21 de junho de 2012

Fatos amargos

No último dia 14, minha esposa Norma publicou em seu blog um post intitulado A ceia acridoce, na qual comentou as implicações teológicas (e ideológicas) de uma notícia que recebeu através de Alex Fajardo: Em um culto realizado durante a última reunião da Fraternidade Teológica Latino-Americana, Setor Brasil (FTL-B), em Belo Horizonte, o oficiante da Ceia do Senhor, pastor Carlos Queiroz, só distribuiu o corpo e o sangue do Senhor depois de ter distribuído dois outros elementos: fatias de limão e pedaços de doce de leite, que, segundo explicou, representavam "o doce e o amargo da vida". Na verdade, num primeiro momento, pareceu à Norma (e a mim) que os dois elementos espúrios haviam substituído os autênticos, pois Fajardo, empolgado demais com a novidade, se esqueceu de mencionar a presença destes últimos, talvez por, em algum nível, julgá-los menos importantes que os primeiros. A Norma fez a devida correção no post, e acrescentou-lhe uma atualização na qual forneceu quatro argumentos para demonstrar que, a despeito do que pretendia o próprio Fajardo, essa diferença não melhora em nada a situação do oficiante, nem do próprio evento.

O assunto causou certa agitação no mundo virtual, especialmente no Facebook. Muitas pessoas perceberam de imediato a gravidade do problema discutido no post da Norma; outras, contudo, apressaram-se em levantar toda sorte de desculpas e atenuantes para o ato em si, ou para a reação (ou falta dela) de certas pessoas envolvidas. Houve quem tomasse as conclusões da Norma como um acinte intolerável, e houve até quem considerasse imoral e pecaminosa a natureza da denúncia, com base em diversos pretextos. Não pretendo dar aqui um relatório completo de toda essa confusão, mas sim apenas fazer uma breve análise de uma das respostas, dada pelo pastor Luiz Felipe Xavier, secretário da FTL-B, publicada em meio à discussão que se desenvolveu no Facebook do Guilherme de Carvalho - a quem, na verdade, se dirigiu o comentário. Não se trata de uma resposta oficial ("Deixo claro que falo em meu nome e não em nome da FTL-B", disse o autor), mas julgo-a relevante porque, além de vir de um membro da diretoria da instituição, ela sintetiza bem o tom geral das críticas que minha esposa recebeu. Além disso, decidi comentar o caso no lugar da Norma porque sei que ela detesta responder a críticas pessoais, e tanto mais quanto mais ridículas forem. Xavier começou dizendo:

"Primeiro, depois de toda a celeuma criada pelo post da Norma (se era essa a intenção, conseguiu), continuo achando que a publicação foi infeliz e deveria ser retirada, uma vez que não baseia-se no que, de fato, aconteceu na Ceia de encerramento da consulta anual da FTL-B, em Belo Horizonte. Falo porque estava lá e sei o que aconteceu. Não vi fotos nem li comentários que, por vezes, podem ser imprecisos na descrição. Infelizmente, faltou à Norma rigor metodológico."

O tom geral é claramente o de um "Ei, você fez muito barulho por nada, e isso foi muito feio", e já revela algo sobre o modo de pensar do autor da reclamação, à parte de qualquer comentário mais específico. Uma divergência profunda quanto à interpretação do significado do ocorrido é justamente o foco da discussão, desde seu início. Mas isso não é tudo o que diz Xavier. Sua afirmação de que o texto da Norma não se baseia "no que, de fato, aconteceu", a grande importância dada por ele ao fato de que ela não estava lá ("Falo porque estava lá e sei o que aconteceu") e a sugestão de que comentários "podem ser imprecisos na descrição" dão a entender que o erro não reside apenas na interpretação do fato, mas também, antes de tudo, na apreensão do próprio fato. É evidente que esse ponto deveria ser esclarecido em primeiro lugar, pois não se pode chegar a uma interpretação correta de um fato enquanto existem desacordos sobre sua natureza. Entretanto, é inútil procurar, nesse pronunciamento do pastor Xavier ou em qualquer outro, alguma tentativa de explicar o que realmente aconteceu. Xavier não tem nenhuma intenção de esclarecer as coisas, e sim apenas de, ostentando sua autoridade de testemunha direta, exigir dos demais um silêncio acrítico. Temos claramente um louvor à importância da clareza vindo de alguém que tem uma preferência notória pela obscuridade.

Outro ponto relevante é que Xavier inadvertidamente depõe contra sua própria autoridade suprema de testemunha ocular ao citar a suposta imprecisão dos "comentários" em que a Norma se baseou. Ora, Alex Fajardo também estava presente no evento. Se há, pois, uma divergência entre eles sobre o que de fato ocorreu, trata-se de uma divergência entre duas testemunhas oculares, e nada nos garante que a percepção de Xavier seja mais confiável que a de Fajardo - afinal, esta última nós ao menos sabemos qual é. Isso sugere, no mínimo, que nem todos os presentes entenderam o evento da mesma maneira. E se é assim no terreno dos fatos, fatalmente o será também no das interpretações. Foi justamente esse um dos pontos centrais da crítica da Norma, que apontou para a confusão que a inovação poderia produzir na mente dos fiéis e, por conseguinte, para o descuido pastoral do ministrante - e, por extensão, da liderança da instituição. Sem querer, Xavier reforçou nossa preocupação a esse respeito. De qualquer modo, não é na análise da Norma que faltou rigor metodológico. Esse rigor esteve claramente ausente, em primeiro lugar, na mente do pastor Queiroz e dos líderes da FTL-B e, em segundo, na argumentação de Xavier, evasiva na descrição e furada na epistemologia. Enquanto ele não disser exatamente qual foi o erro de Fajardo, seu primeiro parágrafo não valerá nada. Vejamos agora se ele se saiu melhor no parágrafo seguinte.

"Segundo, os primeiros comentários que fiz sobre esse post foram no próprio blog dela, mas, não sei por que razão, não passaram pelo crivo da moderação. Não os enviei novamente porque se a Norma quisesse, realmente, inseri-los lá, ela teria dado um ctrl c e ctrl v na menção que você fez. Ela não o fez porque é uma posição divergente da dela e tem todo direito de assim proceder."

A primeira coisa que me chama a atenção nessas palavras é a contradição flagrante entre a primeira sentença ("não sei por que razão") e a última ("Ela não o fez porque [...]"). Xavier diz que não sabe, mas na verdade julga saber, assim como diz que a Norma "tem todo direito de assim proceder", mas apresenta seu relato com o propósito evidente de levar os demais participantes da discussão a pensar mal dela. Não há outro motivo concebível para a existência desse segundo parágrafo. E, na verdade, essa história não começou aqui. Antes de Xavier entrar na conversa, um tal de Caio Marçal já vinha acusando a Norma de esconder a "verdade" ao não publicar um comentário postado por Xavier. Mas Marçal pelo menos teve a "decência" de abertamente chamar a Norma de mentirosa quando ela negou ter recebido o comentário; Xavier tentou fazer o mesmo de um modo mais disfarçado, porque ele precisava manter a conhecida pose de "tolerante e pluralista lidando com fundamentalistas raivosos". Infelizmente, no entanto, ele não tem o talento necessário para confeccionar um disfarce convincente.

Quanto ao comentário perdido propriamente dito, é intrigante, para começar, a certeza inabalável de Xavier quanto ao fato de a Norma tê-lo recebido. Nesses meus quase seis anos de vida blogueira, já presenciei várias dessas falhas do Blogger, tanto na condição de moderador quanto na de comentador. Junte-se a isso o fato de que, antes de Xavier dizer as palavras acima, a Norma já havia negado que recebera o referido comentário, e a má vontade do acusador se torna evidente. Tivesse a Norma uma má vontade equivalente, acusaria Xavier de não ter enviado nada. Se ela não agiu assim, é porque decidiu conceder-lhe o benefício da dúvida, mesmo antes de ele se pronunciar a respeito. Xavier, no entanto, não se dispôs a conceder à Norma o benefício da dúvida. Pressupondo de modo implícito (e racionalmente ridículo) a infalibilidade do Blogger, ele se recusou a considerar a simples possibilidade de o comentário não ter chegado, e isso quando ela já declarara expressamente não tê-lo recebido. E, não satisfeito, decidiu reprová-la (embora dizendo que aprovava) por não copiar e colar um comentário cuja autoria ele próprio não assumira até aquele momento, e que chegou à Norma apenas por intermédio de terceiros. Mais uma vez, ele condenou minha esposa por uma ambiguidade que só existe em si mesmo.

Antes de prosseguir analisando as palavras de Xavier no Facebook, convém dar alguma atenção ao seu comentário supostamente censurado no blog da Norma. Transcrevo-o integralmente:

"Em coro com Alex, lamento, profundamente, que esse texto tenha sido escrito e publicado.

Primeiro, como sou de tradição batista, não considero a ceia um sacramento e não encontro base bíblica para fazê-lo. Mas, isso é outra coisa.

Segundo, compartilhar os amargos e doces da vida é algo que pode e deve ser realizado no ambiente comunitário da fé cristã. Isso faz parte dos princípios de mutualidade ou mandamentos recíprocos presentes em todo o Novo Testamento. Não vejo na Bíblia nenhuma proibição à [sic] isso.

Terceiro, durante a celebração da ceia (que foi algo distinto da dinâmica anterior) o centro foi a cruz de Cristo. Em momento nenhum
'a cruz ficou em segundo plano', como foi dito. Embora não tenha nenhum problema com consagrar os elementos, não encontro na Bíblia uma orientação clara para fazê-lo. O que vejo é Jesus tomando o pão e o vinho e apenas dando graças.

Quarto, eu sou de esquerda sim, mas, teologicamente, identifico-me mais com o pensamento evangelical (ligado ao movimento de Lausanne). Minha teologia tem suas raízes nos pilares da Reforma. Prefiro ser assim do que ser de direita e fundamentalista.

Quinto, peço a Deus que nos abençoe nos ajude a ler as Escrituras tendo Jesus como nossa chave hermenêutica.

Abraço cordial,
Luiz Felipe."

Abstenho-me de fazer uma análise sobre o conteúdo teológico, político ou mesmo retórico das palavras acima. Para os propósitos da presente postagem, é suficiente observar algumas verdades óbvias. Xavier não citou um único fato que nos leve a suspeitar que há algum erro na descrição (ou mesmo na interpretação) de Fajardo, ou que a análise da Norma não se baseia "no que, de fato, aconteceu". No plano da interpretação, também não há nada em sua curta mensagem que refute algo do que a Norma disse, ou mesmo chegue a lidar de modo sério com as questões levantadas por ela. O que há é apenas uma desconversa feita sem "rigor metodológico" algum. Não há plausibilidade em supor que a Norma se recusaria a publicar tão evidente prova de que ela tinha razão. Dito isso, voltemos ao último trecho relevante do comentário publicado na discussão do Facebook, onde Xavier continuou, ainda se dirigindo ao Guilherme:

"Terceiro, fiquei convencido de que não vale a pena gastar energia em discussões como essa. Mesmo depois do seu próprio testemunho, que ouviu duas pessoas de sua confiança que estiveram lá, a Norma não mudou de idéia. A impressão que eu tenho é que poderíamos passar muito mais tempo discutindo e isso nunca iria acontecer."

Nesse ponto, o tom é de triunfo após a demonstração cabal de que suas razões são excelentes, restando apenas declarar que só a teimosia e a estreiteza mental explicam a insistência em contrariar fatos tão evidentes e argumentos tão razoáveis. Já mostrei acima que essa pretensão está a anos-luz da realidade. Resta dizer apenas algumas palavras acerca do argumento (o único, diga-se de passagem) com que Xavier busca fundamentar sua conclusão: a infalibilidade dos juízos de Guilherme de Carvalho, que ouviu duas pessoas de sua confiança. Caso encerrado, portanto. Depreende-se daí que a Norma tem uma obrigação moral incontornável de confiar em quem quer que o Guilherme aponte como digno de confiança, mesmo que a pessoa assim honrada se mostre capaz de escrever textos inteiros sem dizer coisa com coisa. Não é de admirar que, com incentivos tão ruins, a Norma não consiga mudar de ideia. Mas Xavier tem razão ao menos em um ponto: é verdade que, com esse malabarismo todo para não dizer as únicas coisas dignas de discussão, "poderíamos passar muito mais tempo discutindo" sem que nenhum dos lados mudasse de ideia.

Xavier disse mais algumas coisas, que consistem sobretudo de piadinhas bestas e comentários dirigidos a outras pessoas, e que não vale a pena analisar aqui. Para encerrar a presente postagem, observo apenas que o secretário da FTL-B se serviu amplamente do truque de confundir os fatos e interpretações: acusando a Norma de representar mal os fatos ocorridos, sem, no entanto, explicitar em que consistiu o erro, ele intentava indispor os leitores contra a interpretação da Norma como se ela tivesse distorcido os fatos. Para nossa decepção, alguns caíram nesse engodo um tanto infantil. Não hesito em afirmar que a atitude de Xavier foi desonesta. Só não sei se essa desonestidade é consciente ou inconsciente; mas ambas as alternativas são ruins. Apesar disso, não digo que seu comentário tenha sido inútil: ele serviu para nos dar indícios adicionais de que Alex Fajardo estava correto na descrição dos fatos, e que a Norma está igualmente correta na interpretação que lhes deu.

15 de junho de 2012

Dilemas históricos

Há quase três anos e meio, em janeiro de 2009, publiquei o post Areias invasoras, contendo algumas considerações, tanto elogiosas quanto críticas, ao livro As raízes do problema e da pessoa, primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, do historiador americano (e sacerdote católico romano liberal) John Paul Meier. No mesmo dia, recebi um interessante comentário do meu amigo André Luiz acerca desse post, ao qual decidi responder em três partes. A primeira foi publicada em maio de 2010 sob o título Esterilidade consensual, e a segunda saiu em junho de 2011, intitulada O círculo moderno. Hoje, finalmente, publico a terceira parte. A fim de não ter de repetir o que já disse nos posts anteriores, limito-me a transcrever um parágrafo do último texto, que dá um bom resumo da estrutura e propósito do texto original:

"O texto tem uma estrutura bem definida: feita a introdução ao assunto, destaquei as qualidades do autor e listei os principais méritos da obra. Depois disso, fiz-lhe várias críticas, começando pelo menos importante e progredindo em direção ao realmente importante. O fio comum a toda a crítica é a incoerência do autor. Os erros menos importantes residem na incoerência entre seus pressupostos e algumas de suas conclusões; os de importância intermediária, na incoerência interna dos próprios pressupostos; e os mais importantes estão na completa ausência de argumentação sobre pontos essenciais à validade de todo o empreendimento. Em todos os casos, citei alguns exemplos concretos que me pareceram deveras reveladores, mas o fiz em diferentes etapas do texto, a fim de deixar claro que não tencionava colocar todos esses erros no mesmo patamar."

Foi no contexto dessa última e mais grave categoria de incoerências que afirmei o seguinte:

"Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos [...]. Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais. É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos?"

Sobre o trecho destacado, o André Luiz fez o seguinte comentário:

"Sim, mas esse é todo o dilema. Porque se a Tradição estiver correta, Jesus Histórico algum é necessário. Mas se a Tradição pode estar errada, então o método e as posições (e omissões) de Meier são todas válidas, pois este é o método da disciplina histórica. E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas para defender que a Tradição está correta, então é apologética."

Essas poucas palavras dão ensejo a várias interessantes discussões, de modo que comentar a respeito, ainda que sem muita profundidade, me dará a oportunidade de fazer alguns esclarecimentos. A primeira coisa a observar - e não pretendo, com isso, fazer uma crítica - é que os pressupostos teológicos do André Luiz estão embutidos em sua formulação do "dilema". Segundo ele mesmo me explicou em conversa particular, ele e os outros ortodoxos orientais creem na infalibilidade teológica dos assim chamados "santos padres" e da tradição hermenêutica por eles deixada. Na verdade, ao menos para o propósito da presente discussão, eles parecem não ver diferença qualitativa entre os escritos tradicionais e a própria Escritura. Dado esse ponto de vista, é natural que o André veja qualquer dúvida quanto à fidedignidade histórica da tradição apostólica como sinônimo de secularismo e racionalismo, e assim tenda a interpretar a questão como uma escolha entre crer na Tradição, com T maiúsculo (Bíblia e "santos padres"), ou adotar o ponto de vista liberal-iluminista - e nesse último caso, como disse expressamente meu amigo, Meier estaria justificado em seu procedimento, de modo que minha crítica a ele não teria sentido. No entanto, para um protestante conservador como eu, isso só pode soar como um falso dilema, já que eu não acredito na infalibilidade dos "santos padres", mas sim na das Escrituras. Ou seja, o "dilema" do André Luiz só passará a existir a partir do momento em que minha visão teológica for excluída do campo das possibilidades imaginadas.

Na verdade, contudo, para sustentar a validade da minha crítica não é necessário sequer sair do campo liberal-iluminista. O problema da abordagem de Meier, como tentei demonstrar na postagem original, é que há questões que ele simplesmente se nega a examinar, e mesmo se recusa a reconhecer que existem. Foi esse o ponto que ressaltei ao citar como exemplo a ausência de uma discussão sobre a autoria dos evangelhos. Eu critiquei Meier exclusivamente do ponto de vista da investigação histórica. Segundo o André Luiz, só há duas atitudes possíveis quanto à autoria do quarto evangelho (por exemplo): partir do pressuposto de que está correta a tradição que atribui essa autoria ao apóstolo João, o que solaparia por completo a necessidade de uma investigação histórica, ou considerar a possibilidade de essa tradição estar errada, o que o levaria a uma investigação sobre a veracidade ou não dessa hipótese. Em sua argumentação, no entanto, Meier não fez nenhuma dessas duas coisas, e sim limitou-se a pressupor, sem nenhuma fundamentação histórica ou argumentativa, que a tradição está efetivamente errada. E estamos falando do mesmo sujeito que fez análises extensas e meticulosas sobre o Testimonium Flavianum e o Evangelho de Tomé a fim de verificar o que há de histórico nesses documentos. Nem mesmo o fato de ser um racionalista o desculpa de tamanha irracionalidade.

Ao mesmo tempo, não desejo negar que, em certo sentido, o André tem razão quando diz que o racionalismo e o antissobrenaturalismo são, de algum modo, parte do "método da disciplina histórica". Para ser mais exato, são parte do método da disciplina histórica que aceita os pressupostos filosóficos e teológicos liberais e iluministas. Tampouco nego que esses pressupostos são amplamente aceitos hoje no ambiente acadêmicos dos historiadores. Ressalto apenas que não tenho motivos para me impressionar com esse fato (como o André também não tem) a ponto de conceder aos secularistas o direito exclusivo de fazer uma investigação científica da história.Apenas, como diria Abraham Kuyper, defendo a possibilidade de uma ciência histórica calcada em outros pressupostos filosóficos e teológicos, que considero mais verdadeiros e sadios.

Mas isso não é tudo. Na verdade, embora alguns liberais tenham conscientemente uma visão bastante parcial da imparcialidade, achando que o racionalismo e o antissobrenaturalismo encarnam a própria definição de neutralidade, há também os que, mais modestamente, têm apenas a ilusão de que podem superar seu dilema próprio e chegar, em suas disciplinas, a uma imparcialidade entre o materialismo e o sobrenaturalismo. Meier, como seu livro deixa claro, pertence a essa segunda categoria. Portanto, ele tinha a obrigação de analisar os argumentos dos historiadores e teólogos conservadores antes de descartá-los. Mas, com relação à questão da autoria dos evangelhos, ele não fez isso, e por isso continuo crendo que tal omissão compromete a validade de seu método e de todo o seu empreendimento, bem como sua coerência com os pressupostos expressamente declarados na obra.

Resta fazer um breve comentário sobre a última sentença do André Luiz: "E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas pra defender que a Tradição está correta, então é apologética." Eu concordo, no sentido de que é possível ter motivações alheias à pesquisa histórica para crer na veracidade da "tradição" e defendê-la com argumentos extraídos da ciência histórica. Mas essa consideração de modo algum desqualifica a validade dessa argumentação, e muito menos dá ao seu opositor o direito de se limitar a franzir a testa e dizer: "Ora, mas isso é apologética!" É esse o ponto que levantei. Acredito também que uma motivação apologética, pouco importando em prol de quê, não necessariamente anula outras motivações ou impede uma pesquisa (histórica ou não) de ser frutífera de modos que transcendem o próprio interesse apologético mais básico. Além disso, como observei na primeira parte de minha resposta ao comentário do André, a própria ideia de que a evidência histórica não deve ser usada para defender uma cosmovisão e criticar outra é alheia à investigação histórica e serve apenas para imunizar contra possíveis críticas determinadas cosmovisões e seu predomínio no meio acadêmico.

Faltou no post original apenas uma coisa que eu não saberia dizer na época, mas que posso dizer agora em virtude de minha recente "conversão" ao pressuposicionalismo: todo ponto de vista sobre Cristo, as Escrituras, a tradição apostólica, os métodos de pesquisa histórica, a neutralidade e a legitimidade do uso da evidência histórica como ferramenta apologética brota de uma cosmovisão religiosa (no sentido de compromisso religioso) e tem, direta ou indiretamente, a função de defendê-la. Eu, o André Luiz e John Paul Meier temos isso em comum. A grande diferença é que eu sei disso. Creio que o André Luiz também, embora ele não necessariamente concorde comigo integralmente quanto à questão. Mas Meier não sabe, e é por isso mesmo que seu dilema é insolúvel.