências, implica na negação da personalidade dos seres humanos, inclusive do indivíduo ateu que nega pessoalmente sua própria personalidade: é que, como em qualquer reductio ad absurdum, trata-se de um corolário que surge apenas como sintoma de um erro mais profundo e já presente desde o começo. O erro, no caso, consiste justamente no fato de o materialista considerar que a realidade é impessoal em última instância, sendo composta de energia existente no tempo e no espaço, governada por leis impessoais. De um arché impessoal não poderia resultar senão a inexistência real da personalidade. Mas aqui pretendo dar menos atenção às consequências finais e mais ao erro primordial.

O racionalismo e o irracionalismo estão ligados a uma preferência ou conforto em relação a um de dois modos pelos quais os fatos e eventos se nos apresentam: a presença ou a ausência de regularidade. As regularidades trazem como implicação a manifestação de padrões, a existência de nexos causais, cuja compreensão e generalização resultam no estabelecimento de leis que definem e descrevem a ocorrência de tais fatos e eventos. O racionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia de uma regularidade irrestrita que se sobrepõe a todos os fatos do universo, por mais dfícil que seja, na prática, discernir as leis e encaixar todos os fatos conhecidos em uma teoria unificada. Dessa aplicação irrestrita de um nexo causal inquebrantável decorre o determinismo. Embora eu esteja usando aqui o termo "racionalismo" em sentido consideravelmente amplo, o melhor exemplo dessa atitude que me ocorre vem de um racionalista no sentido estrito, Baruch Spinoza, cuja crença no determinismo decorria da confiança dogmática de que as eventuais ausências de regularidade observadas no mundo são apenas aparentes e decorrem unicamente de nossa ignorância quanto às causas que as produzem.

Já o irracionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia oposta. Trata-se de um espírito muito diferente do primeiro, sujeito a outros ídolos e tentações. Uma regularidade inescapável lhe parece demasiado sufocante, e seu coração exulta com a ideia da imprevisibilidade, do acaso, da transgressão de todas as regras, de um lugar autêntico para o absolutamente novo e original. Ele prefere o caos ao cosmos, e tende a dispensar as regularidades como irrelevantes, como exageros, ou mesmo como invencionices de uma mente ou cultura racionalista em demasia; ele vê no acaso a realidade fundamental. Decorre daí a simpatia pelo relativismo que é natural em ambientes culturais (ou subculturais) que aderem a tais valores. Creio que Paul Feyerabend, o célebre anarquista epistemológico do século XX, cai bem como exemplo típico do modo de ser irracionalista.

Acredito, como Van Til, que esses dois modos de ser são apenas dois polos de uma mesma estrutura de pensamento: pode-se preferir o racionalismo ou o irracionalismo, e nesse caso um dos dois polos dominará a cosmovisão do incrédulo, ainda que nunca de modo a excluir o outro polo. Pode-se também, embora isso seja um tanto difícil, alcançar um meio-termo, no qual ambos coexistem sem que nenhum prevaleça efetivamente sobre o outro. Com isso, ao menos se faz alguma justiça ao fato de que o mundo apresenta tanto regularidades quanto não-regularidades. Nesse caso, todavia, o melhor que se pode obter, aproveitando uma metáfora que Lewis usou em outro contexto, é algo semelhante a uma mistura entre óleo e água. O materialismo não tem nada melhor a oferecer em termos de explicação última. Pode-se notar isso, por exemplo, nas discussões dos físicos e filósofos materialistas sobre as implicações ontológicas da mecânica quântica, cuja teoria é inerentemente probabilística: há quem, com Spinoza, defenda um determinismo absoluto por trás do indeterminismo aparente, e há quem, com Hume, leve as aparências a sério a ponto de restringir o alcance da causalidade e permitir que ao menos alguns dos eventos do universo físico sejam inerentemente aleatórios em um sentido absoluto. Dentro da cosmovisão materialista, acaso e determinismo são as duas únicas soluções disponíveis, e são ambas impessoais; por isso mesmo, nenhuma resolve o problema.

Tudo muda radicalmente, e de várias formas, quando passamos a encarar o mundo como resultado do desígnio de um Deus pessoal, como o cristianismo nos ensina a fazer. Pois a vida e os desígnios de uma pessoa não se reduzem às duas categorias precedentes: há regularidade sem que haja determinismo, e há também quebra da regularidade sem que haja aleatoriedade. Há no modo de ser pessoal um elemento que escapa a tais reducionismos, e ao qual dou o nome de "liberdade". Esta se opõe tanto ao determinismo da cadeia causal de eventos quanto ao acaso cego dos fatos que surgem de lugar nenhum; não se confunde com o mecanicismo dos materialistas, nem com o fatalismo dos pagãos, e tampouco com o livre-arbítrio dos sinergistas ou a libertinagem ontológica dos existencialistas. Ao ouvir falar nessa liberdade, o racionalista me acusará de apelar ao acaso, e o irracionalista dirá que recorro ao determinismo. Mas estarão ambos errados: a personalidade não é compatível com uma simples aleatoriedade nas escolhas, e tampouco se encaixa como simples elo adicional em uma cadeia de eventos causalmente determinados de antemão. E, na verdade, acrescentar o adjetivo "pessoal" a um ou outro, falando em "determinismo pessoal" ou "acaso pessoal", é apenas um subterfúgio verbal que não ajuda a torná-los menos impessoais.

30 de novembro de 2012

A filosofia das contradições

Há cerca de quatro meses, um irmão em Cristo e grande amigo meu me fez por e-mail uma pergunta de ordem apologética. Disse ele:

"Gostaria de te perguntar uma coisa que pode esclarecer uma dúvida minha. Se não esclarecer, pelo menos jogar alguma luz sobre a questão. Como sei que você é um leitor voraz da Bíblia e de literatura cristã, além de no passado ter debatido com alguns ateus, imagino que você já tenha se perguntado ou sido questionado a respeito do seguinte. Mateus e Lucas fazem descrições distintas do nascimento e dos primeiros anos da vida de Jesus. Até aí, problema nenhum; mas eu encontrei uma diferença que me chamou à atenção: Lucas relata que José e Maria moravam em Nazaré e foram para Belém apenas para se recensear, enquanto que Mateus nos dá a entender que eles não moravam em Nazaré e só foram para lá porque o filho de Herodes (o grande), Arquelau, governava a Judeia.

Você já viu alguma explicação ou comentário sobre isso ? Eu pesquisei algumas coisas na net, mas nada que me convencesse. Primeiro tinha o pessoal da Superinteressante usando esse episódio e outros para pichar a bíblia, sempre dando aquele viés implícito do que o que está relatado ali não é confiável. Depois achei uns tais Jovens Redentoristas (acho que são cristãos católicos) dizendo que a intenção dos evangelistas, no relato do nascimento e primeiros anos de Jesus, é usar um estilo literário (do qual não me lembro o nome) que visa identificar o Senhor com outros grandes homens de Deus (no caso, Mateus estaria fazendo um paralelo entre Jesus e Moisés, devido à referência ao Egito e ao fato de Jesus ter sobrevivido ao assassinato dos infantes). Internamente, a explicação até parece fazer algum sentido, mas tenho dificuldades em conciliar essa ideia com o que Lucas diz que vai fazer na introdução do seu evangelho."


O que farei a seguir é transcrever, com algumas alterações editoriais, a resposta que dei ao meu amigo. Faço isso por estar sem tempo para escrever coisas novas, e também porque me parece que a pergunta dá ensejo a considerações interessantes cujo alcance é bem mais amplo que a discussão desse caso específico, permitindo que eu exponha a visão que considero mais sadia acerca das aparentes contradições internas nos relatos históricos das Escrituras. Não obstante, é claro que as considerações abaixo não têm qualquer intenção de esgotar o tema.

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Eu de fato já havia notado essas diferenças, e não falta quem desqualifique, total ou parcialmente, a historicidade dos evangelhos por causa de coisas desse tipo. Um exemplo é John Paul Meier, sobre cujo livro comentei aqui, para quem esse e outros problemas impossibilitam a obtenção de qualquer informação confiável sobre a infância de Jesus.

Podemos resumir o problema da seguinte forma: se tivéssemos à disposição apenas Mateus, provavelmente entenderíamos que José e Maria eram de Belém, que fugiram para o Egito logo após o nascimento de Jesus e que, ao retornar (sabe-se lá depois de quanto tempo), se mudaram para Nazaré por medo de Arquelau. Por outro lado, se tivéssemos à disposição apenas Lucas, concluiríamos que José e Maria eram de Nazaré, foram para Belém apenas para o recenseamento, depois estiveram em Jerusalém por um curto período e voltaram para casa, em Nazaré. Mateus não traz o episódio do recenseamento e, portanto, não diz que o casal era oriundo de Nazaré; ele tampouco menciona a passagem por Jerusalém. Lucas, por outro lado, não menciona a fuga para o Egito, nem diz que José e Maria consideraram, por algum momento, a ideia de morar em Belém. Tomados isoladamente, portanto, os dois evangelhos sugerem sequências de eventos razoavelmente diferentes. Resta saber se é possível conciliá-los.

Na verdade porém, acredito que o problema é mais filosófico. Antes de acusar o texto bíblico (ou qualquer outro documento histórico) de contradição, é necessário verificar a própria natureza de um documento histórico. Isso é especialmente importante para nós, que somos da área de exatas e estamos mais acostumados a pensar em termos de "igual" e "diferente", matematicamente falando. A realidade histórica é mais complexa, como a própria vida. Nos parágrafos seguintes, mediante três breves exemplos, buscarei mostrar como contradições aparentes podem não sê-lo de fato.
 
1. Para começar, cito um exemplo da própria Bíblia. Mateus 27.5 nos informa que Judas Iscariotes se enforcou, mas Atos 1.18 nos diz que ele foi partido ao meio. Até onde vai meu conhecimento, realmente não podemos saber como foi a morte de Judas nesse nível de detalhamento, porque só temos esses dois versículos sobre o assunto. Podemos imaginar várias soluções possíveis: a) Mateus diz que ele "foi enforcar-se", não que chegou a fazê-lo; então talvez o método de suicídio escolhido, no fim das contas, tenha sido outro; ou b) talvez Judas tenha sido partido ao meio só depois da morte, ao ter seu cadáver jogado em um precipício; ou c) talvez ele tenha montado a forca à beira de um precipício, e a estrutura toda cedeu, derrubando-o lá embaixo.

Não é meu objetivo descartar nem promover alguma dessas soluções, nem qualquer outra concebível. O que pretendo é apenas extrair duas lições desse exemplo. A primeira é que a questão sobre se há ou não uma contradição não se resolve simplesmente pela razão "analítica", pois os documentos históricos não trazem (e não têm a obrigação de trazer) todas as informações que gostaríamos que contivessem, de modo que as lacunas precisam ser preenchidas pela imaginação. O que não podemos fazer, naturalmente, é confundir nossa imaginação com o conteúdo do próprio registro histórico, deixando de reconhecer as incertezas inerentes a ele.

A segunda lição é que, ao afirmar que uma contradição é insolúvel, estamos dizendo apenas que não há nenhuma solução imaginável. Naturalmente, a falta de imaginação do acusador pode ser um fator que o impede de ver uma solução existente. E, no caso de eventos ocorridos em contextos muito distantes do ponto de vista cultural, histórico e geográfico, o próprio distanciamento do historiador pode impedi-lo de ver o que era muito claro para quem vivia no mesmo contexto do narrador. Isso se relaciona fortemente com a falta de humildade frequentemente detectada em "estudiosos" que, como Voltaire, se comprazem em identificar contradições pretensamente insolúveis em textos como os da Bíblia, e o fazem porque estão sempre muito mais propensos a desconfiar da honestidade dos outros que de sua própria capacidade intelectual. Aliás, também não é à toa que muitas das mais estapafúrdias acusações de contradição vêm de indivíduos racionalistas que, além de raciocinar mal, têm atrofiada a faculdade imaginativa.
 
2. O segundo exemplo que dou é extrabíblico, mas também histórico. Existem dois relatos sobre o julgamento de Sócrates, o de Platão e o de Xenofonte, ambos os quais foram discípulos diretos do réu e, ao que parece, testemunhas oculares do evento. Apesar disso, existe uma contradição aparente em certo ponto. Quando Sócrates foi condenado, segundo a lei de Atenas, ele tinha o direito de propor uma pena para si próprio, uma espécie de fiança. Xenofonte diz que ele se recusou a fazê-lo, porque isso iria contra sua consciência de não ter cometido crime algum. Mas Platão nos diz que ele primeiro alegou ser muito pobre, por isso só podia oferecer uma quantia irrisória. Porém, seus discípulos fizeram uma "vaquinha" e o convenceram a oferecer uma soma maior, paga por eles, e foi o que ele fez.

Apesar das aparências, não creio que haja uma contradição real aqui. Ao contrário, vejo na atitude de Sócrates, tal como narrada por Platão, certa dose de ironia. Na primeira parte, é como se ele dissesse: "Vocês querem uma fiança? Bom, eu posso dar... vejamos..." Enfia a mão nos bolsos e tira um punhado de moedas. É óbvio que ele sabia que isso não seria aceito, e talvez até irritasse os juízes. No segundo momento, ele faz questão de deixar claro que o dinheiro e a insistência são dos discípulos, de onde se deduz que, por ele, aquilo tudo era desnecessário. Se fosse escapar da morte, não seria com seu próprio dinheiro. Acredito que Xenofonte, em tudo bem mais sintético que Platão ao relatar o julgamento, simplesmente captou o espírito da reação de Sócrates, sem se apegar aos detalhes do que foi dito ou não.

Isso nos leva ao fato de que o historiador, ao relatar o que quer que seja, necessariamente faz uma seleção dos fatos a apresentar e do nível de detalhamento com que os apresenta, pelo simples motivo de que não é possível registrar absolutamente todos os fatos com grau máximo de detalhe. E, nessa empreitada, ele é guiado não só por sua própria capacidade de conhecimento dos fatos e honestidade ao retratá-los, mas também pelos objetivos que tem em vista ao escrever o relato. Ele pode omitir ou simplificar algumas partes que, de outro ponto de vista, poderiam ser consideradas muito importantes, sem que isso necessariamente constitua mentira, desonestidade ou incompetência - e sem que seu relato deixe de ser verdadeiro.
 
3. O terceiro exemplo é não-histórico; na verdade, fictício, mas que reproduz situações que podem muito bem ocorrer na vida real. Espero que esse exemplo sirva para mostrar a conexão entre os problemas da investigação histórica enquanto ciência e a vida, em sua complexidade e pessoalidade, dos personagens históricos que são alvo dessa investigação.

Suponhamos que eu vá ao shopping sozinho durante um dia comum no meio da semana. E que depois eu vá ao trabalho e conte sobre isso a um colega: "Hoje almocei no shopping e fui comprar um novo mousepad, porque o meu aqui está muito ruim. Sabe quem estava lá? O filho do chefe. Mas não pude conversar muito com ele porque estava com pressa de voltar logo ao trabalho". E suponhamos ainda que, chegando em casa, eu conte também à Norma, minha esposa, sobre a ida ao shopping, nos termos seguintes: "Fui até lá para comprar a lâmpada para substituir a da cozinha, que queimou. A loja não estava aceitando cartões, então tive de ir ao caixa eletrônico, onde enfrentei uma fila gigantesca. No caminho de volta à loja, encontrei o pastor e a mulher dele. Conversamos um pouco, depois vim embora".

Se tanto a Norma quanto meu colega de trabalho resolvessem escrever relatando nossa conversa, e um historiador racionalista tivesse acesso a esses relatos daqui a alguns séculos, concluiria que eu menti para um dos dois, ou para ambos. E, caso ele aplicasse a mim os mesmos critérios que alguns ateus de Superinteressante aplicam a Jesus Cristo, o historiador poderia até concluir que nunca existi. Sua conclusão estaria amplamente justificada por uma enorme quantidade de "contradições": os relatos não concordam quanto ao que fui fazer no shopping, nem quanto a quem encontrei lá; um diz que almocei lá, e o outro não; um menciona minha ida ao caixa eletrônico, e o outro não; e assim por diante.

No entanto, tudo se esclarece quando são ponderados os motivos que me levaram a fazer dois relatos diferentes. A Norma não conhece o filho do gerente, de modo que eu podia não ter razões específicas para mencionar sua presença no shopping. Da mesma forma, o colega de trabalho não conhece o pastor, nem teria interesse em saber de tal encontro. Eu posso ter ido até lá motivado principalmente pela lâmpada, e aproveitei para comprar o mousepad; ou vice-versa. E mencionar que almocei no shopping pode ter sido relevante para o meu colega, pois assim ele ficaria sabendo por que saí do trabalho um pouco mais cedo na parte da manhã; mas poderia não ter relevância alguma para a Norma, pois eu habitualmente não almoço em casa. E assim por diante. O historiador do futuro estaria completamente equivocado por deixar de perceber o fato óbvio de que esse tipo de seleção é algo que fazemos o tempo todo ao contar coisas às pessoas, ainda que não seja nossa intenção esconder nada de ninguém.

Além disso, convém notar também que alguém que quisesse reconstituir os detalhes de minha ida ao shopping não poderia fazê-lo por pura falta de dados, sobretudo se não tivesse a opção de me perguntar a respeito. Por exemplo: o episódio da loja de lâmpadas e da ida ao caixa eletrônico se deu antes ou depois do almoço? Antes ou depois da ida à loja de informática? Antes ou depois do encontro com o filho do chefe? Encontrei-o no trajeto entre as lojas, na praça de alimentação, na fila do caixa eletrônico ou no banheiro? Fiz no shopping outras coisas além das que mencionei em uma das duas conversas? Com base apenas nos dois breves relatos, que não tinham a menor intenção de ser exaustivos, apesar de verídicos, essas perguntas são todas irrespondíveis.

Acredito que, depois de explorados esses três exemplos, a conexão deles com o caso dos evangelhos se torna um tanto óbvia. Mateus e Lucas pretenderam dizer (e disseram) a verdade, mas não de modo exaustivo, e sim seletivo, enfatizando cada um aquilo que lhe pareceu relevante do ponto de vista dos objetivos de seus escritos e do público imediato a que se destinavam. Esses objetivos incluem as ênfases teológicas, mas não se limitam a elas. Essa inevitável seleção leva naturalmente à omissão de outros fatos que, embora verdadeiros, atrapalhariam o curso escolhido para a narrativa. De modo análogo, se eu escrever uma biografia do Pelé com ênfase em sua vida profissional, certamente desconsiderarei fatos que seriam relevantes para um biógrafo que tratasse primariamente de sua vida particular.

No caso da vida de Cristo, a coisa se torna um pouco mais complicada pelo fato de que os evangelistas, embora descrevessem de modo fidedigno os eventos, não escreveram biografias no sentido moderno. Prova disso é que Marcos e João não trataram de nada anterior ao início do ministério público de Jesus, e nenhum dos quatro tratou de coisa alguma que tenha ocorrido dos doze aos trinta anos de sua vida. O mesmo pode ser dito de fatos e situações que foram mencionados por alguns e omitidos por outros. Tais omissões seriam imperdoáveis em um biógrafo moderno, mas foram feitas porque os evangelistas entenderam que não era necessário relatar determinadas coisas para transmitir sobre Jesus Cristo aquilo que o mundo precisava saber, e continua precisando até hoje.

31 de outubro de 2012

A pobreza do vocabulário

Hoje vou compartilhar uma reflexão sobre filosofia política. Trata-se de algo que eu já tinha constatado há muito tempo, mas cujas implicações percebi mais profundamente depois de presenciar uma breve conversa, da qual não participei, entre dois conhecidos meus. Sendo assim, creio que é oportuno comentar algo sobre essas pessoas, cujas identidades não vêm ao caso e às quais, portanto, me referirei como Alfa e Beta. Ambas são pessoas de quem gosto muito e que já me ajudaram em diversas ocasiões. São também pessoas cuja perspicácia se manifesta com frequência, inclusive em assuntos políticos e culturais. Eles não se consideram conservadores, e de fato não o são, mas ambos têm momentos de lucidez caracteristicamente conservadores.

Feita essa descrição sumária, posso resumir o trecho relevante do diálogo, que começou quando Alfa se referiu a si mesmo como "pobre". Beta discordou: para ele, Alfa não deveria se considerar pobre, pois está em situação muito melhor que muita gente por aí. Alfa protestou, alegando que ninguém pode se achar melhor que os outros só porque ganha um pouco melhor, que sua contestada "pobreza" é especialmente evidente se comparada à situação dos ricos de verdade, e que qualquer um que precisa trabalhar duro para garantir seu sustento é, sim, um pobre. Não lembro exatamente qual foi a resposta de Beta, mas ele mencionou algo no sentido de que não há virtude alguma em ser pobre. Alfa disse que os vermes comerão indiferentemente pobres e ricos; Beta concordou, mas ressaltou que isso não anula as diferenças de estilo de vida que existem enquanto esse momento não chega. Pouco depois, a conversa precisou ser interrompida e Beta se ausentou. Continuei na presença de Alfa, que então se dirigiu a outra pessoa para enunciar a conclusão, mais ou menos nestes termos: "Beta se acha superior só por causa de seu salário". E a outra pessoa concordou, lamentosa.

Beta e Alfa são ambos, segundo qualquer critério razoável (excluindo, dessa forma, o do atual governo), cidadãos de classe média - média-alta, talvez, mas não mais que isso. Objetivamente, portanto, Beta tem razão: nem ele nem Alfa são pobres, e há, de fato, uma diferença considerável de poder aquisitivo entre qualquer um deles e uma família em que os membros ganham um ou dois salários mínimos cada um. Conheço Beta bem o suficiente para saber que, ao rejeitar a autodesignação de "pobre" feita por Alfa, sua principal preocupação era se contrapor à aparência de ingratidão pelo que a vida lhe oferece. Não creio que Beta se considere ontologicamente, moralmente ou espiritualmente superior a um pobre (ou inferior a um rico) por causa do salário que recebe e, ainda que se considere assim, isso não pode ser inferido de modo legítimo a partir de suas palavras naquela conversa. Ao dizer que não era pobre, ele estava apenas usando o termo de modo descritivo, segundo sua acepção convencional.

Para Alfa, ao contrário, a palavra "pobre" não descreve a renda ou o patrimônio material de uma pessoa ou família, e sim expressa um conjunto de valores e lealdades. Quem se reconhece como pobre está, dessa forma, identificando-se como trabalhador e está, além disso, e não sem humildade, expressando o repúdio à pretensão de julgar as pessoas por suas posses materiais. Com isso, o autointitulado pobre recusa-se a se considerar melhor que pessoas que têm menos que ele. Por sua vez, quem nega ser pobre está assumindo a postura diametralmente oposta: essa pessoa não só mede o valor de um ser humano desse modo, mas também identifica a si mesma com os que valem mais. Se essa pessoa em questão tiver mesmo muito dinheiro, a situação ja é ruim o suficiente; mas, se não tiver, é pior ainda, pois nesse caso somam-se a todos esses defeitos a presunção e a cegueira quanto à sua real situação. Tal caso constituiria a situação do pobre traidor ou, como diz a expressão popular, o "pobre orgulhoso", se não fosse politicamente incorreto usar a sublime palavra "pobre" em um contexto tão negativo.

Essa história me parece interessante porque sua análise proporciona um atalho bastante didático para o entendimento dos efeitos práticos dessa diferença de atitudes diante do termo "pobre". Mas isso só poderá ser entendido com clareza depois que forem compreendidas a razão e a origem dessa diferença. É disso tudo que trata minha reflexão, a qual passo a expor agora em poucas palavras.

No século XIX, uma dupla de intelectuais de miolo mole, Karl Marx e Friedrich Engels, decidiu começar seu Manifesto comunista com as seguintes palavras: "A história de todas as sociedades, até os nossos dias, tem sido a história das lutas de classes". Pensando ter encontrado nesse reducionismo besta a chave para a compreensão da história humana, a referida dupla tratou de dividir a humanidade em dois compartimentos: o dos ricos e o dos pobres. Além disso, declarou que esses dois grupos são irreconciliavelmente inimigos, que seus interesses não podem ser harmonizados de modo algum e que essa é a divisão última, a mais fundamental, a ser feita entre seres humanos; a ela, segundo a dupla, devem se subordinar todas as outras divisões possíveis. Tais disparates mostraram-se muito bem-sucedidos na guerra cultural, a tal ponto que muita gente as endossa de modo inconsciente e acrítico sem saber de onde vieram, sem jamais ter lido uma linha do Manifesto comunista e sem se considerar de modo algum um marxista - de fato, não é raro que quem fala assim sequer se considere de esquerda.

É essa a estrutura de ideias que está por trás das reações e discursos de Alfa. Para ele, não se reconhecer como pobre é se identificar com os ricos. E isso, longe de ser apenas uma declaração um tanto vaga sobre o valor econômico dos bens materiais de que se dispõe, representa uma profissão de lealdade em uma batalha de proporções cósmicas da qual ninguém pode se isentar. Quem com Marx não ajunta, espalha. Não se considerar pobre é, portanto, estar contra os pobres, é ser não só indiferente, mas também hostil aos pobres. Pouco importa que Beta pague mais que o valor de mercado a seus empregados e faça caridade com frequência (esses são dados reais). Além disso, quem nega ser pobre é um vagabundo confesso, pois Marx - que também era vagabundo, mas que não deve ser chamado assim, já que estava do lado dos pobres - pontificou que toda a riqueza do mundo é produzida apenas pelo trabalho dos pobres.

A disseminação da tese marxista sobre a luta de classes teve, portanto, ao menos três efeitos bastante negativos sobre essa breve conversa que presenciei. O primeiro é que as palavras "pobre" e "rico" não podem mais ser usadas para o propósito que lhes deu origem - isto é, designar alguém que tem poucos ou muitos bens materiais - sem causar um enorme mal-entendido. Essas palavras agora são bandeiras de adesão a lutas eivadas de conotações moralistas. Beta é rico, mesmo não ganhando o suficiente para tal, mas um milionário é pobre, se for socialista.

O segundo efeito negativo é que os efeitos desse mal-entendido não se restringem de modo algum à esfera cognitiva, mas levam a um julgamento, no mau sentido do termo: no fim das contas, Alfa julgou mal a atitude de Beta diante da pobreza por seu modo convencional de usar as palavras, em vez de fazê-lo por suas atitudes e opiniões expressamente declaradas sobre o assunto, e construiu, com base nisso, um juízo moral negativo acerca de seu interlocutor.

E o terceiro efeito negativo resulta da própria polarização da humanidade segundo critérios equivocados: a desconsideração de nuances e gradações. Segundo esse modo de pensar, Beta deveria se declarar pobre ou rico, pois essas são as categorias fundamentais do universo humano; ele já não tem o direito de se considerar mais rico que os pobres e mais pobre que os ricos. Ao invés de considerar as categorias "rico" e "pobre" como simplificações (úteis apenas em determinados contextos) de uma realidade social e econômica muito complexa, o cidadão cujas sinapses se encontram obstruídas pelo marxismo considerará essas nuances e gradações - expressões como "classe média", "nem rico nem pobre", "mais rico que", "mais pobre que" - como modos evasivos e um tanto perversos de negar, disfarçar ou atenuar a realidade fundamental da "luta de classes", que é o motor da história, identificado como tal no século XIX, e com base no qual se deve transformar a realidade, sem tempo a perder na busca de ulteriores compreensões.

Todo conservador já sentiu na pele a malícia preconceituosa embutida nesse modo de pensar, inclusive por parte de pessoas que, pessoalmente, pouco ou nada têm de maliciosas - como é, aliás, o caso de Alfa. Esse é um exemplo de como a doutrina marxista leva não só à confusão cognitiva, mas também, o que é mais grave, à desconfiança, ao preconceito, ao desprezo e, no limite, ao ódio contra quem não se identifica com o "lado certo" ou não usa as palavras do modo como deveria, segundo certa preferência ideológica. É assim que o marxista impõe a "ditadura do proletariado" no campo das ideias, crendo eliminar a riqueza como critério de valor pessoal apenas estabelecendo em seu lugar a pobreza - o que é, na melhor das hipóteses, trocar um materialismo por outro. E é o que faz também o não-marxista, qualquer que seja a medida em que compartilha desses pressupostos.

28 de setembro de 2012

Fragmentos de razões - parte 2

Nesta postagem, darei continuidade às considerações em torno dos comentários do Jorge ao meu post O direito ao mistério - parte 1. Depois de dizer o que já comentei na primeira parte da presente série, ele comentou quatro pontos específicos que levantei sobre o texto de Crampton. Não é necessário responder a isso de modo extenso, mas convém fazer uns poucos esclarecimentos antes de passar às partes mais interessantes.
 
1. O primeiro é minha contestação à aplicação que Crampton fez de 1 Coríntios 14.33 ("Deus não é de confusão"). Escrevi:

"O texto de onde foi retirada a citação do apóstolo não fala de confusão lógica, e sim de confusão litúrgica. Paulo está dando instruções para combater a desordem no culto, evitando a balbúrdia decorrente do uso desenfreado do dom de línguas, profecias e interpretações que se instalara na igreja de Corinto. Paulo ensina que devem falar um de cada vez, e que 'Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus não é de confusão e sim de paz'. Extrair daí uma lição sobre a existência ou não de elementos obscuros nas obras de Deus em geral (e de paradoxos lógicos nas Escrituras em particular) é desprezar uma das regras fundamentais da hermenêutica, que é a atenção ao contexto. Crampton começou, pois, dando ensejo a dúvidas sobre sua capacidade como exegeta."

Sobre isso, o Jorge comentou:

"Realmente, o texto [...] refere-se à ordem do culto, mas seria ela uma afirmação que não poderia ser usada como elemento da essência de Deus? Deus seria o caos? A desordem? Limitar a afirmação apenas para a ordem no culto é reduzi-la em sua proposição, quando Paulo está claramente a dar uma definição de Deus, quanto ao seu caráter, algo inerente à sua natureza. Portanto, não considero exagero e má exegese utilizar esse verso para se referir a Deus como Deus de ordem, não de desordem, como o Deus perfeito, não imperfeito."

Observo que o Jorge não entendeu bem o que eu disse. Do que declarei não se segue que o texto nada diga sobre a essência de Deus, nem que Deus seja caos ou desordem, nem que o fato de Ele não ser "Deus de confusão e sim de paz" não tenha implicações para além do contexto litúrgico. O problema é que Crampton usou o texto como prova de algo muito específico, a saber, que não existem paradoxos lógicos nas Escrituras. Para sustentar isso, seria necessário provar que a confusão de que fala o texto é de ordem lógica, no sentido analítico - ou, dizendo de outra forma, que um Deus de paz não poderia deixar de fornecer explicações suficientes para a harmonização lógica de tudo o que Crampton crê que deve ser harmonizado na revelação especial. Ou seja, o argumento de Crampton só é válido se for pressuposto que os termos bíblicos "confusão" e "paz" têm a carga semântica que ele lhes atribui, implicando que Deus não seria perfeito se não revelasse as coisas de determinada maneira. Como ele não demonstrou exegeticamente esse pressuposto, e sequer deu sinais de perceber que deveria fazê-lo, seu uso do versículo caracteriza fuga do contexto e má exegese. Não é demais lembrar que venho pedindo neste blog há dois anos que alguém complete o argumento de Crampton, e até agora não obtive sequer uma tentativa nesse sentido. Minha crítica continua, pois, de pé.
 
2. Esse ponto diz respeito ao posicionamento da Confissão de Fé de Westminster, que Crampton compreendeu tão mal quanto o versículo sobre a ordem no culto. O Jorge concordou comigo nesse ponto, dizendo que "os teólogos que a redigiram acreditavam em paradoxos, e Crampton ao se utilizar dela, dá um tiro no pé" e "foi um exemplo não muito feliz que Crampton usou, pois ela é claramente compatibilista". Falarei em outra ocasião sobre minhas ressalvas quanto a esse último termo. Por ora, basta apenas enfatizar algo que eu já disse na continuação da série O direito ao mistério: o mau entendimento da Confissão destrói um dos pontos centrais da tese do artigo, a saber, que a admissão de mistérios (ou paradoxos) nas Escrituras só penetrou no meio reformado por uma influência tardia do pensamento neo-ortodoxo. A simples existência da Confissão de Fé de Westminster é uma objeção fatal à sua visão da história.
 
3. Trata-se de outro ponto em que o Jorge discordou de mim. Depois de desmontar o (des)entendimento de Crampton sobre a Confissão, declarei o seguinte:

"Os teólogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relação ao assunto da predestinação, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua própria eleição e ver nessa doutrina motivo de louvor, reverência, admiração, humildade, diligência e consolo. O resto é invenção da cabeça de Crampton, que, além de mau exegeta, acaba de demonstrar que também não é bom leitor, já que não é capaz de distinguir entre seu próprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histórico que tem diante dos olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinação antes de dar louvores a Deus, se essa compreensão se lhe afigura um requisito para tributar a Deus aquilo que a Confissão prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os teólogos de Westminster deram sinais de não precisar disso para ter uma atitude correta diante de Deus."

Acerca desse trecho, em especial da frase destacada, o Jorge me disse que "há coisas que Crampton não diz que você diz que ele disse [...] uma indução para que Crampton diga o que na verdade não disse. [...] O autor não afirmou tais coisas. Acho que você está de 'birra' com Crampton (rsrs)."

No entanto, entremeando suas próprias palavras às da Confissão, Crampton declarou textualmente o seguinte:

"De fato, a doutrina 'deve ser tratada com especial prudência e cuidado' por homens que buscam 'a vontade de Deus [como] revelada em Sua palavra' (III,8). Isso certamente não seria possível com qualquer doutrina que não pudesse ser reconciliada pela mente do homem."

Crampton está dizendo com todas as letras que, se não puder entender racionalmente a doutrina da predestinação, não poderá tratá-la "com especial prudência e cuidado", que é o que a Confissão "prescreve como dever de todo crente", como afirmei. Mais adiante, Crampton diz que, se a Bíblia contivesse paradoxos, não seria um livro melhor que o Alcorão - de onde se segue que Deus não mereceria louvor por tê-la inspirado. Portanto, o que afirmei sobre Crampton foi dito por ele mesmo ou se segue logicamente do que ele disse. O Jorge, que dá tanto valor à lógica, não deveria me censurar por desenvolver as implicações lógicas do que está no texto para mostrar o quanto são absurdas. Aliás, toda vez que faço isso com um texto aparece alguém para reclamar que estou colocando palavras na boca do autor, quando na verdade estou apenas levando as palavras do autor mais a sério que ele próprio. Isso não é desrespeitar o autor; ao contrário, ele é que se desrespeita ao não assumir plenamente as implicações do que diz. Chamar isso de birra equivale simplesmente a não entender o que estou fazendo.
 
4. Crampton citou a seguinte declaração de John Gerstner: "Nós não vemos por que é impossível para Deus predestinar que um ato aconteça por meio da escolha deliberada de indivíduos específicos". Afirmei acerca desse trecho: "Devemos recordar que nenhum dos teólogos até agora criticados por Crampton, que são todos calvinistas, nega que tal coisa seja possível a Deus. Apenas negam compreender como Deus faz isso, o que não é a mesma coisa". Sobre isso, o Jorge comentou:

"Acontece que eles simplesmente não falam da predestinação, mas da liberdade humana para que ele seja responsabilizado. Ao mesmo tempo afirmar a soberania de Deus e a liberdade humana em que pese, sem ela, o homem não pode ser responsabilizado. A Bíblia, em nenhum momento fala que o homem tem de ser livre para ser responsável. Portanto, a Bíblia não criou o paradoxo, mas o homem, ao incluir um elemento alheio a ela. Quem está criando a confusão é o homem, não é a Escritura que tem."

Independentemente dos méritos ou deméritos das observações do Jorge, o fato é que ele foi muito além da função que minha declaração desempenha no texto, a qual não foi captada por ele de modo correto. Lido dentro do contexto, o trecho apenas serve de preparação para um argumento. Crampton disse que a afirmação de que algo é um paradoxo é subjetiva, e eu mostrei, naquele parágrafo e no seguinte, que, dadas as premissas de seu argumento, a negação de que algo seja um paradoxo é igualmente subjetiva. Usei as palavras acima para introduzir e esclarecer minha crítica, e nada além disso. Ao buscar a causa do suposto erro dos teólogos criticados por Crampton, o Jorge mudou de assunto, talvez sem perceber.

Feita essa observação, posso passar à tarefa de comentar o diagnóstico feito pelo Jorge sem o risco de endossar sua impropriedade enquanto crítica ao que estava sendo efetivamente tratado no meu texto. Não será um comentário exaustivo, mas suficiente para o momento. Na verdade, eu concordo em parte com o Jorge. Declarei logo no segundo parágrafo do primeiro post da série Sutilezas causais:

"A Bíblia não necessariamente nega a liberdade humana no sentido em que [...] a teologia reformada compreende esse termo. Mas também não lhe dedica a imensa atenção por ela recebida em muitos círculos teológicos cristãos, para não falar em amplos setores de diversas correntes humanistas. Portanto, existe uma chance considerável de que essa ênfase equivocada seja o produto da interferência indevida de uma cosmovisão antibíblica sobre a mente dos cristãos." 

É necessário ressaltar que, se a Bíblia não fala que o homem precisa ser livre para ser responsável, também não diz que não precisa. O argumento de McGregor Wright, endossado pelo Jorge, baseia-se apenas no silêncio e, como declarei antes, "o silêncio geralmente admite mais de uma interpretação". Concordo com o Jorge no sentido de que, em oposição a todos os tipos de arminianos e sinergistas, não vejo importância soteriológica na liberdade humana, e não considero que só podemos ser responsabilizados por pecados que poderíamos evitar. Mas não concordo que daí decorra a necessidade de um determinismo ontológico, no sentido de que todo evento tem uma causa que lhe é temporalmente anterior, ou de que a causalidade opera de modo a determinar univocamente o presente a partir do passado, e o futuro a partir do presente. Tais hipóteses ontológicas não só são desnecessárias para fazer justiça à revelação bíblica, mas também não estão declaradas na Bíblia. Por isso, ao defender o que defende, o Jorge também está acrescentando coisas aos dados bíblicos. A diferença entre nós é que ele não percebe isso.

Considero que alguma medida de liberdade ontológica (a não ser confundida com autonomia em relação ao decreto divino) é intrínseca à pessoalidade, e que esta não faz sentido sem aquela. Defenderei isso em um momento mais apropriado. Por ora, basta dizer que, pelas razões expostas no parágrafo anterior, acredito que o posicionamento do Jorge não é solução, e sim parte do problema por ele citado: a confusão criada pelo homem.

31 de agosto de 2012

Fragmentos de razões - parte 1

Dentre os comentários que recebo neste blog, com exceção de uns poucos que, por motivos diversos, não vejo proveito em publicar, há aqueles aos quais respondo com rapidez razoável e há os que passam meses ou anos sem receber resposta. A razão de tal demora geralmente reside no fato de que os comentários levantam objeções ao que digo, ou reflexões a respeito, ou ainda perguntas, que exigem mais que o que julgo apropriado fornecer na própria caixa de comentários, de modo que prefiro dar-lhes tratamento adequado em postagens novas e mais elaboradas. O problema é que, como meu tempo para escrever é sempre mais curto do que eu gostaria, algum assunto novo (digo, novo aqui no blog) quase sempre chama minha atenção antes que eu redija tais respostas, e assim elas vão sendo adiadas indefinidamente. Um bom exemplo disso aconteceu com um comentário feito no post Areias invasoras, em janeiro de 2009, ao qual respondi em uma série de três postagens, a última das quais foi publicada há apenas dois meses. Não sei a quantos comentários interessantes deixei de responder ultimamente, mas certamente superam uma dezena e, pelo meu levantamento preliminar, a maior parte se concentra em torno das minhas três séries de postagens que tratam, de alguma forma, do racionalismo no meio reformado: O direito ao mistério (partes um, dois, três e quatro), Sutilezas causais (partes um, dois, três e quatro) e O irracional dos racionalismos (partes um, dois, três, quatro e cinco). Na verdade, uma parte das questões interessantes levantadas nos posts mais antigos foi, assim espero, esclarecida nos mais recentes. Ainda assim, há pontos específicos, de graus variados de importância, acerca dos quais fiquei devendo respostas a várias pessoas.

Por isso, decidi começar hoje uma série de postagens destinada a lidar com esses pontos, sem intenção de me delongar no que já expliquei. Trata-se de um empreendimento bastante informal e livre, pois a natureza algo fragmentária do objeto não exige nada mais que isso. Não sei, portanto, qual será o tamanho ou a duração desta série, e tampouco tenho planejado de antemão tudo o que vou dizer. Naturalmente, nem tudo interessará a todos, e é bem possível que algumas coisas não interessem a ninguém além daquele a quem se dirigem em primeiro lugar. Mas cabe a cada leitor em potencial decidir o que vale a pena ler. A mim cabe apenas fornecer as respostas que prometi. E vou começar por aquele a quem devo mais e há mais tempo: meu querido irmão Jorge, que teceu comentários relevantes em três dos meus posts sobre o tema, a começar pelo primeiro deles, a primeira parte da série O direito ao mistério, em que teci críticas a um artigo Crampton em outubro de 2010. Depois de tecer alguns elogios, o Jorge disse:

"Porém (sempre há um porém), sabe que discordo de algumas de suas posições, e essa história de mistério e paradoxo veio bem a calhar para que o compreenda melhor. De cara, coloco a minha posição: não acredito em paradoxo na Bíblia. Como ela é infalível, inerrante e divinamente inspirada, crer nisso significaria acreditar que Deus quis que caíssemos em 'pegadinhas', ou então orientou desleixadamente os seus autores. Para o Deus sábio, santo e perfeito, isso seria impossível. Por isso, mesmo que eu não entenda e compreenda certas questões nela descritas (e é possível que eu não entenda muitas coisas por simples incapacidade intelectual, e a minha incapacidade intelectual não a tornará num livro de paradoxos), jamais afirmarei que existem antinomias na Bíblia."

Aproveitando, pois, a oportunidade de me explicar melhor à luz da declaração de posicionamento do Jorge, começarei dizendo que concordo que Deus não "quis que caíssemos em 'pegadinhas'", mas não pelo motivo apontado. Aliás, o uso da palavra "pegadinha" é bastante revelador, pois sugere que alguém induziu alguém ao erro - no caso, pela sugestão de que há uma solução filosófica completa para um problema que é insolúvel, de modo que os que acreditam na sugestão estão condenados a buscá-la à toa. Concordo com o Jorge quando diz que Deus não fez isso. A diferença entre nós é esta: o Jorge nega a "pegadinha" dizendo que a solução filosófica completa está disponível, e só não a vê quem tem compromissos filosóficos antibíblicos com o conceito de liberdade - que ele vê como sinônimo de autonomia, no sentido que Cornelius Van Til (mas não só ele) dava ao termo. Eu, por outro lado, digo que não há "pegadinha" porque Deus não só não forneceu essa solução filosófica completa, mas também não nos prometeu que ela estaria disponível. Com base nisso, devolvo a acusação dizendo que a insistência de que tal promessa foi feita é que se baseia em um compromisso antibíblico; no caso, com o ideal cartesiano de "clareza e distinção". Como apontei na terceira parte da mesma série, que o Jorge ainda não lera ao escrever seu comentário, Crampton errou ao atribuir nuances racionalistas a termos bíblicos como "verdade", "sabedoria" e conhecimento", e é só com base nesse erro que se poderia reclamar de uma suposta "pegadinha" divina.

A alternativa proposta pelo Jorge - "ou então orientou desleixadamente os seus autores" - padece do mesmo problema: dizer que algo foi feito desleixadamente só faz sentido à luz de uma comparação entre o resultado obtido e o pretendido. Em última análise, a acusação só teria sentido se Deus tivesse o propósito (ou a obrigação) de revelar tudo de modo "claro e distinto". Mas do fato de que alguns de nós desejam conhecer certas coisas dessa forma não se segue que Deus deseja ou é moralmente obrigado a nos prestar um relatório a respeito delas. Mas já escrevi sobre isso de modo mais amplo em textos posteriores.

Com respeito à última sentença do parágrafo citado, desejo esclarecer que concordo com o Jorge, se por ela se entender que a realidade criada não é incoerente aos olhos do próprio Deus. Mas a formulação do Jorge possui uma ambivalência que é importante trazer à luz: do fato de que a realidade é coerente aos olhos de Deus não se segue que o será também aos nossos olhos, nem mesmo potencialmente. Os irmãos de índole racionalista cujas posições tenho criticado aqui tendem a concentrar suas atenções nos aspectos formais da razão, consideradas de modo um tanto abstrato, identificando a inteligência com a faculdade analítica que é, na verdade, apenas um de seus aspectos. A existência de mistérios é um fato, seja nas Escrituras ou na revelação geral, não só, ou não tanto, por uma questão de aplicabilidade ou não das leis da lógica, mas porque o método analítico só pode atuar com segurança naquelas realidades das quais o investigador tem uma experiência profundamente concreta.

Voltarei a esse ponto ao discorrer sobre o parágrafo seguinte do comentário do Jorge. Convém, no entanto, repetir agora algo que mencionei também na terceira parte da série: considero errôneo o entendimento de Crampton de que a declaração de Isaías 55 sobre os pensamentos de Deus indica apenas uma diferença quantitativa, e não qualitativa. Esse desacordo tem seus efeitos no que estamos discutindo agora. Mas, como já demonstrei que o argumento de Crampton para sustentar sua tese é pífio, e ninguém até agora apresentou um melhor, limito-me a registrar a pertinência desse desacordo.

Antes de passar ao próximo parágrafo, cabe um breve comentário sobre esta honesta admissão do Jorge, feita de modo parentético: "é possível que eu não entenda muitas coisas por simples incapacidade intelectual, e a minha incapacidade intelectual não a tornará num livro de paradoxos". Tal humildade é louvável. Mas não vejo razão que exclua a possibilidade de, com respeito a alguns conteúdos da revelação bíblica, ou mesmo da revelação geral, a incapacidade intelectual do Jorge ser também a de toda a humanidade. E, uma vez concedida essa possibilidade, não vejo como evitar a possibilidade de que essa incapacidade universal seja constitutiva, e não contingente. Se tudo isso é possível - e deve ser considerado possível, pois nada prova o contrário - segue-se justamente aquilo de que falei acima: existem aspectos da realidade revelada que podem ser coerentes do ponto de vista divino sem que possam sê-lo do ponto de vista humano. Sendo assim, esses aspectos nos aparecerão como mistério. Ou seria paradoxo lógico? É disso que o Jorge trata no parágrafo seguinte:

"Veja bem, o título da sua série de postagens é O direito ao mistério, mas não acredito que 'mistério' seja o equivalente a paradoxo. Mistério se refere ao oculto, ao meu ver, algo que não foi revelado, que não nos foi dado conhecer. Paradoxo é afirmar duas coisas que se contradizem. É claro que alguém poderá reconhecer no mistério um paradoxo e no paradoxo um mistério, mas o fato é que a Bíblia se refere a 'mistério' como algo não somente incompreensível, mas algo que não nos foi revelado por Deus. Então, será que ao usar o termo 'mistério' você não estaria, ainda que não propositadamente, afirmando que não há o direito ao paradoxo? (rsrs). Mas se estiver enganado, corrija-me, por favor."

Passemos, pois, aos esclarecimentos terminológicos. Devo dizer que estou ciente de que existem na literatura teológica definições e distinções, às vezes conflitantes, para termos como "mistério", "paradoxo" e "antinomia". Contudo, não estou muito por dentro dessas discussões, de modo que não pretendo assegurar que meu uso dos termos está de acordo com o jargão da área. Quanto à Bíblia, faz tempo que li em algum lugar, já não me lembro onde, que o termo grego neotestamentário traduzido como "mistério" não possui nenhuma das duas acepções indicadas pelo Jorge, e sim apenas a de algo que não havia sido revelado no Antigo Testamento, mas que o foi na nova dispensação, em Cristo. Não sei se isso é verdadeiro em todos os casos, mas me parece coerente com os textos de que consigo me lembrar no momento. Contudo, não considero isso relevante, pois em meus posts eu não estava usando a palavra no sentido bíblico - dizendo com mais precisão, no sentido usado nas traduções da Bíblia para o português -, e nem me sinto na obrigação de fazê-lo, pois isso não tornaria minhas ideias nem um pouco mais bíblicas.

Para entender o que entendo por mistério, é necessário levar em conta algo que declarei na última parte da série O irracional dos racionalismos: "o fato de duas proposições terem sido reveladas não impede de modo algum que uma verdade fundamental para a harmonização entre elas tenha permanecido oculta". Havendo tal limitação, tem-se aquilo que chamo de mistério e, havendo mistério, nossa tentativa de articular filosoficamente os dados da revelação desembocarão inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, em um "paradoxo lógico". O paradoxo é, pois, apenas a manifestação mais superficial, no plano analítico, da realidade subjacente que é o mistério. Poder-se-ia dizer que o mistério consiste em uma falta de dados, mas dizer isso já seria ceder em parte ao racionalismo, pois a palavra "dados" carrega uma conotação que diz respeito primariamente a conteúdos restritos ao campo da razão analítica, ao passo que, como esclareci alguns parágrafos acima, me refiro antes a uma falta de experiência direta da realidade sobre a qual falamos, a qual diz respeito a todo o nosso ser, e não apenas à razão. Por isso prefiro falar em "direito ao mistério" em vez de "direito ao paradoxo": não por negar este último, mas porque este se baseia no primeiro, e o racionalista, por força de suas próprias ênfases distorcidas, perde isso de vista.

A investigação histórica é um empreendimento que lida o tempo todo com mistérios, no sentido que atribuo ao termo, mesmo quando não há nisso nenhuma implicação especificamente teológica ou espiritual. Por geralmente não fazer parte do ambiente histórico e cultural concreto que estuda, o historiador dispõe de fontes de informação relativamente escassas sobre aquilo que investiga. Por isso, pode perfeitamente não ser capaz de resolver certas contradições entre os dados que recebe, ainda que sejam todos verdadeiros, e é de se esperar que isso aconteça. Assim, por exemplo, Mateus 27.5 nos informa que Judas Iscariotes se enforcou, mas Atos 1.18 nos diz que ele morreu partido ao meio. É possível, nesse caso, imaginar várias maneiras pelas quais esses relatos podem ser harmonizados. Porém, ainda que não conseguíssemos imaginá-las, o que também acontece em alguns casos (bíblicos ou não), o ateu que acusa a Bíblia de contradição não estaria justificado, justamente por lhe faltar a percepção de que tais obscuridades são intrínsecas ao distanciamento histórico, e não necessariamente uma falha no objeto estudado. E, de qualquer forma, o ato mesmo de imaginar soluções mostra que o grau de coerência que podemos obter não depende só da qualidade de nosso raciocínio, e sim também da qualidade de outras faculdades cognitivas mais fundamentais - no caso, a imaginação, que, por sua vez, é limitada pela nossa experiência da realidade. O ponto em que quero chegar é que, se isso é assim em relação a simples questiúnculas históricas, é natural que o seja muito mais em se tratando de realidades espirituais para cuja investigação estamos muito menos preparados. O cristão que, para remover paradoxos, confia demais em sua capacidade de reunir informações e na qualidade de seu raciocínio lógico está em um beco sem saída, ainda que talvez não o perceba.

31 de julho de 2012

Velhas e boas maneiras


Em março deste ano, publiquei um post intitulado Covardia e decência, no qual analisei, já com alguns meses de atraso, o artigo em que Richard Dawkins explicou as razões de sua recusa ao debate com o filósofo e teólogo cristão William Lane Craig. Naquele texto, mencionei que as desculpas esfarrapadas de Dawkins suscitaram o protesto de alguns não-teístas, especialmente do filósofo Daniel Came, que também é professor em Oxford e escreveu contra ele o artigo Richard Dawkins's refusal to debate iscynical and anti-intellectualist [A recusa de Richard Dawkins a debater é cínica e anti-intelectualista]. (A propósito, afirmei no post que Came é agnóstico, mas, nesta breve e interessante correspondência com Dawkins, ele próprio se definiu como ateu.) Na ocasião, prometi: Pretendo, aliás, traduzir seu breve texto e publicá-lo neste blog qualquer hora dessas, se até lá não encontrar uma tradução já feita em algum canto da internet lusófona”. Pensei nisso em especial por causa dos meus amigos que não leem em inglês e que poderiam se interessar pelo assunto. Na semana passada, fiz uma busca para ver se, de março para cá, alguém se animara a empreender essa tradução. Como não encontrei, aqui estou para cumprir minha promessa. O texto segue abaixo, mas creio que convém fazer alguns comentários preliminares.

O debate entre Bertrand Russell e o padre Frederick Copleston mencionado por Came se encontra transcrito neste endereço. Considero-o apenas moderadamente interessante, mas sem dúvida Came tem razão quando o aponta como modelo de civilidade e respeito mútuo. Da mesma forma, não tenho em alta conta a filosofia de Russell (nem seu caráter, em vista dos fatos levantados por Paul Johnson no ótimo livro Os intelectuais, do qual transcrevi trechos no post Uma dúzia de tiranos), mas, quando penso que o ateísmo e o agnosticismo já tiveram entre seus expoentes pessoas como ele e Anthony Flew, é impossível não perceber que o neoateísmo de Dawkins e Hitchens representa uma notável decadência intelectual em relação ao ateísmo clássico. Aliás, lembro que C. S. Lewis já denunciava (creio que no Surpreendido pela alegria, mas não tenho certeza) essa decadência em sua época, na década de 50, ao comparar os autores ateus de então com os de sua juventude, no tempo em que ele próprio ainda era ateu.

É claro que não devemos idealizar os ateus de outrora, nem nutrir expectativas demasiado elevadas quanto à qualidade de suas razões. Digo isso porque eu mesmo já cometi o erro de superestimar os escritores ateus em geral, mas tenho em minha defesa o fato de que, nessa época, eu ainda não os havia lido. Contudo, o fato é que Marx, Nietzsche e Sartre, por mais fracos que fossem, eram gigantes intelectuais em comparação com o biólogo de Oxford que hoje possui o título de maior apologista do ateísmo, para constrangimento dos melhores representantes dessa classe. Came é um desses, e o texto abaixo mostra que ele não só percebe essa decadência em alguma medida, mas também se ressente do fato de que alguém tão mal preparado receba tamanha publicidade. Embora eu hoje já não sinta um autêntico respeito intelectual por nenhuma forma de ateísmo, não posso deixar de ver como boa notícia o fato de ainda haver por aí alguns ateus mais sérios e capazes que o biólogo inglês.

Não posso encerrar estas palavras introdutórias sem mencionar que tenho uma razão a mais para simpatizar com o protesto de Came: é que, a despeito de nossas diferenças, vejo-me em uma situação algo semelhante à dele. Assim como ele não considera Dawkins um bom representante do ateísmo, também não considero Craig portador de uma cosmovisão profundamente cristã. É claro que isso não me impede de nutrir certa admiração por Craig enquanto cristão, filósofo, escritor e debatedor, admiração da qual não se vê análogo nas menções de Came a Dawkins. Uma explanação adequada de minhas ressalvas às posições de Craig terá de ficar para outra ocasião. Basta dizer, por ora, que o exemplo das crianças cananeias, conquanto tenha sido usado por Dawkins apenas como estratégia de fuga, fala de modo bastante eloquente sobre um dos problemas fundamentais que tenho em mente: não cabe muito bem na teologia de Craig a ideia bíblica de um Deus soberano, santo e corretamente irado com a depravação do coração humano, seja ele de que idade for. Parece que, na visão dele, as crianças são tão inocentes que Deus ficaria em dívida para com elas se, ao tirar-lhes a vida, não lhes desse algo melhor em troca. Falei contra essa visão contaminada pelo humanismo por ocasião da morte do meu bebê, e continuo falando agora. Ou melhor, falarei depois. Já escrevi demais por hoje, e agora passo a palavra a Daniel Came.

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A recusa de Richard Dawkins ao debate é cínica e anti-intelectualista

Richard Dawkins não está sozinho em sua recusa de debater com William Lane Craig. O vice-presidente da Associação Humanista Britânica (BHA), A. C. Grayling, também se recusou terminantemente a debater com Craig, declarando que seria melhor debater “a existência de fadas e ninfas aquáticas”.

Dado que não há muita argumentação séria no arsenal dialético dos neoateístas, talvez devesse chegar sem causar surpresa a notícia de que Dawkins e Grayling não estão exatamente fazendo fila para entrar em um fórum público com um teísta intelectualmente rigoroso com Craig a fim de ter suas visões dissecadas e a inadequação de seus argumentos exposta.

Ironicamente, não há nada substancialmente novo sobre os neoateístas também. A despeito de seu tom autocongratulatório, Deus, um delírio não contém nenhum argumento original em favor do ateísmo. Resumindo o que ele chama de “o argumento central de meu livro”, Dawkins insiste que, mesmo sem uma explicação inteiramente convincente para o ajuste fino da física, as explicações “relativamente fracas” que temos no presente são claramente melhores que “a autodestrutiva [...] hipótese de um designer inteligente”.

Dawkins sustenta que não estamos justificados em inferir um designer como a melhor explicação da aparência de design no universo porque então um novo problema vem à tona: quem projetou o designer? Esse argumento é velho como as montanhas e patentemente inválido, como qualquer calouro universitário razoavelmente competente poderia assinalar. Para uma explicação ser bem-sucedida, não precisamos de uma explicação da explicação. Poder-se ia dizer igualmente que a evolução por seleção natural não explica nada porque não ajuda a explicar por que há organismos vivos no mundo, em primeiro lugar; ou que o big bang não consegue explicar a radiação cósmica de fundo porque o próprio big bang é inexplicável.

O que há de novo é a postura depreciativa diante dos que creem na religião e a fúria da polêmica. O neoateísmo está certamente muito longe do modelo de interlocução civilizada entre o “veteroateísta” Bertrand Russell e o padre Copleston, que aconteceu e foi transmitido pela Rádio BBC em 1948. Os neoateístas poderiam aprender muito com as inclinações de Russell, cuja abordagem, mais poderosa em todos os aspectos, era respeitosa e, ao mesmo tempo, um modelo de precisão filosófica.

Em seu último discurso retórico indigno, Dawkins afirmou que não dividiria uma tribuna com Craig porque este é “um apologista do genocício”. Dawkins está se referindo à defesa feita por Craig da ordem de Deus em Deuteronômio 20.15-17 para aniquilar os cananeus. Aqui está a passagem ofensiva de Craig:

“[Se] a graça de Deus é estendida aos que morrem na infância ou como crianças pequenas, a morte das crianças [cananeias] foi, na verdade, sua salvação. Nós estamos tão comprometidos com uma perspectiva terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morrem ficam felizes em trocar esta terra pela incomparável alegria do paraíso. Portanto, Deus não faz nenhum mal a essas crianças ao tirar sua vidas.”

Não me inclino a defender a política de infanticídio do Deus do Antigo Testamento. Mas, em matéria de lógica, Craig está provavelmente correto: se um bem infinito é possibilitado por um mal finito, então pode ser dito de modo razoável que o mal foi compensado. Porém, tenho dúvidas de que o próprio Craig seria guiado pela lógica nessa questão e empreenderia um infanticídio. Ou seja, eu duvido que ele desejaria que fosse adotado como princípio moral que nós deveríamos massacrar crianças porque assim elas receberiam salvação imediata.

Mas, seja o que for que se faça com a visão de Craig sobre o assunto, isso é irrelevante para a questão da existência ou inexistência de Deus. É muito óbvio, então, que Dawkins está oportunisticamente usando essas observações como uma cortina de fumaça para ocultar as razões reais de sua recusa ao debate com Craig – a qual tem uma história que antecede em muito os comentários de Craig sobre os cananeus.

Como um cético, eu tendo a concordar com a conclusão de Dawkins sobre a falsidade do teísmo, mas as táticas empregadas por ele e pelos outros neoateístas, segundo me parece, são fundamentalmente ignóbeis e potencialmente nocivas à vida intelectual pública. Pois há algo cínico, ameaçadoramente paternalista e anti-intelectualista em seu modus operandi, com sua premissa implícita de que atirar insultos é um modo efetivo de influenciar as crenças das pessoas sobre religião. A presunção está em supor que seu amplo público de leitores não-acadêmicos não se importa em, ou é incapaz de, pensar sobre as coisas; que a paixão prevalece sobre a razão. Ao contrário, as atitudes das pessoas diante da crença religiosa podem e devem ser moldadas pela razão, não pela cólera e pela invectiva. Ao ignorar isso, os neoateístas procuram substituir uma forma de irracionalidade por outra.

21 de junho de 2012

Fatos amargos

No último dia 14, minha esposa Norma publicou em seu blog um post intitulado A ceia acridoce, na qual comentou as implicações teológicas (e ideológicas) de uma notícia que recebeu através de Alex Fajardo: Em um culto realizado durante a última reunião da Fraternidade Teológica Latino-Americana, Setor Brasil (FTL-B), em Belo Horizonte, o oficiante da Ceia do Senhor, pastor Carlos Queiroz, só distribuiu o corpo e o sangue do Senhor depois de ter distribuído dois outros elementos: fatias de limão e pedaços de doce de leite, que, segundo explicou, representavam "o doce e o amargo da vida". Na verdade, num primeiro momento, pareceu à Norma (e a mim) que os dois elementos espúrios haviam substituído os autênticos, pois Fajardo, empolgado demais com a novidade, se esqueceu de mencionar a presença destes últimos, talvez por, em algum nível, julgá-los menos importantes que os primeiros. A Norma fez a devida correção no post, e acrescentou-lhe uma atualização na qual forneceu quatro argumentos para demonstrar que, a despeito do que pretendia o próprio Fajardo, essa diferença não melhora em nada a situação do oficiante, nem do próprio evento.

O assunto causou certa agitação no mundo virtual, especialmente no Facebook. Muitas pessoas perceberam de imediato a gravidade do problema discutido no post da Norma; outras, contudo, apressaram-se em levantar toda sorte de desculpas e atenuantes para o ato em si, ou para a reação (ou falta dela) de certas pessoas envolvidas. Houve quem tomasse as conclusões da Norma como um acinte intolerável, e houve até quem considerasse imoral e pecaminosa a natureza da denúncia, com base em diversos pretextos. Não pretendo dar aqui um relatório completo de toda essa confusão, mas sim apenas fazer uma breve análise de uma das respostas, dada pelo pastor Luiz Felipe Xavier, secretário da FTL-B, publicada em meio à discussão que se desenvolveu no Facebook do Guilherme de Carvalho - a quem, na verdade, se dirigiu o comentário. Não se trata de uma resposta oficial ("Deixo claro que falo em meu nome e não em nome da FTL-B", disse o autor), mas julgo-a relevante porque, além de vir de um membro da diretoria da instituição, ela sintetiza bem o tom geral das críticas que minha esposa recebeu. Além disso, decidi comentar o caso no lugar da Norma porque sei que ela detesta responder a críticas pessoais, e tanto mais quanto mais ridículas forem. Xavier começou dizendo:

"Primeiro, depois de toda a celeuma criada pelo post da Norma (se era essa a intenção, conseguiu), continuo achando que a publicação foi infeliz e deveria ser retirada, uma vez que não baseia-se no que, de fato, aconteceu na Ceia de encerramento da consulta anual da FTL-B, em Belo Horizonte. Falo porque estava lá e sei o que aconteceu. Não vi fotos nem li comentários que, por vezes, podem ser imprecisos na descrição. Infelizmente, faltou à Norma rigor metodológico."

O tom geral é claramente o de um "Ei, você fez muito barulho por nada, e isso foi muito feio", e já revela algo sobre o modo de pensar do autor da reclamação, à parte de qualquer comentário mais específico. Uma divergência profunda quanto à interpretação do significado do ocorrido é justamente o foco da discussão, desde seu início. Mas isso não é tudo o que diz Xavier. Sua afirmação de que o texto da Norma não se baseia "no que, de fato, aconteceu", a grande importância dada por ele ao fato de que ela não estava lá ("Falo porque estava lá e sei o que aconteceu") e a sugestão de que comentários "podem ser imprecisos na descrição" dão a entender que o erro não reside apenas na interpretação do fato, mas também, antes de tudo, na apreensão do próprio fato. É evidente que esse ponto deveria ser esclarecido em primeiro lugar, pois não se pode chegar a uma interpretação correta de um fato enquanto existem desacordos sobre sua natureza. Entretanto, é inútil procurar, nesse pronunciamento do pastor Xavier ou em qualquer outro, alguma tentativa de explicar o que realmente aconteceu. Xavier não tem nenhuma intenção de esclarecer as coisas, e sim apenas de, ostentando sua autoridade de testemunha direta, exigir dos demais um silêncio acrítico. Temos claramente um louvor à importância da clareza vindo de alguém que tem uma preferência notória pela obscuridade.

Outro ponto relevante é que Xavier inadvertidamente depõe contra sua própria autoridade suprema de testemunha ocular ao citar a suposta imprecisão dos "comentários" em que a Norma se baseou. Ora, Alex Fajardo também estava presente no evento. Se há, pois, uma divergência entre eles sobre o que de fato ocorreu, trata-se de uma divergência entre duas testemunhas oculares, e nada nos garante que a percepção de Xavier seja mais confiável que a de Fajardo - afinal, esta última nós ao menos sabemos qual é. Isso sugere, no mínimo, que nem todos os presentes entenderam o evento da mesma maneira. E se é assim no terreno dos fatos, fatalmente o será também no das interpretações. Foi justamente esse um dos pontos centrais da crítica da Norma, que apontou para a confusão que a inovação poderia produzir na mente dos fiéis e, por conseguinte, para o descuido pastoral do ministrante - e, por extensão, da liderança da instituição. Sem querer, Xavier reforçou nossa preocupação a esse respeito. De qualquer modo, não é na análise da Norma que faltou rigor metodológico. Esse rigor esteve claramente ausente, em primeiro lugar, na mente do pastor Queiroz e dos líderes da FTL-B e, em segundo, na argumentação de Xavier, evasiva na descrição e furada na epistemologia. Enquanto ele não disser exatamente qual foi o erro de Fajardo, seu primeiro parágrafo não valerá nada. Vejamos agora se ele se saiu melhor no parágrafo seguinte.

"Segundo, os primeiros comentários que fiz sobre esse post foram no próprio blog dela, mas, não sei por que razão, não passaram pelo crivo da moderação. Não os enviei novamente porque se a Norma quisesse, realmente, inseri-los lá, ela teria dado um ctrl c e ctrl v na menção que você fez. Ela não o fez porque é uma posição divergente da dela e tem todo direito de assim proceder."

A primeira coisa que me chama a atenção nessas palavras é a contradição flagrante entre a primeira sentença ("não sei por que razão") e a última ("Ela não o fez porque [...]"). Xavier diz que não sabe, mas na verdade julga saber, assim como diz que a Norma "tem todo direito de assim proceder", mas apresenta seu relato com o propósito evidente de levar os demais participantes da discussão a pensar mal dela. Não há outro motivo concebível para a existência desse segundo parágrafo. E, na verdade, essa história não começou aqui. Antes de Xavier entrar na conversa, um tal de Caio Marçal já vinha acusando a Norma de esconder a "verdade" ao não publicar um comentário postado por Xavier. Mas Marçal pelo menos teve a "decência" de abertamente chamar a Norma de mentirosa quando ela negou ter recebido o comentário; Xavier tentou fazer o mesmo de um modo mais disfarçado, porque ele precisava manter a conhecida pose de "tolerante e pluralista lidando com fundamentalistas raivosos". Infelizmente, no entanto, ele não tem o talento necessário para confeccionar um disfarce convincente.

Quanto ao comentário perdido propriamente dito, é intrigante, para começar, a certeza inabalável de Xavier quanto ao fato de a Norma tê-lo recebido. Nesses meus quase seis anos de vida blogueira, já presenciei várias dessas falhas do Blogger, tanto na condição de moderador quanto na de comentador. Junte-se a isso o fato de que, antes de Xavier dizer as palavras acima, a Norma já havia negado que recebera o referido comentário, e a má vontade do acusador se torna evidente. Tivesse a Norma uma má vontade equivalente, acusaria Xavier de não ter enviado nada. Se ela não agiu assim, é porque decidiu conceder-lhe o benefício da dúvida, mesmo antes de ele se pronunciar a respeito. Xavier, no entanto, não se dispôs a conceder à Norma o benefício da dúvida. Pressupondo de modo implícito (e racionalmente ridículo) a infalibilidade do Blogger, ele se recusou a considerar a simples possibilidade de o comentário não ter chegado, e isso quando ela já declarara expressamente não tê-lo recebido. E, não satisfeito, decidiu reprová-la (embora dizendo que aprovava) por não copiar e colar um comentário cuja autoria ele próprio não assumira até aquele momento, e que chegou à Norma apenas por intermédio de terceiros. Mais uma vez, ele condenou minha esposa por uma ambiguidade que só existe em si mesmo.

Antes de prosseguir analisando as palavras de Xavier no Facebook, convém dar alguma atenção ao seu comentário supostamente censurado no blog da Norma. Transcrevo-o integralmente:

"Em coro com Alex, lamento, profundamente, que esse texto tenha sido escrito e publicado.

Primeiro, como sou de tradição batista, não considero a ceia um sacramento e não encontro base bíblica para fazê-lo. Mas, isso é outra coisa.

Segundo, compartilhar os amargos e doces da vida é algo que pode e deve ser realizado no ambiente comunitário da fé cristã. Isso faz parte dos princípios de mutualidade ou mandamentos recíprocos presentes em todo o Novo Testamento. Não vejo na Bíblia nenhuma proibição à [sic] isso.

Terceiro, durante a celebração da ceia (que foi algo distinto da dinâmica anterior) o centro foi a cruz de Cristo. Em momento nenhum
'a cruz ficou em segundo plano', como foi dito. Embora não tenha nenhum problema com consagrar os elementos, não encontro na Bíblia uma orientação clara para fazê-lo. O que vejo é Jesus tomando o pão e o vinho e apenas dando graças.

Quarto, eu sou de esquerda sim, mas, teologicamente, identifico-me mais com o pensamento evangelical (ligado ao movimento de Lausanne). Minha teologia tem suas raízes nos pilares da Reforma. Prefiro ser assim do que ser de direita e fundamentalista.

Quinto, peço a Deus que nos abençoe nos ajude a ler as Escrituras tendo Jesus como nossa chave hermenêutica.

Abraço cordial,
Luiz Felipe."

Abstenho-me de fazer uma análise sobre o conteúdo teológico, político ou mesmo retórico das palavras acima. Para os propósitos da presente postagem, é suficiente observar algumas verdades óbvias. Xavier não citou um único fato que nos leve a suspeitar que há algum erro na descrição (ou mesmo na interpretação) de Fajardo, ou que a análise da Norma não se baseia "no que, de fato, aconteceu". No plano da interpretação, também não há nada em sua curta mensagem que refute algo do que a Norma disse, ou mesmo chegue a lidar de modo sério com as questões levantadas por ela. O que há é apenas uma desconversa feita sem "rigor metodológico" algum. Não há plausibilidade em supor que a Norma se recusaria a publicar tão evidente prova de que ela tinha razão. Dito isso, voltemos ao último trecho relevante do comentário publicado na discussão do Facebook, onde Xavier continuou, ainda se dirigindo ao Guilherme:

"Terceiro, fiquei convencido de que não vale a pena gastar energia em discussões como essa. Mesmo depois do seu próprio testemunho, que ouviu duas pessoas de sua confiança que estiveram lá, a Norma não mudou de idéia. A impressão que eu tenho é que poderíamos passar muito mais tempo discutindo e isso nunca iria acontecer."

Nesse ponto, o tom é de triunfo após a demonstração cabal de que suas razões são excelentes, restando apenas declarar que só a teimosia e a estreiteza mental explicam a insistência em contrariar fatos tão evidentes e argumentos tão razoáveis. Já mostrei acima que essa pretensão está a anos-luz da realidade. Resta dizer apenas algumas palavras acerca do argumento (o único, diga-se de passagem) com que Xavier busca fundamentar sua conclusão: a infalibilidade dos juízos de Guilherme de Carvalho, que ouviu duas pessoas de sua confiança. Caso encerrado, portanto. Depreende-se daí que a Norma tem uma obrigação moral incontornável de confiar em quem quer que o Guilherme aponte como digno de confiança, mesmo que a pessoa assim honrada se mostre capaz de escrever textos inteiros sem dizer coisa com coisa. Não é de admirar que, com incentivos tão ruins, a Norma não consiga mudar de ideia. Mas Xavier tem razão ao menos em um ponto: é verdade que, com esse malabarismo todo para não dizer as únicas coisas dignas de discussão, "poderíamos passar muito mais tempo discutindo" sem que nenhum dos lados mudasse de ideia.

Xavier disse mais algumas coisas, que consistem sobretudo de piadinhas bestas e comentários dirigidos a outras pessoas, e que não vale a pena analisar aqui. Para encerrar a presente postagem, observo apenas que o secretário da FTL-B se serviu amplamente do truque de confundir os fatos e interpretações: acusando a Norma de representar mal os fatos ocorridos, sem, no entanto, explicitar em que consistiu o erro, ele intentava indispor os leitores contra a interpretação da Norma como se ela tivesse distorcido os fatos. Para nossa decepção, alguns caíram nesse engodo um tanto infantil. Não hesito em afirmar que a atitude de Xavier foi desonesta. Só não sei se essa desonestidade é consciente ou inconsciente; mas ambas as alternativas são ruins. Apesar disso, não digo que seu comentário tenha sido inútil: ele serviu para nos dar indícios adicionais de que Alex Fajardo estava correto na descrição dos fatos, e que a Norma está igualmente correta na interpretação que lhes deu.

15 de junho de 2012

Dilemas históricos

Há quase três anos e meio, em janeiro de 2009, publiquei o post Areias invasoras, contendo algumas considerações, tanto elogiosas quanto críticas, ao livro As raízes do problema e da pessoa, primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, do historiador americano (e sacerdote católico romano liberal) John Paul Meier. No mesmo dia, recebi um interessante comentário do meu amigo André Luiz acerca desse post, ao qual decidi responder em três partes. A primeira foi publicada em maio de 2010 sob o título Esterilidade consensual, e a segunda saiu em junho de 2011, intitulada O círculo moderno. Hoje, finalmente, publico a terceira parte. A fim de não ter de repetir o que já disse nos posts anteriores, limito-me a transcrever um parágrafo do último texto, que dá um bom resumo da estrutura e propósito do texto original:

"O texto tem uma estrutura bem definida: feita a introdução ao assunto, destaquei as qualidades do autor e listei os principais méritos da obra. Depois disso, fiz-lhe várias críticas, começando pelo menos importante e progredindo em direção ao realmente importante. O fio comum a toda a crítica é a incoerência do autor. Os erros menos importantes residem na incoerência entre seus pressupostos e algumas de suas conclusões; os de importância intermediária, na incoerência interna dos próprios pressupostos; e os mais importantes estão na completa ausência de argumentação sobre pontos essenciais à validade de todo o empreendimento. Em todos os casos, citei alguns exemplos concretos que me pareceram deveras reveladores, mas o fiz em diferentes etapas do texto, a fim de deixar claro que não tencionava colocar todos esses erros no mesmo patamar."

Foi no contexto dessa última e mais grave categoria de incoerências que afirmei o seguinte:

"Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos [...]. Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais. É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos?"

Sobre o trecho destacado, o André Luiz fez o seguinte comentário:

"Sim, mas esse é todo o dilema. Porque se a Tradição estiver correta, Jesus Histórico algum é necessário. Mas se a Tradição pode estar errada, então o método e as posições (e omissões) de Meier são todas válidas, pois este é o método da disciplina histórica. E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas para defender que a Tradição está correta, então é apologética."

Essas poucas palavras dão ensejo a várias interessantes discussões, de modo que comentar a respeito, ainda que sem muita profundidade, me dará a oportunidade de fazer alguns esclarecimentos. A primeira coisa a observar - e não pretendo, com isso, fazer uma crítica - é que os pressupostos teológicos do André Luiz estão embutidos em sua formulação do "dilema". Segundo ele mesmo me explicou em conversa particular, ele e os outros ortodoxos orientais creem na infalibilidade teológica dos assim chamados "santos padres" e da tradição hermenêutica por eles deixada. Na verdade, ao menos para o propósito da presente discussão, eles parecem não ver diferença qualitativa entre os escritos tradicionais e a própria Escritura. Dado esse ponto de vista, é natural que o André veja qualquer dúvida quanto à fidedignidade histórica da tradição apostólica como sinônimo de secularismo e racionalismo, e assim tenda a interpretar a questão como uma escolha entre crer na Tradição, com T maiúsculo (Bíblia e "santos padres"), ou adotar o ponto de vista liberal-iluminista - e nesse último caso, como disse expressamente meu amigo, Meier estaria justificado em seu procedimento, de modo que minha crítica a ele não teria sentido. No entanto, para um protestante conservador como eu, isso só pode soar como um falso dilema, já que eu não acredito na infalibilidade dos "santos padres", mas sim na das Escrituras. Ou seja, o "dilema" do André Luiz só passará a existir a partir do momento em que minha visão teológica for excluída do campo das possibilidades imaginadas.

Na verdade, contudo, para sustentar a validade da minha crítica não é necessário sequer sair do campo liberal-iluminista. O problema da abordagem de Meier, como tentei demonstrar na postagem original, é que há questões que ele simplesmente se nega a examinar, e mesmo se recusa a reconhecer que existem. Foi esse o ponto que ressaltei ao citar como exemplo a ausência de uma discussão sobre a autoria dos evangelhos. Eu critiquei Meier exclusivamente do ponto de vista da investigação histórica. Segundo o André Luiz, só há duas atitudes possíveis quanto à autoria do quarto evangelho (por exemplo): partir do pressuposto de que está correta a tradição que atribui essa autoria ao apóstolo João, o que solaparia por completo a necessidade de uma investigação histórica, ou considerar a possibilidade de essa tradição estar errada, o que o levaria a uma investigação sobre a veracidade ou não dessa hipótese. Em sua argumentação, no entanto, Meier não fez nenhuma dessas duas coisas, e sim limitou-se a pressupor, sem nenhuma fundamentação histórica ou argumentativa, que a tradição está efetivamente errada. E estamos falando do mesmo sujeito que fez análises extensas e meticulosas sobre o Testimonium Flavianum e o Evangelho de Tomé a fim de verificar o que há de histórico nesses documentos. Nem mesmo o fato de ser um racionalista o desculpa de tamanha irracionalidade.

Ao mesmo tempo, não desejo negar que, em certo sentido, o André tem razão quando diz que o racionalismo e o antissobrenaturalismo são, de algum modo, parte do "método da disciplina histórica". Para ser mais exato, são parte do método da disciplina histórica que aceita os pressupostos filosóficos e teológicos liberais e iluministas. Tampouco nego que esses pressupostos são amplamente aceitos hoje no ambiente acadêmicos dos historiadores. Ressalto apenas que não tenho motivos para me impressionar com esse fato (como o André também não tem) a ponto de conceder aos secularistas o direito exclusivo de fazer uma investigação científica da história.Apenas, como diria Abraham Kuyper, defendo a possibilidade de uma ciência histórica calcada em outros pressupostos filosóficos e teológicos, que considero mais verdadeiros e sadios.

Mas isso não é tudo. Na verdade, embora alguns liberais tenham conscientemente uma visão bastante parcial da imparcialidade, achando que o racionalismo e o antissobrenaturalismo encarnam a própria definição de neutralidade, há também os que, mais modestamente, têm apenas a ilusão de que podem superar seu dilema próprio e chegar, em suas disciplinas, a uma imparcialidade entre o materialismo e o sobrenaturalismo. Meier, como seu livro deixa claro, pertence a essa segunda categoria. Portanto, ele tinha a obrigação de analisar os argumentos dos historiadores e teólogos conservadores antes de descartá-los. Mas, com relação à questão da autoria dos evangelhos, ele não fez isso, e por isso continuo crendo que tal omissão compromete a validade de seu método e de todo o seu empreendimento, bem como sua coerência com os pressupostos expressamente declarados na obra.

Resta fazer um breve comentário sobre a última sentença do André Luiz: "E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas pra defender que a Tradição está correta, então é apologética." Eu concordo, no sentido de que é possível ter motivações alheias à pesquisa histórica para crer na veracidade da "tradição" e defendê-la com argumentos extraídos da ciência histórica. Mas essa consideração de modo algum desqualifica a validade dessa argumentação, e muito menos dá ao seu opositor o direito de se limitar a franzir a testa e dizer: "Ora, mas isso é apologética!" É esse o ponto que levantei. Acredito também que uma motivação apologética, pouco importando em prol de quê, não necessariamente anula outras motivações ou impede uma pesquisa (histórica ou não) de ser frutífera de modos que transcendem o próprio interesse apologético mais básico. Além disso, como observei na primeira parte de minha resposta ao comentário do André, a própria ideia de que a evidência histórica não deve ser usada para defender uma cosmovisão e criticar outra é alheia à investigação histórica e serve apenas para imunizar contra possíveis críticas determinadas cosmovisões e seu predomínio no meio acadêmico.

Faltou no post original apenas uma coisa que eu não saberia dizer na época, mas que posso dizer agora em virtude de minha recente "conversão" ao pressuposicionalismo: todo ponto de vista sobre Cristo, as Escrituras, a tradição apostólica, os métodos de pesquisa histórica, a neutralidade e a legitimidade do uso da evidência histórica como ferramenta apologética brota de uma cosmovisão religiosa (no sentido de compromisso religioso) e tem, direta ou indiretamente, a função de defendê-la. Eu, o André Luiz e John Paul Meier temos isso em comum. A grande diferença é que eu sei disso. Creio que o André Luiz também, embora ele não necessariamente concorde comigo integralmente quanto à questão. Mas Meier não sabe, e é por isso mesmo que seu dilema é insolúvel.