15 de junho de 2012

Dilemas históricos

Há quase três anos e meio, em janeiro de 2009, publiquei o post Areias invasoras, contendo algumas considerações, tanto elogiosas quanto críticas, ao livro As raízes do problema e da pessoa, primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, do historiador americano (e sacerdote católico romano liberal) John Paul Meier. No mesmo dia, recebi um interessante comentário do meu amigo André Luiz acerca desse post, ao qual decidi responder em três partes. A primeira foi publicada em maio de 2010 sob o título Esterilidade consensual, e a segunda saiu em junho de 2011, intitulada O círculo moderno. Hoje, finalmente, publico a terceira parte. A fim de não ter de repetir o que já disse nos posts anteriores, limito-me a transcrever um parágrafo do último texto, que dá um bom resumo da estrutura e propósito do texto original:

"O texto tem uma estrutura bem definida: feita a introdução ao assunto, destaquei as qualidades do autor e listei os principais méritos da obra. Depois disso, fiz-lhe várias críticas, começando pelo menos importante e progredindo em direção ao realmente importante. O fio comum a toda a crítica é a incoerência do autor. Os erros menos importantes residem na incoerência entre seus pressupostos e algumas de suas conclusões; os de importância intermediária, na incoerência interna dos próprios pressupostos; e os mais importantes estão na completa ausência de argumentação sobre pontos essenciais à validade de todo o empreendimento. Em todos os casos, citei alguns exemplos concretos que me pareceram deveras reveladores, mas o fiz em diferentes etapas do texto, a fim de deixar claro que não tencionava colocar todos esses erros no mesmo patamar."

Foi no contexto dessa última e mais grave categoria de incoerências que afirmei o seguinte:

"Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos [...]. Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais. É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos?"

Sobre o trecho destacado, o André Luiz fez o seguinte comentário:

"Sim, mas esse é todo o dilema. Porque se a Tradição estiver correta, Jesus Histórico algum é necessário. Mas se a Tradição pode estar errada, então o método e as posições (e omissões) de Meier são todas válidas, pois este é o método da disciplina histórica. E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas para defender que a Tradição está correta, então é apologética."

Essas poucas palavras dão ensejo a várias interessantes discussões, de modo que comentar a respeito, ainda que sem muita profundidade, me dará a oportunidade de fazer alguns esclarecimentos. A primeira coisa a observar - e não pretendo, com isso, fazer uma crítica - é que os pressupostos teológicos do André Luiz estão embutidos em sua formulação do "dilema". Segundo ele mesmo me explicou em conversa particular, ele e os outros ortodoxos orientais creem na infalibilidade teológica dos assim chamados "santos padres" e da tradição hermenêutica por eles deixada. Na verdade, ao menos para o propósito da presente discussão, eles parecem não ver diferença qualitativa entre os escritos tradicionais e a própria Escritura. Dado esse ponto de vista, é natural que o André veja qualquer dúvida quanto à fidedignidade histórica da tradição apostólica como sinônimo de secularismo e racionalismo, e assim tenda a interpretar a questão como uma escolha entre crer na Tradição, com T maiúsculo (Bíblia e "santos padres"), ou adotar o ponto de vista liberal-iluminista - e nesse último caso, como disse expressamente meu amigo, Meier estaria justificado em seu procedimento, de modo que minha crítica a ele não teria sentido. No entanto, para um protestante conservador como eu, isso só pode soar como um falso dilema, já que eu não acredito na infalibilidade dos "santos padres", mas sim na das Escrituras. Ou seja, o "dilema" do André Luiz só passará a existir a partir do momento em que minha visão teológica for excluída do campo das possibilidades imaginadas.

Na verdade, contudo, para sustentar a validade da minha crítica não é necessário sequer sair do campo liberal-iluminista. O problema da abordagem de Meier, como tentei demonstrar na postagem original, é que há questões que ele simplesmente se nega a examinar, e mesmo se recusa a reconhecer que existem. Foi esse o ponto que ressaltei ao citar como exemplo a ausência de uma discussão sobre a autoria dos evangelhos. Eu critiquei Meier exclusivamente do ponto de vista da investigação histórica. Segundo o André Luiz, só há duas atitudes possíveis quanto à autoria do quarto evangelho (por exemplo): partir do pressuposto de que está correta a tradição que atribui essa autoria ao apóstolo João, o que solaparia por completo a necessidade de uma investigação histórica, ou considerar a possibilidade de essa tradição estar errada, o que o levaria a uma investigação sobre a veracidade ou não dessa hipótese. Em sua argumentação, no entanto, Meier não fez nenhuma dessas duas coisas, e sim limitou-se a pressupor, sem nenhuma fundamentação histórica ou argumentativa, que a tradição está efetivamente errada. E estamos falando do mesmo sujeito que fez análises extensas e meticulosas sobre o Testimonium Flavianum e o Evangelho de Tomé a fim de verificar o que há de histórico nesses documentos. Nem mesmo o fato de ser um racionalista o desculpa de tamanha irracionalidade.

Ao mesmo tempo, não desejo negar que, em certo sentido, o André tem razão quando diz que o racionalismo e o antissobrenaturalismo são, de algum modo, parte do "método da disciplina histórica". Para ser mais exato, são parte do método da disciplina histórica que aceita os pressupostos filosóficos e teológicos liberais e iluministas. Tampouco nego que esses pressupostos são amplamente aceitos hoje no ambiente acadêmicos dos historiadores. Ressalto apenas que não tenho motivos para me impressionar com esse fato (como o André também não tem) a ponto de conceder aos secularistas o direito exclusivo de fazer uma investigação científica da história.Apenas, como diria Abraham Kuyper, defendo a possibilidade de uma ciência histórica calcada em outros pressupostos filosóficos e teológicos, que considero mais verdadeiros e sadios.

Mas isso não é tudo. Na verdade, embora alguns liberais tenham conscientemente uma visão bastante parcial da imparcialidade, achando que o racionalismo e o antissobrenaturalismo encarnam a própria definição de neutralidade, há também os que, mais modestamente, têm apenas a ilusão de que podem superar seu dilema próprio e chegar, em suas disciplinas, a uma imparcialidade entre o materialismo e o sobrenaturalismo. Meier, como seu livro deixa claro, pertence a essa segunda categoria. Portanto, ele tinha a obrigação de analisar os argumentos dos historiadores e teólogos conservadores antes de descartá-los. Mas, com relação à questão da autoria dos evangelhos, ele não fez isso, e por isso continuo crendo que tal omissão compromete a validade de seu método e de todo o seu empreendimento, bem como sua coerência com os pressupostos expressamente declarados na obra.

Resta fazer um breve comentário sobre a última sentença do André Luiz: "E se, numa terceira opção, usarmos esse método apenas pra defender que a Tradição está correta, então é apologética." Eu concordo, no sentido de que é possível ter motivações alheias à pesquisa histórica para crer na veracidade da "tradição" e defendê-la com argumentos extraídos da ciência histórica. Mas essa consideração de modo algum desqualifica a validade dessa argumentação, e muito menos dá ao seu opositor o direito de se limitar a franzir a testa e dizer: "Ora, mas isso é apologética!" É esse o ponto que levantei. Acredito também que uma motivação apologética, pouco importando em prol de quê, não necessariamente anula outras motivações ou impede uma pesquisa (histórica ou não) de ser frutífera de modos que transcendem o próprio interesse apologético mais básico. Além disso, como observei na primeira parte de minha resposta ao comentário do André, a própria ideia de que a evidência histórica não deve ser usada para defender uma cosmovisão e criticar outra é alheia à investigação histórica e serve apenas para imunizar contra possíveis críticas determinadas cosmovisões e seu predomínio no meio acadêmico.

Faltou no post original apenas uma coisa que eu não saberia dizer na época, mas que posso dizer agora em virtude de minha recente "conversão" ao pressuposicionalismo: todo ponto de vista sobre Cristo, as Escrituras, a tradição apostólica, os métodos de pesquisa histórica, a neutralidade e a legitimidade do uso da evidência histórica como ferramenta apologética brota de uma cosmovisão religiosa (no sentido de compromisso religioso) e tem, direta ou indiretamente, a função de defendê-la. Eu, o André Luiz e John Paul Meier temos isso em comum. A grande diferença é que eu sei disso. Creio que o André Luiz também, embora ele não necessariamente concorde comigo integralmente quanto à questão. Mas Meier não sabe, e é por isso mesmo que seu dilema é insolúvel.

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