28 de setembro de 2012

Fragmentos de razões - parte 2

Nesta postagem, darei continuidade às considerações em torno dos comentários do Jorge ao meu post O direito ao mistério - parte 1. Depois de dizer o que já comentei na primeira parte da presente série, ele comentou quatro pontos específicos que levantei sobre o texto de Crampton. Não é necessário responder a isso de modo extenso, mas convém fazer uns poucos esclarecimentos antes de passar às partes mais interessantes.
 
1. O primeiro é minha contestação à aplicação que Crampton fez de 1 Coríntios 14.33 ("Deus não é de confusão"). Escrevi:

"O texto de onde foi retirada a citação do apóstolo não fala de confusão lógica, e sim de confusão litúrgica. Paulo está dando instruções para combater a desordem no culto, evitando a balbúrdia decorrente do uso desenfreado do dom de línguas, profecias e interpretações que se instalara na igreja de Corinto. Paulo ensina que devem falar um de cada vez, e que 'Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus não é de confusão e sim de paz'. Extrair daí uma lição sobre a existência ou não de elementos obscuros nas obras de Deus em geral (e de paradoxos lógicos nas Escrituras em particular) é desprezar uma das regras fundamentais da hermenêutica, que é a atenção ao contexto. Crampton começou, pois, dando ensejo a dúvidas sobre sua capacidade como exegeta."

Sobre isso, o Jorge comentou:

"Realmente, o texto [...] refere-se à ordem do culto, mas seria ela uma afirmação que não poderia ser usada como elemento da essência de Deus? Deus seria o caos? A desordem? Limitar a afirmação apenas para a ordem no culto é reduzi-la em sua proposição, quando Paulo está claramente a dar uma definição de Deus, quanto ao seu caráter, algo inerente à sua natureza. Portanto, não considero exagero e má exegese utilizar esse verso para se referir a Deus como Deus de ordem, não de desordem, como o Deus perfeito, não imperfeito."

Observo que o Jorge não entendeu bem o que eu disse. Do que declarei não se segue que o texto nada diga sobre a essência de Deus, nem que Deus seja caos ou desordem, nem que o fato de Ele não ser "Deus de confusão e sim de paz" não tenha implicações para além do contexto litúrgico. O problema é que Crampton usou o texto como prova de algo muito específico, a saber, que não existem paradoxos lógicos nas Escrituras. Para sustentar isso, seria necessário provar que a confusão de que fala o texto é de ordem lógica, no sentido analítico - ou, dizendo de outra forma, que um Deus de paz não poderia deixar de fornecer explicações suficientes para a harmonização lógica de tudo o que Crampton crê que deve ser harmonizado na revelação especial. Ou seja, o argumento de Crampton só é válido se for pressuposto que os termos bíblicos "confusão" e "paz" têm a carga semântica que ele lhes atribui, implicando que Deus não seria perfeito se não revelasse as coisas de determinada maneira. Como ele não demonstrou exegeticamente esse pressuposto, e sequer deu sinais de perceber que deveria fazê-lo, seu uso do versículo caracteriza fuga do contexto e má exegese. Não é demais lembrar que venho pedindo neste blog há dois anos que alguém complete o argumento de Crampton, e até agora não obtive sequer uma tentativa nesse sentido. Minha crítica continua, pois, de pé.
 
2. Esse ponto diz respeito ao posicionamento da Confissão de Fé de Westminster, que Crampton compreendeu tão mal quanto o versículo sobre a ordem no culto. O Jorge concordou comigo nesse ponto, dizendo que "os teólogos que a redigiram acreditavam em paradoxos, e Crampton ao se utilizar dela, dá um tiro no pé" e "foi um exemplo não muito feliz que Crampton usou, pois ela é claramente compatibilista". Falarei em outra ocasião sobre minhas ressalvas quanto a esse último termo. Por ora, basta apenas enfatizar algo que eu já disse na continuação da série O direito ao mistério: o mau entendimento da Confissão destrói um dos pontos centrais da tese do artigo, a saber, que a admissão de mistérios (ou paradoxos) nas Escrituras só penetrou no meio reformado por uma influência tardia do pensamento neo-ortodoxo. A simples existência da Confissão de Fé de Westminster é uma objeção fatal à sua visão da história.
 
3. Trata-se de outro ponto em que o Jorge discordou de mim. Depois de desmontar o (des)entendimento de Crampton sobre a Confissão, declarei o seguinte:

"Os teólogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relação ao assunto da predestinação, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua própria eleição e ver nessa doutrina motivo de louvor, reverência, admiração, humildade, diligência e consolo. O resto é invenção da cabeça de Crampton, que, além de mau exegeta, acaba de demonstrar que também não é bom leitor, já que não é capaz de distinguir entre seu próprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histórico que tem diante dos olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinação antes de dar louvores a Deus, se essa compreensão se lhe afigura um requisito para tributar a Deus aquilo que a Confissão prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os teólogos de Westminster deram sinais de não precisar disso para ter uma atitude correta diante de Deus."

Acerca desse trecho, em especial da frase destacada, o Jorge me disse que "há coisas que Crampton não diz que você diz que ele disse [...] uma indução para que Crampton diga o que na verdade não disse. [...] O autor não afirmou tais coisas. Acho que você está de 'birra' com Crampton (rsrs)."

No entanto, entremeando suas próprias palavras às da Confissão, Crampton declarou textualmente o seguinte:

"De fato, a doutrina 'deve ser tratada com especial prudência e cuidado' por homens que buscam 'a vontade de Deus [como] revelada em Sua palavra' (III,8). Isso certamente não seria possível com qualquer doutrina que não pudesse ser reconciliada pela mente do homem."

Crampton está dizendo com todas as letras que, se não puder entender racionalmente a doutrina da predestinação, não poderá tratá-la "com especial prudência e cuidado", que é o que a Confissão "prescreve como dever de todo crente", como afirmei. Mais adiante, Crampton diz que, se a Bíblia contivesse paradoxos, não seria um livro melhor que o Alcorão - de onde se segue que Deus não mereceria louvor por tê-la inspirado. Portanto, o que afirmei sobre Crampton foi dito por ele mesmo ou se segue logicamente do que ele disse. O Jorge, que dá tanto valor à lógica, não deveria me censurar por desenvolver as implicações lógicas do que está no texto para mostrar o quanto são absurdas. Aliás, toda vez que faço isso com um texto aparece alguém para reclamar que estou colocando palavras na boca do autor, quando na verdade estou apenas levando as palavras do autor mais a sério que ele próprio. Isso não é desrespeitar o autor; ao contrário, ele é que se desrespeita ao não assumir plenamente as implicações do que diz. Chamar isso de birra equivale simplesmente a não entender o que estou fazendo.
 
4. Crampton citou a seguinte declaração de John Gerstner: "Nós não vemos por que é impossível para Deus predestinar que um ato aconteça por meio da escolha deliberada de indivíduos específicos". Afirmei acerca desse trecho: "Devemos recordar que nenhum dos teólogos até agora criticados por Crampton, que são todos calvinistas, nega que tal coisa seja possível a Deus. Apenas negam compreender como Deus faz isso, o que não é a mesma coisa". Sobre isso, o Jorge comentou:

"Acontece que eles simplesmente não falam da predestinação, mas da liberdade humana para que ele seja responsabilizado. Ao mesmo tempo afirmar a soberania de Deus e a liberdade humana em que pese, sem ela, o homem não pode ser responsabilizado. A Bíblia, em nenhum momento fala que o homem tem de ser livre para ser responsável. Portanto, a Bíblia não criou o paradoxo, mas o homem, ao incluir um elemento alheio a ela. Quem está criando a confusão é o homem, não é a Escritura que tem."

Independentemente dos méritos ou deméritos das observações do Jorge, o fato é que ele foi muito além da função que minha declaração desempenha no texto, a qual não foi captada por ele de modo correto. Lido dentro do contexto, o trecho apenas serve de preparação para um argumento. Crampton disse que a afirmação de que algo é um paradoxo é subjetiva, e eu mostrei, naquele parágrafo e no seguinte, que, dadas as premissas de seu argumento, a negação de que algo seja um paradoxo é igualmente subjetiva. Usei as palavras acima para introduzir e esclarecer minha crítica, e nada além disso. Ao buscar a causa do suposto erro dos teólogos criticados por Crampton, o Jorge mudou de assunto, talvez sem perceber.

Feita essa observação, posso passar à tarefa de comentar o diagnóstico feito pelo Jorge sem o risco de endossar sua impropriedade enquanto crítica ao que estava sendo efetivamente tratado no meu texto. Não será um comentário exaustivo, mas suficiente para o momento. Na verdade, eu concordo em parte com o Jorge. Declarei logo no segundo parágrafo do primeiro post da série Sutilezas causais:

"A Bíblia não necessariamente nega a liberdade humana no sentido em que [...] a teologia reformada compreende esse termo. Mas também não lhe dedica a imensa atenção por ela recebida em muitos círculos teológicos cristãos, para não falar em amplos setores de diversas correntes humanistas. Portanto, existe uma chance considerável de que essa ênfase equivocada seja o produto da interferência indevida de uma cosmovisão antibíblica sobre a mente dos cristãos." 

É necessário ressaltar que, se a Bíblia não fala que o homem precisa ser livre para ser responsável, também não diz que não precisa. O argumento de McGregor Wright, endossado pelo Jorge, baseia-se apenas no silêncio e, como declarei antes, "o silêncio geralmente admite mais de uma interpretação". Concordo com o Jorge no sentido de que, em oposição a todos os tipos de arminianos e sinergistas, não vejo importância soteriológica na liberdade humana, e não considero que só podemos ser responsabilizados por pecados que poderíamos evitar. Mas não concordo que daí decorra a necessidade de um determinismo ontológico, no sentido de que todo evento tem uma causa que lhe é temporalmente anterior, ou de que a causalidade opera de modo a determinar univocamente o presente a partir do passado, e o futuro a partir do presente. Tais hipóteses ontológicas não só são desnecessárias para fazer justiça à revelação bíblica, mas também não estão declaradas na Bíblia. Por isso, ao defender o que defende, o Jorge também está acrescentando coisas aos dados bíblicos. A diferença entre nós é que ele não percebe isso.

Considero que alguma medida de liberdade ontológica (a não ser confundida com autonomia em relação ao decreto divino) é intrínseca à pessoalidade, e que esta não faz sentido sem aquela. Defenderei isso em um momento mais apropriado. Por ora, basta dizer que, pelas razões expostas no parágrafo anterior, acredito que o posicionamento do Jorge não é solução, e sim parte do problema por ele citado: a confusão criada pelo homem.