23 de maio de 2012

Prolegômenos a toda encrenca futura - parte 2

Conforme prometido na primeira parte, exporei aqui as raízes de minhas reticências quanto à ideia teonomista. Dada a minha já confessada ignorância do assunto, esclareço desde já que de modo algum julgo impossível que haja respostas teonomistas adequadas para elas. É mais apropriado enxergar o que direi a seguir como uma lista de questões que precisam ser enfrentadas por um programa teonomista sério - e que espero que o tenham sido, de fato, pelo teonomismo real.

Em primeiro lugar, a teonomia parece ser construída em torno do silêncio do Novo Testamento sobre o fim da validade da lei civil, que os teonomistas tomam como argumento em seu favor, dado o contraste com o que acontece em relação à lei cerimonial. (Na verdade, não estou de todo convencido de que o Novo Testamento guarda silêncio sobre o tema, mas, como estamos nos prolegômenos, farei essa concessão.) Como eu disse no post anterior, esse fato precisa ser explicado. Mas o silêncio geralmente admite mais de uma interpretação. Por exemplo, do fato de que a Bíblia não apresenta a soberania divina e a responsabilidade humana como foco de tensão filosófica, McGregor Wright infere, em A soberania banida, que não existe tensão alguma. Contudo, essa conclusão é ditada de modo evidente por sua predisposição racionalista; afinal, também pode ser que a tensão exista, mas Deus simplesmente não a considere importante o suficiente para merecer menção em sua Palavra inspirada. Da mesma forma, o silêncio neotestamentário sobre a continuidade da lei civil pode ser tomado como evidência dessa continuidade, mas também pode ser que a nova dispensação seja tão diferente da antiga, que as ênfases e preocupações da igreja primitiva estivessem tão distantes do estabelecimento de um Estado cristão, que o próprio ato de declarar o fim da lei civil pareceria desnecessário, por ser demasiado óbvio a todos. Por isso, ao estudar a proposta teonomista, espero encontrar em seus defensores uma consciência dessa possibilidade e uma defesa de seu argumento em um nível mais profundo.

Digo isso em especial porque me sinto inclinado a crer que o silêncio, nesse caso, admite de modo mais plausível uma interpretação oposta. A queda da lei cerimonial foi extensamente discutida no Novo Testamento por ser uma pedra de tropeço para muitos. Enquanto o Novo Testamento estava sendo escrito, não havia mais nenhum Estado praticando de modo consistente a antiga lei civil de Israel, a menos que o Sinédrio de Jerusalém, submisso às leis romanas e assassino de Cristo, possa ser considerado legítimo representante dessa lei. E na prática, de qualquer modo, grande parte dos primeiros cristãos, judeus ou gentios, não estava sujeita a esse Estado. Diante de tal cenário, o silêncio parece indicar que ninguém na igreja primitiva estava minimamente preocupado com isso: nem os apóstolos, nem os judeus que creram em Jesus como seu Messias, nem os gentios que aderiam à nova fé. Acho difícil conciliar com naturalidade esse fato com o argumento dos teonomistas de que o silêncio neotestamentário é favorável à sua posição, de modo que espero encontrar, quanto a isso, uma argumentação teonomista bem construída.

Ligada a esse ponto está outra fonte de desconfiança que tentarei explicar, embora não seja lá muito fácil. Ela talvez decorra do não muito que tive oportunidade de aprender sobre outras grandes religiões do mundo, em especial o islamismo, que, em muitos aspectos, está mais próximo do judaísmo antigo que do cristianismo. Um dos pontos que os autores islâmicos usualmente levantam sobre Jesus é o que lhes parece um ministério profético incompleto. Ulfat Aziz Assamad, por exemplo, nos diz em seu livreto O islam e o cristianismo:

"Jesus nunca se casou, e por isso não pôde se tornar um marido e um pai ideal. Ele não venceu seus inimigos, e por isso não teve oportunidade para mostrar como um vencedor deveria se comportar para com seus inimigos vencidos que não haviam poupado esforços para aniquilar a ele e aos seus seguidores. Ele não teve seus perseguidores à sua mercê, e por isso não teve ocasião para mostrar a verdadeira moderação e misericórdia. Jesus não ascendeu ao poder para poder se tornar um modelo de governante e juiz benevolente e justo."

É natural ao muçulmano enxergar as coisas dessa forma, em especial porque a vida de Maomé oferece exemplos completos em todos esses pontos, e muitos outros. O que também deve ser percebido, contudo, é que o fato de um muçulmano ver isso como prova da superioridade de Maomé sobre Cristo do ponto de vista profético é bastante revelador da ênfase islâmica na exterioridade e na concretude. Sabemos perfeitamente que o estilo de vida que Jesus levou neste mundo, tal como narrado nos evangelhos, é atípico e não constitui modelo para nós. Quando falamos em ser imitadores de Cristo, não pensamos nesse aspecto exterior que é o primeiro (embora não necessariamente o único) a ocorrer a um muçulmano quando fala na "imitação do Profeta". Afinal, é de suma importância para a cosmovisão islâmica o fato de que, sob muitos aspectos, Maomé era um homem comum. Desse modo, ao fazer apologética contra o islamismo, a pior coisa que poderíamos fazer é tentar competir com ele em suas próprias prioridades, buscando estabelecer, a partir das escassas narrativas dos evangelhos sobre a vida de Cristo, orientações concretas para toda a ampla variedade de situações e dilemas que a vida oferece, como fazem os hadiths com base na vida de Maomé.

Fiz essa breve digressão sobre a visão islâmica da vida de Cristo porque ela fornece um paralelo exato para a visão islâmica da lei: pertence às ênfases primordiais dessa religião o desenvolvimento de uma comunidade política pautada no que seus devotos entendem ser a vontade divina, bem como de leis e escolas de jurisprudência diretamente fundadas em sua revelação. Também nesse aspecto, parece natural aos muçulmanos criticar o cristianismo por sua falta de concretude. Assamad afirma, de modo triunfante: "O islam, e não o cristianismo, proporciona uma orientação completa em todos os aspectos e situações da vida, individual como também social, nacional assim como internacional".

Mas por que estou contando tudo isso? Apenas para esclarecer os motivos pelos quais, tendo eu conhecido um pouco melhor o espírito da fé islâmica, sou instintivamente avesso a atitudes semelhantes no meio reformado. É necessário, porém, entender bem onde vejo a semelhança. Não é nas tão propaladas (e obviamente falsas) semelhanças entre reformados teonomistas e muçulmanos radicais. O que estou dizendo é que a visão teonomista da Lei não me parece combinar bem com outros aspectos da cosmovisão cristã. Quando o muçulmano critica as limitações de Cristo como modelo, somos unânimes em apontar que, quanto a esse aspecto, o papel de Cristo não se situa no estilo de vida e outras condutas bastante concretas. Mas, se o muçulmano criticar a falta de modelos de lei civil, alguns dentre nós aceitarão prontamente os termos da crítica, contrapondo a um sistema legal outro sistema legal, e dirão que nós temos a lei civil do Antigo Testamento; fazendo isso, reduzirão a questão à decisão sobre qual é o melhor sistema, perdendo, assim, a oportunidade de denunciar, uma vez mais, a exterioridade do conceito islâmico de submissão a Deus. Seria por já terem incorporado essa mesma exterioridade em um aspecto de sua própria cosmovisão? Não posso deixar de desconfiar que o problema talvez seja exatamente esse. A argumentação teonomista terá pela frente a tarefa de afastar de mim essa suspeita.

Esse possível problema que busquei ilustrar a partir de um paralelo com o islamismo, por sua vez, levanta outra desconfiança. Como racionalista em remissão, conheço bem a sensação de pavor e confusão diante da falta de regras claras pelas quais dissolver os dilemas impostos por uma determinada categoria de questões. Larry Crabb me convenceu de que essa sensação é o ímpeto fundamental que está por trás tanto do racionalismo quanto do legalismo. Não é absurdo supor, ao menos a título de possibilidade, que a ideia de aplicar a antiga lei civil de Israel aos dias de hoje pareça atraente a alguns justamente por faltarem, no Novo Testamento, diretrizes concretas e específicas para a aplicação dos princípios cristãos nessa área, e porque fazer tal aplicação é um trabalho reconhecidamente árduo e arriscado. É claro que não estou dizendo que essa consideração sobre motivações hipotéticas é um argumento contra a teonomia, inclusive porque seus adversários estão sempre, em alguma medida, sujeitos à tentação oposta de, com medo de cair em um tradicionalismo estéril, ceder demais aos ídolos da modernidade. Estou dizendo apenas que considero que essa motivação é ao menos um perigo real, e gostaria de obter evidências de que os teonomistas com quem travarei contato têm consciência disso e se preocupam a respeito, pois isso fortalecerá a credibilidade de sua reivindicação. Por outro lado, a ausência de tais evidências enfraqueceria de modo considerável essa credibilidade, pois isso revelaria que essa possível motivação é um ponto cego na cosmovisão dos teonomistas.

Outro ponto que espero ver assegurado pelo teonomismo diz respeito à própria possibilidade de consistência da antiga lei civil sem sua contraparte cerimonial. Essa questão me ocorreu enquanto eu lia o belo livreto Lei e graça, do nosso amigo pastor Mauro Meister. A obra dedica um total de apenas três páginas à questão da teonomia, mas o ponto que me chamou a atenção não estava entre elas, e sim em sua breve análise do estabelecimento das cidades de refúgio em Números 35, pelo qual algumas cidades dos levitas deveriam acolher homicidas involuntários, protegendo-os de seus vingadores. Aqui estão claramente envolvidas as leis civil, pois trata-se de uma determinação jurídica, e cerimonial, pois pressupõe-se a existência dos levitas como tribo separada. Não vejo de que maneira a abolição do aspecto cerimonial da lei poderia deixar intocada a lei civil. As opções disponíveis parecem ser as seguintes: abolir as cidades de refúgio, desconectar a ideia das cidades de refúgio da tribo de Levi, estabelecendo-as em cidades comuns, ou esquecer as cidades de refúgio literais e buscar apreender apenas o princípio jurídico subjacente; mas nenhuma dessas opções deixa a lei civil intacta. Deve haver uma solução teonomista para o dilema, mas ele, de qualquer forma, ilustra o princípio que tenho em mente: não basta estabelecer a plausibilidade exegética da perpetuidade da lei civil se não soubermos o que fazer a partir daí. Talvez a unidade da antiga Lei seja ainda mais forte do que supõem os próprios teonomistas, e alguns pontos da lei civil (ou muitos, ou todos) não façam sentido se desvinculados da lei cerimonial. De um modo ou de outro, uma divisão na lei precisa ser feita, e é necessário, portanto, demonstrar que o resultado disso será um corpo legislativo internamente consistente e aplicável à nossa presente realidade. Espero que os defensores da teonomia tenham trabalhado sobre esse ponto e não tenham achado a tarefa mais fácil do que realmente é.

E isso nos leva ao último ponto. A consciência de minha própria ignorância, além de ser o motivo pelo qual nunca me animei a escrever sobre a teonomia, é também o motivo pelo qual não me animei sequer a estudar suas propostas. Estou convencido de que uma análise completa e consequente do tema exigiria conhecimentos que não possuo - de filosofia política, direito, história, economia e sociologia, sem deixar de fora, é claro, a teologia. Dessa forma, parece-me natural supor que um teonomista militante, no bom sentido do termo, deve ter um interesse razoavelmente profundo em entender as implicações e dificuldades da implementação de seu ideal para cada uma dessas áreas, não crendo ingenuamente que tudo se resume a ler a Bíblia. Isso, uma vez mais, não é uma consideração contra a teonomia em si, a não ser em um sentido indireto. Sou otimista quanto a encontrar teonomistas cônscios da magnitude da mudança que estão propondo e do trabalho intelectual que têm pela frente. Mas, se essa minha expectativa não se concretizar, entenderei isso como sintoma claro de que algo não vai bem no espírito do movimento.

Encerro aqui esta resumida análise do que vejo, em caráter preliminar, como potencialmente positivo ou negativo na teonomia. Embora eu não escreva senão em meu próprio nome, creio que vários leitores que têm interesse no assunto terão se identificado com algumas de minhas ideias preliminares. Nesse sentido, espero que os teonomistas e seus críticos tenham aproveitado, desses meus dois textos, a oportunidade de discernir melhor as motivações de seus opositores e, quem sabe, também as suas próprias. No que me diz respeito, ao menos foi esse o gratificante resultado que obtive do esforço de escrever sobre o assunto. Não é meu objetivo suscitar debates, mas considerações sobre os pontos que levantei são bem-vindas, bem como indicações de livros ou textos que porventura lidem com eles.

14 de maio de 2012

Prolegômenos a toda encrenca futura - parte 1

Ao discorrer sobre o poder civil e sua relação com a religião no último capítulo das Institutas, Calvino precisou lidar com a seguinte questão: visto que já existiram no mundo uma nação, um Estado e um corpo de leis constituídos pelo próprio Deus (a saber, o Israel do Antigo Testamento), e visto que o Novo Testamento (em especial a Epístola aos Hebreus) ensina o caráter provisório dos pactos anteriores, como saber o que é permanente e o que é transitório na antiga dispensação? Para responder a essa pergunta, Calvino se apossou de uma ideia já existente, segundo a qual a antiga Lei se divide em três partes: lei moral, lei cerimonial e lei civil. Essa distinção se tornou usual no meio teológico reformado, e a visão tradicional tem sido a de que apenas a lei moral continua de pé, de modo que os Estados estavam desobrigados de impor - e os governados, de seguir - os aspectos cerimoniais e civis da Lei do Antigo Testamento. No século XX, porém, alguns teólogos calvinistas passaram a advogar uma ideia a que deram o nome de "teonomia" (ou "teonomismo", que usarei como sinônimo neste texto), segundo a qual apenas a lei cerimonial foi abolida, permanecendo de pé não só a lei moral, mas também a lei civil do antigo Israel. É fácil perceber que, em decorrência disso, os teonomistas possuem uma visão diferente sobre o papel do Estado, as melhores práticas jurídicas e assuntos ligados a esses.

Vários irmãos reformados, tanto entre os favoráveis quanto entre os contrários à teonomia, talvez por perceberem que tenho algum conhecimento sobre política, já me incentivaram a escrever uma avaliação dessa ideia. Sempre me recusei a fazê-lo, e continuo me recusando, com base em um senso apropriado do tamanho de minha ignorância. Tenho razões para crer que boa parte de meus incentivadores superestima meus conhecimentos teológicos, políticos ou ambos. Por isso, convém esclarecer que não li nenhum livro que trate do assunto, exceto por alguns que o fazem de passagem, e sequer li artigos ou postagens que defendessem com razoável solidez alguma posição acerca do tema. Tudo o que sei a respeito provém de conversas informais, discussões virtuais (que apenas testemunhei em silêncio) e fragmentos colhidos em textos cujos temas principais, de algum modo mais ou menos incidental, tocaram nessa questão. É claro que isso não me impede de ter uma opinião preliminar, por assim dizer, mas me impede de dizer o que quer que seja com alguma autoridade.

Além dessa razão, que é de ordem racional, tenho outra, de ordem emocional, para não querer tomar parte em um debate sobre o tema: a constatação, levada a efeito em diversas oportunidades, de que o assunto tem um potencial enorme para gerar animosidades. Isso é bastante compreensível: se divergências políticas e teológicas já causam brigas com facilidade quando mantidas separadas, o resultado de juntar as duas coisas só pode mesmo ser explosivo. Desagrada-me especialmente o fato de que julgamentos pessoais são feitos de modo demasiado temerário por ambos os lados: os poucos teonomistas que conheço parecem estar quase sempre na defensiva, por estarem acostumados à acusação de que são legalistas frios e impiedosos, carrascos e partidários de uma inquisição calvinista. Por outro lado, os que se opõem à teonomia são muito facilmente tachados de secularistas, modernistas e rebeldes contra a Lei de Deus. Não nego que possa haver, de ambos os lados, exemplos que justifiquem essas acusações. Porém, quer falemos do ponto de vista intelectual, quer do espiritual, considero apropriado conceder ao interlocutor o benefício da dúvida, sobretudo quando o diálogo se dá entre irmãos em Cristo. Parece-me claro que isso faz parte do amor que nosso Senhor ordenou que tivéssemos uns pelos outros, e arrependo-me das vezes em que agi de modo diferente, embora nunca o tenha feito com relação a esse tema em particular.

Convém ter em mente todo esse preâmbulo a fim de entender a natureza do que vou dizer a partir daqui. Dada a ignorância confessada acima, minha consciência me impede de escrever sobre o assunto com fins polêmicos, e mais ainda com fins judiciais. Entretanto, a despeito dessa ignorância, não posso nem desejo negar que meus conhecimentos e opiniões gerais sobre teologia, política, filosofia, história, religiões comparadas e outros temas pertinentes me levam a assumir, se não uma posição, ao menos uma disposição preliminar acerca do tema. É sobre as raízes dessa disposição que pretendo discorrer aqui. O que farei a seguir não é, pois, uma discussão sobre o teonomismo, e sim apenas prolegômenos a qualquer discussão em que eu venha a me envolver futuramente sobre esse assunto. Isso é pouco, mas creio que é um passo fundamental, e ainda não vi ninguém fazendo algo parecido. É claro que não estou afirmando que ninguém o fez; não se esqueça o leitor de que sou um ignorante. Estou dizendo apenas que preferi escrever meus próprios prolegômenos antes de sair em busca dos alheios. Acho importante tomar consciência das próprias disposições antes de começar a estudar um assunto qualquer, e costumo fazer esse autoexame com certa frequência. A questão da teonomia não tem nada de especial quanto a esse ponto, exceto pelo fato de que resolvi usá-la para, pela primeira vez, tornar público e escrito o resultado do autoexame. Isso deverá me ser útil nos próximos tempos, quando eu começar a ler efetivamente sobre o assunto - o que não pretendo fazer com muito afinco, pois tenho outras prioridades. Além disso, seja para facilitar o trabalho de irmãos que porventura venham a dialogar comigo sobre o tema, seja para me orientar quanto ao que procuro, creio que é importante ter um ponto de partida bem definido e exposto.

Não quero transmitir uma falsa impressão de neutralidade. Se por teonomia entende-se a ideia de que a lei civil do antigo Israel continua tendo valor normativo hoje, eu não sou um teonomista, e guardo contra ela desconfianças algo severas. Apesar disso, considero legítimas algumas das preocupações e intuições de seus partidários, e nem sempre me parece justo o teor das críticas que se lhe fazem por aí. Portanto, estes prolegômenos não podem deixar de incluir tanto predisposições favoráveis quanto contrárias ao teonomismo. Porém, pelo fato de eu não ser um teonomista, estas últimas deverão predominar naturalmente, e por isso acho melhor começar com o que considero positivo nessa ideia.

Muito antes de ouvir falar em teonomia, eu já estava do lado de seus adeptos em sua rejeição do laicismo. Mas o que digo precisa ser entendido de modo adequado: não é que eu considere reprováveis os Estados laicos que existem; apenas não acredito na existência de tais entidades. Na verdade, falando de modo mais amplo, não creio em neutralidade humana em relação a Deus. Na esfera política, isso significa que o Estado, reconhecendo-o ou não, inevitavelmente proclama suas leis com base em alguma visão sobre Deus, o homem e a natureza. A pretensão moderna de um Estado construído sobre a suspensão do juízo acerca de um desses pontos, ou de todos eles, é apenas uma ficção fundada em uma cegueira peculiar à nossa civilização. O "Estado laico" moderno tem uma posição quanto a Deus, e ela se manifesta de modo bastante concreto em todas as instâncias. Além disso, eu defendo a ideia kuyperiana de que o Estado tem sua própria esfera de soberania, para cuja administração recebe autoridade diretamente de Deus. Daí se segue que a afirmação de que "todo o poder emana do povo", que consta no primeiro artigo de nossa Constituição, é, no fim das contas, anticristã, na medida em que enxerga no próprio homem a fonte última de sua legitimidade. Parece-me que o teonomista percebe adequadamente que um Estado que não busca estabelecer sua lei civil a partir do caráter moral de Deus, revelado em sua lei moral, está necessariamente em rebelião contra Deus, quer adote alguma modalidade de secularismo, quer adote leis oriundas de alguma outra religião.

Até onde sei, nenhum teonomista defende a validade permanente do aspecto cerimonial da antiga Lei. E nem poderia, penso eu, já que até uma leitura superficial do Novo Testamento é suficiente para refutar essa ideia. A despeito disso, no entanto, parece-me que o teonomista intui corretamente o fato de que qualquer divisão que façamos na Lei (por exemplo, entre moral, cerimonial e civil), embora possa ser útil para certos propósitos, incorre no risco de artificialidade em alguns de seus efeitos, quando não em seus princípios. A ênfase na unidade da Lei pode trazer outra categoria de riscos, mas tem também a vantagem de chamar nossa atenção para o fato de que a lei civil dada a Moisés não é arbitrária em um sentido relativista ou historicista, pois se fundamenta no caráter de Deus. Sendo assim, as preocupações da teonomia podem, se bem utilizadas, nos incitar à busca de uma compreensão mais profunda da lei civil de Israel e seus princípios subjacentes, bem como dos problemas resultantes das distorções presentes na lei civil vigente hoje em nossa sociedade.

Ainda que não se concorde com as conclusões do teonomista, as questões levantadas por ele são legítimas e chamam a uma reflexão mais séria e profunda sobre o que é permanente e o que é transitório nas disposições legais do Antigo Testamento, e sobre como podemos distinguir uma coisa da outra. Por exemplo, uma vez que se aceite a tradicional divisão tríplice da Lei, não podemos ignorar que o Novo Testamento é, no mínimo, bem menos explícito quanto à lei civil, ao passo que a cessação da aplicabilidade do sistema cerimonial é atestada ali de modo mais abundante. É importante que as razões disso sejam adequadamente compreendidas, seja para aceitar ou rejeitar a teonomia. Nesse ponto, os críticos não devem ser dogmáticos, no mau sentido do termo. Dados os pressupostos aceitos por ambos os lados, não pode haver nada de imoral em exigir, por exemplo, uma fundamentação exegética da capitulação da lei civil de Israel diante do advento de Cristo.

O elemento comum a todos esses aspectos positivos que acabo de listar é o cultivo potencialmente saudável de uma desconfiança mais profunda contra os efeitos da secularização, tanto no próprio Estado quanto na cosmovisão das pessoas em geral, e dos crentes em particular. Trata-se de um esforço consciente de refletir sobre a realidade política e jurídica à luz das Escrituras, como deve ser qualquer empreendimento levado a efeito por cristãos. Aprovo essa iniciativa e as preocupações que lhe subjazem, e acho que, conquanto a boa intenção possa ser desvirtuada, os teonomistas não deveriam, só por serem teonomistas, ser tratados como fanáticos, extremistas, ameaças à saúde pública ou qualquer coisa do gênero.

São esses os aspectos do teonomismo que me parecem positivos, ao menos de modo potencial, e acerca dos quais tenho a expectativa de que os teonomistas tragam contribuições positivas. No próximo post, darei continuidade a estes prolegômenos esboçando algumas de minhas desconfianças a respeito de seu empreendimento.

2 de maio de 2012

O terceiro doce

Nesta manhã de feriado, enquanto dou início a este texto, faz menos de duas horas que recebemos do veterinário a notícia da morte do Chocolate, nosso terceiro gato. Na sexta-feira às 23h, quando chegamos em casa depois de uma viagem de férias que durou dezoito dias, nós o encontramos bastante debilitado. Isso já acontecera antes: em outubro, depois de uma viagem bem mais curta, ele quase morreu, e só voltou para casa depois de uma semana de intensos (e excelentes) cuidados clínicos. Demorou, mas foi se recuperando. Devido a esse histórico, a despeito do cansaço da viagem, nós o levamos imediatamente à mesma clínica, cujo veterinário decidiu interná-lo depois de um breve exame. Desta vez, apesar das precauções que havíamos tomado, e de o gato ter sido muito bem tratado por um amigo nosso, as coisas tomaram outro rumo, e ele não reagiu bem ao tratamento veterinário. É desnecessário dizer que estamos tristes, e que sentiremos muita falta do nosso terceiro doce. Mas não escrevo agora para lamentar, e sim, pelo contrário, para fazer justiça às muitas alegrias que Deus nos deu através dele.

Tudo começou em um sábado de outubro de 2009, quando a Norma e eu ainda éramos apenas namorados. Na época, cantávamos no coral de nossa igreja, em São Carlos, e fomos até lá para um ensaio. Saímos no fim da tarde, pretendendo tomar um sorvete ali perto. Cinquenta metros depois, mudamos de ideia e demos meia-volta em direção ao ponto de ônibus. Foi nesse momento que surgiu na nossa frente aquele siamês marrom e bege, ainda não totalmente crescido. A Norma abaixou para conversar com ele, e o bichano imediatamente correu na direção dela, pulou em seu colo e não saiu mais. Percebi imediatamente que havíamos adotado mais um gato (uso o plural porque, embora obviamente não morássemos juntos, eu sabia desde há muito que iríamos nos casar).

Poucas semanas depois, quando já havíamos nos apaixonado pelo gato, ele desapareceu do apartamento da Norma, apesar das telas nas janelas e de todo o cuidado tomado com a porta. Depois de muito procurar e conjecturar, encontramos um defeito na tela da sala que não havia sido notado antes - nem, felizmente, pelos outros dois gatos. O Chocolate fugiu numa madrugada chuvosa, e sua ausência só foi notada na manhã seguinte. Seguiram-se momentos de aflição, preocupação e empenho; a Norma elaborou dezenas de cartazes e eu os distribuí pelos estabelecimentos comerciais da vizinhança, recebendo o apoio condoído de alguns comerciantes e o desinteresse ou mesmo insensibilidade de outros (que felizmente foram poucos). Gastei também incontáveis horas - algumas vezes com a Norma, outras sozinho - perambulando pela vizinhança em busca dele, especialmente à noite, quando os gatos são mais ativos. Por causa dessa experiência, hoje entendo melhor o drama daquele pastor da parábola da ovelha perdida. Também por causa dela, passei a conhecer todos os siameses da região, quase tive problemas com a polícia (os moradores daquele bairro pacato se assustaram com minhas perambulações na madrugada) e pude constatar que, à noite, de fato, todos os gatos são pardos. Mas nada disso deu resultado, ou pelo menos assim parecia.

Pedi a Norma em casamento na noite de 28 de novembro daquele ano. Quando fui deixá-la em casa, o porteiro nos contou que uma mulher estivera por ali dizendo que achara o Chocolate; ela deixara um número de telefone. Ligamos na manhã seguinte, e a mulher estava a apenas três quarteirões dali. Corremos até lá, e era ele mesmo, vivo e saudável. A casa era um salão de beleza que nunca víramos antes, e algumas clientes que haviam visto os cartazes o reconheceram quando ele apareceu. Levamos o gato embora, muito gratos e pra lá de felizes com o presente de noivado que Deus nos deu. Ele estivera desaparecido por três semanas, e tinha apenas alguns pelos claros no rosto, resultado do sol; mas nunca perdi a oportunidade de dizer que ele havia ido ao salão de beleza para fazer luzes.

De volta ao lar e muito bem tratado, o Chocolate terminou de crescer, engordou e deixou de ser o gato mais quieto e dócil do mundo para se tornar um autêntico pestinha. Na verdade, ele não tinha limites: se empolgava com as brincadeiras a ponto de não perceber que suas mordidas e patadas podiam machucar os outros. E, ao menos em alguns momentos, havia nele certa dose de raiva, como se ele temesse não poder confiar completamente em nós. Foram necessários vários meses de amor e disciplina para que isso desaparecesse, mas nosso esforço se mostrou bastante compensador: o Chocolate se tornou um gato não só razoavelmente obediente, mas também sensível e carinhoso, que se esparramava completamente quando chegava sua hora de receber carinho; e aquela raiva simplesmente sumiu com o tempo.

O Chocolate era um bicho cheio de disposição como nunca vi antes. Em contraste com a gorda lentidão do Mel e o hilário mau humor do Chantilly, ele tinha uma energia e uma alegria inabaláveis. Nada o perturbava. Quando ninguém podia brincar com ele, quando os outros dois o rejeitavam (na verdade, ele nunca chegou a ser aceito pelos gatos mais velhos), quando foi castrado e teve de passar semanas usando aquele cone ridículo e incômodo no pescoço, lá estava ele correndo, saltitando e miando alegremente pela casa, inventando algo com que se divertir. Ele aprendeu do Chantilly a arte de perseguir sombras nas paredes, reviveu o hábito do Mel de pegar nosso pé enfiando as patas pelo vão entre a cama e o chão, e inventou a técnica de nos chamar para brincar fazendo emboscadas no corredor, escondendo-se para nos "atacar" quando passávamos. Também inesquecíveis são seu hábito de "mamar" em qualquer roupa que estivéssemos usando e de demonstrar carinho esfregando a cabeça em nosso pé - na verdade, praticamente lustrando o sapato com a cabeça -, em vez de apenas esfregar o corpo na nossa canela, como os outros gatos fazem.

Depois que a Norma e eu nos casamos, os gatos foram conosco para Salvador, onde creio que ele viveu a parte mais feliz de sua vida, alcançando o auge tanto do carinho quanto da sapequice. Foi ali que, num período especialmente difícil para nós, ele geralmente me fazia companhia enquanto eu estudava as papeladas do trabalho e tentava cuidar da Norma e do nosso bebê. A foto abaixo foi tirada pela Norma em uma das ocasiões em que o cansaço prevaleceu e eu dormi abraçado aos papéis. Nada explica de modo mais eloquente a solidariedade felina que recebi nesse período.


Apenas dois meses depois de nossa mudança para o Ceará, o Chocolate teve a crise a que me referi no início do post. Por isso, e talvez em parte também pelo amadurecimento natural, uma parcela de sua energia se foi para sempre, embora ele nunca tenha deixado de ser um gato alegre. Ele passou a interagir menos com os outros dois, e passamos a lhe dedicar mais atenção, dando-lhe inclusive um momento de exclusividade todas as noites. Ele apreendeu o novo padrão bem depressa, e passou a vir pontualmente à nossa cama - ou ao banheiro, enquanto escovávamos os dentes - para cobrar sua sessão de carinho, que sempre terminava contra a sua vontade e, às vezes, sob intensos protestos.

A descrição dessa rotina é necessária para que se entenda o que vou contar agora sobre a última vez em que fizemos isso. Na noite do dia 8, domingo de Páscoa, véspera de nossa viagem, fui subitamente acometido de uma febre que chegou aos 39,3ºC. Fiquei deitado e imóvel, mas sem conseguir dormir, enquanto a Norma arrumava sozinha nossas malas. Em algum momento, ela notou que o Chocolate se postara à porta do quarto e a fitava com um olhar claramente interrogativo, em vez de simplesmente vir correndo e pular sobre a cama, como geralmente fazia. Decidimos deixá-lo vir até mim, e a Norma o colocou ao meu lado. Para nossa surpresa, ele não tentou "mamar", como de costume, e sim apenas me cheirou um pouco e se aninhou sobre o meu peito, fazendo uma companhia agradável e imóvel até que chegou a hora de dormir e a Norma o colocou para fora. Pela primeira e última vez, ele não protestou. Não queria de modo algum ser inconveniente.

Apesar da febre, não pude deixar de ficar emocionado com aquilo, e louvei ao Senhor por ele. Nunca me esquecerei do amor e da sensibilidade que ele teve para comigo naquela noite. Mas aquele momento foi, como agora sei, apenas uma despedida à altura dos dois anos e meio que ele passou conosco. Sou grato a Deus por essa pequenina parte de sua criação que cruzou nosso caminho e veio parar em nossa casa. Não sei o que lhe reserva o futuro em um sentido mais objetivo, mas o Chocolate foi muito amado enquanto esteve conosco e permanecerá para sempre como lembrança viva e concreta do amor de Deus por nossa família.