13 de janeiro de 2012

O irracional dos racionalismos - parte 5

Na postagem inaugural da presente série, eu havia dito que faria seis postagens em comentário ao artigo O racionalismo dos irracionais, de Felipe Sabino de Araújo Neto. Contudo, a partir do momento em que Sabino reconheceu sua injustiça contra mim e pediu perdão publicamente, convenci-me de que não há sentido em dizer algumas coisas que eu havia me preparado para dizer. Diante desse ato de honestidade e humildade, resta-me apenas concluir a análise de seu artigo, e um único post é suficiente para essa tarefa. Nas próximas postagens, devo mudar um pouco de assunto, já que até eu mesmo estou cansado do atual. Dentro de algum tempo, porém, devo retornar ao tema e tecer considerações em torno de alguns comentários que recebi (e talvez ainda venha a receber) ao longo desta série, do próprio Sabino e de outros leitores.

Feitos todos os esclarecimentos da última postagem, prossigamos para o parágrafo seguinte do artigo. As duas primeiras sentenças já estão refutadas de antemão, pois pressupõem o erro do parágrafo anterior. Transcrevo, pois, a partir da terceira, deixando para daqui a pouco apenas a última:

"É verdade que elas citam Deuteronômio 29.29, mas não é dali (nem o podem fazer, pois o texto diz que a revelação é para ser entendida e repassada aos nossos filhos) que elas extraem quais doutrinas são conciliáveis e quais não. E é impossível fazê-lo, pois a Escritura não dá tal informação. Pelo contrário, 'tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança' (Romanos 15.4). Se tudo o que foi escrito foi dado para o nosso ensino, então é porque podemos entender, compreender e harmonizar dentro do grande plano da redenção."

O texto de Deuteronômio 29.29 é o mesmo que citei no oitavo parágrafo da primeira parte de O direito ao mistério, como parte de minha crítica a Crampton; convém, no entanto, recordar o propósito exato com que o fiz: citei essa passagem bíblica apenas para mostrar quão equivocado é o entendimento de Crampton quanto à visão da Confissão de Fé de Westminster acerca do tema. Afirmei que essa passagem, e também Romanos 9.20, "falam claramente acerca dos limites da mente humana". Eu não disse, porém, que esses versículos refutam especificamente a tese racionalista de que tudo o que foi revelado pode ser harmonizado racionalmente. Declarei apenas que esses trechos bíblicos foram citados pelos teólogos de Westminster em apoio ao conteúdo da seção 8 do capítulo III da Confissão para enfatizar essas limitações, e não para o propósito oposto, que é o que Crampton tinha em mente - assim como Sabino, embora este, em seu texto, não esteja preocupado de modo especial com a Confissão.

Explicarei isso um pouco melhor. Quando Sabino declara que "o texto diz que a revelação é para ser entendida e repassada aos nossos filhos", está induzindo a si mesmo ao erro mediante o acréscimo da palavra "entendida", que, além de não estar no texto bíblico em questão, não pode deixar de ser ambígua quando usada no presente contexto. Ilustrarei o que digo recorrendo ao exemplo central de nosso debate, o da relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana: uma coisa é entender que Deus é soberano e entender que somos responsáveis por nossos atos, e que ambas as coisas estão reveladas na Bíblia; outra coisa, muito diferente da primeira, é adquirir uma compreensão racionalmente impecável de como essas duas coisas se harmonizam filosoficamente. Nenhum dos cristãos racionalistas que li até o momento deu sinais de já ter pelo menos pensado na possibilidade de a primeira coisa não implicar na segunda. E, contudo, não implica; de modo que inferir esta daquela é ir muito além do propósito do texto bíblico.

Dá-se o mesmo com a afirmação do artigo acerca de Romanos 15.4: "Se tudo o que foi escrito foi dado para o nosso ensino, então é porque podemos entender, compreender e harmonizar dentro do grande plano da redenção". Ora, isso não está no texto bíblico, que diz apenas: "tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança". As palavras "para que" indicam qual é o objetivo do ensino do que foi escrito: é, como diz o texto claramente, a obtenção de esperança, paciência e consolação. O que quer que fuja desse objetivo, portanto, não está garantido nessa passagem bíblica e não pode ser inferido a partir dela. Dessa forma, a exegese de Sabino só poderá ser sustentada depois que ele provar que é impossível ter esperança "pela paciência e consolação das Escrituras" sem que todos os assuntos nelas revelados nos pareçam cristalinamente coerentes de uma perspectiva teórica. Esse é o salto exegético que ninguém, até hoje, me forneceu motivos justos para empreender. Além disso, o Espírito já me estimulou inúmeras vezes à paciência, à consolação e à esperança com base em ensinos cuja relação filosófica com outros ensinos eram (e são) obscuras aos meus olhos. Portanto, a afirmação de Sabino, além de não estar na Bíblia e não poder ser deduzida a partir dela de maneira lógica, contradiz minha experiência direta da graça de Deus. E desconfio que também contradiz a experiência de muitos outros cristãos, inclusive a dele próprio.

Na verdade, esse argumento apresentado em O racionalismo dos irracionais também já havia sido refutado por mim de antemão, pois é idêntico ao que Crampton apresenta em sua investida, e eu o comentei no nono parágrafo da primeira parte de minha crítica. A Confissão recomenda que o tema da predestinação seja tratado "com especial prudência e cuidado" por ser um "alto mistério", mas Crampton extrai disso a conclusão oposta, dizendo que não podemos tratar "com especial prudência e cuidado" uma doutrina que não possa ser conciliada com todas as outras no plano puramente racional. Acerca desse trecho da Confissão e do entendimento errado de Crampton, comentei:

"É desnecessário dizer que não é citada [na seção 3 do capítulo VIII da Confissão] nenhuma passagem bíblica sobre a importância de uma compreensão racional exaustiva das doutrinas reveladas nas Escrituras. Os teólogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relação ao assunto da predestinação, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua própria eleição e ver nessa doutrina motivo de louvor, reverência, admiração, humildade, diligência e consolo. O resto é invenção da cabeça de Crampton, que, além de mau exegeta, acaba de demonstrar que também não é bom leitor, já que não é capaz de distinguir entre seu próprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histórico que tem diante dos olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinação antes de dar louvores a Deus, se essa compreensão se lhe afigura um requisito para tributar a Deus aquilo que a Confissão prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os teólogos de Westminster deram sinais de não precisar disso para ter uma atitude correta diante de Deus."

Podemos, enfim, passar à conclusão do parágrafo de Sabino, que traz o argumento final do texto todo, dizendo:

"Não podemos compreender tudo o que pode ser dito e conhecido sobre Deus, pois ele é infinito, mas podemos compreender o que ele nos revelou (afinal, é uma revelação!), que constitui apenas uma porção infinitesimal da grandeza e obras do nosso Deus."

Aqui encontramos o mesmo erro que já apontei acima, a saber, a confusão entre apreender exaustivamente os conteúdos da revelação divina e apreender exaustivamente a harmonia entre todos esses conteúdos no plano puramente teórico e racional. Eu já havia apontado implicitamente essa distinção no terceiro parágrafo da terceira parte de O direito ao mistério ao citar a seguinte declaração de Edward Dowey Jr. sobre Calvino:

"Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e compreensibilidade nos temas individuais da Bíblia, mas estava, também, tão submisso ante o mistério divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas inconsistências de lógica, ao invés de optar por um todo racionalmente coerente. [...] Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas interrelações - essa é a marca registrada da teologia de Calvino."

Como já declarei também, não considero reprovável de modo algum a busca dessa harmonização, mas me oponho a qualquer insistência dogmática sobre a possibilidade de alcançá-la de modo impecável quanto a todos os conteúdos revelados nas Escrituras ou em qualquer outra fonte. Não vejo fundamento para a tese - implícita na exclamação "afinal, é uma revelação!" - de que basta uma proposição ter sido revelada para que seja possível à razão humana apreender sua harmonia com todas as demais proposições reveladas. Afinal, o fato de duas proposições terem sido reveladas não impede de modo algum que uma verdade fundamental para a harmonização entre elas tenha permanecido oculta. E, como já afirmei, ainda não encontrei alguém que tenha pensado nisso e fornecido uma refutação a essa possibilidade. Para tristeza dos racionalistas, Deus não prometeu em parte alguma que a compreensão exaustiva só nos seria negada quanto aos conteúdos não revelados.

Estou ciente de que meus comentários estão longe de esgotar a questão. Não obstante, eles bastam enquanto expressão de minhas opiniões acerca da cosmovisão defendida por Sabino. O artigo O racionalismo dos irracionais apresenta de modo claro algumas das razões que me levam a crer na falência de qualquer programa teológico racionalista, bem como em sua incapacidade de expressar uma teologia radicalmente bíblica. Por outro lado, fico deveras satisfeito ao constatar que a publicação desse artigo por Sabino tornou possível um melhor entendimento mútuo e uma aproximação pessoal que poderá, se Deus permitir, render muitos bons frutos. Além disso, há pelo menos um ponto do artigo que devo endossar sem reservas, a saber, a prece contida em sua última frase: "Que Deus nos livre de sermos caluniadores, racionalistas e irracionais!" Respondo com um enfático "amém", satisfeito em ver que, a despeito de todas as diferenças que restam entre nós, podemos nos unir ao mesmo Pai em oração.