31 de dezembro de 2013

Fragmentos de razões - parte 4

Já tive ocasião de observar que costumo ser lento nas reações aos comentários que recebo. Expus algumas razões para isso no primeiro parágrafo desta postagem. Mantendo essa tradição, vou responder hoje a dois comentários que recebi há cerca de dois anos, um dos quais sequer cheguei a publicar. Seu autor não é mais bem-vindo neste blog, e me arrependo de ter-lhe dado as boas-vindas em um momento prévio. Na verdade, eu já o conhecia de outras paragens, mas, para encurtar a conversa, relatarei apenas que, nessa ocasião a que me refiro, tive de insistir seis vezes até que ele parasse de reclamar da vida e apresentasse um único argumento em defesa dos pontos de vista que veio enunciar aqui. Mas o fato é que, depois de tanta insistência, ele enfim apresentou argumentos e, considerando que eu os pedi, é justo que diga o que penso deles.

Apenas me reservo o direito de não divulgar o nome do autor. Faço isso por duas razões: primeiro, não tenho interesse em um diálogo pessoal com ele, e sim apenas nas ideias que apresentou; por outro lado, não guardo contra ele nenhum rancor, e não pretendo humilhá-lo associando seu nome a ideias tão esdrúxulas. Embora ele mesmo não tenha vergonha de publicá-las, não vou contribuir para "difamá-lo" com suas próprias palavras. Fiquemos, pois, com as palavras e deixemos para lá o autor, que, para fins de referência ao longo do post, chamarei de XYZ. Sua participação ocorreu no contexto de minhas críticas ao racionalismo de alguns irmãos reformados. Ele julga estar no extremo oposto, pois se identifica mais com Kierkegaard e acha que o calvinismo é intrinsecamente racionalista, o que implica que eu, no fundo, sou tão racionalista quanto aqueles irmãos. Por causa dessa perspectiva um tanto singular, suas observações têm algum valor didático para os meus propósitos de expor o que penso sobre o assunto, e é por isso que vale a pena examinar suas palavras.

Tentarei primeiro resumir o argumento de XYZ. Boa parte de suas declarações constitui uma crítica a Francis Schaeffer, que, segundo ele, "aponta Tomás de Aquino como aquele que exalta a razão em detrimento da graça, ou mistério. Mas condena Kierkegaard... Acho que não existe uma linha divisória clara. Está valendo o subjetivismo". Ele certamente se refere aos comentários de Schaeffer no livreto A morte da razão. Adiante, ele cita a definição de racionalismo dada pelo próprio Schaeffer: a ideia de que "o homem começa absoluta e totalmente de si mesmo, coleciona a informação a respeito dos particulares e formula os universais". Segundo ele, essa definição concorda com a do Aurélio: "Método de observar as coisas baseado exclusivamente na razão, considerada como única autoridade quanto à maneira de pensar e/ou de agir". Daí, prossegue dizendo que Schaeffer distingue o racionalismo da racionalidade, condenando apenas o primeiro, e que a "tese central" do pastor americano é que "as coisas da fé estão ligadas à razão, não se pode separá-las em dois campos distintos". Então, resume ele: "Schaeffer irá bater nessa tecla o tempo todo: não se pode fugir do exame racional da fé (ou da filosofia, da teologia, das artes etc.), mas não exagerem, o homem caiu, sua razão também. E ele dirá: razão não é tudo. Há um Deus, há uma Bíblia. Apeguemo-nos 'racionalmente' ao Deus da Bíblia." XYZ então invoca uma definição dicionarizada de racionalismo em filosofia ("Doutrina que considera ser o real plenamente cognoscível pela razão ou pela inteligência, em detrimento da intuição, da vontade, da sensibilidade, etc.") para dizer que "Deus não pode de forma alguma ser plenamente cognoscível pela razão", de modo que existe o mistério. Ele conclui, então, seu argumento: "E é justamente aqui que considero Schaeffer um racionalista e que se afasta do Mistério. Pois, haverá pontos que [sic] teremos que dizer aqui a razão para e a fé prossegue, ela prevalece. E haverá uma linha divisória. Caso não houver [sic] divisão entre fé e razão, não se pode determinar o que para um seja questão de fé (pura confiança em uma revelação, por exemplo) ou pura dedução lógica. Ou qual elemento terá maior peso. Daí digo que há margem suficiente para o subjetivismo." XYZ aludiu a isso quando me interpelou diretamente nos seguintes termos: "Você acredita como Kierkegaard que a fé é um 'paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão'?"

Qual é a importância disso tudo? Ele mesmo esclarece: "Ao defender o mistério e atacar a ênfase exagerada na razão (racionalismo) você poderia: estar contradizendo escandalosamente uma grande referência sua, a saber [sic] Schaeffer; ou: sua referência poderia estar escandalosamente errada num ponto básico deste. Isso caberia a você clarear…" Por isso ele falou tanto em Schaeffer, que nem havia sido mencionado em minhas postagens. XYZ buscou ainda resumir seu argumento principal nas seguintes palavras: "Ninguém quer ser racionalista, hoje. Cabe-se [sic] então estabelecer os claros limites entre razão e fé (o que já é uma forma de racionalismo)". E conclui seu comentário dizendo que Schaeffer "defendia que a razão humana deveria submter-se à fé bíblica para avaliar as questões de fé - como se a Bíblia pudesse pensar e falar por si mesma, e como se estas questões de fé não estivessem relacionadas à sua própria interpretação". Aqui estaria a contradição e o racionalismo de todo calvinismo, seja o meu, o de Schaeffer ou o dos irmãos que tenho chamado de racionalistas.

Diante do exposto, fazem-se necessários alguns esclarecimentos, que passo a fazer em forma de tópicos:
1. Os conceitos de razão e racionalismo que Schaeffer utiliza são eminentemente vantilianos e  não coincidem com os do dicionário. A "razão" de Cornelius Van Til não é apenas a razão analítica, e sim a totalidade das faculdades cognitivas humanas. Da mesma forma, o racionalismo de Van Til não é o do século XVII, que seria apenas um caso particular do primeiro. A chave para entender o conceito de Schaeffer está em sua declaração de que "o homem começa absoluta e totalmente de si mesmo". Schaeffer, assim como Van Til, não está discutindo as picuinhas epistemológicas que dividem as diversas correntes humanistas, e sim dizendo que todo esforço de conhecimento não-redimido deposita no homem, e não em Deus, sua confiança última na capacidade humana de conhecer alguma coisa e dar significado à sua vida.
2. Ao contrário do que XYZ afirma, Schaeffer nunca disse que Tomás de Aquino "exalta a razão em detrimento da graça", e muito menos equiparou a graça ao mistério. O que Schaeffer disse foi que Tomás não tinha uma visão suficientemente profunda da Queda e, em particular, dos efeitos noéticos (cognitivos) do pecado, e por isso concebeu a graça divina como algo que apenas aperfeiçoa uma natureza intrinsecamente imperfeita do ponto de vista ontológico, em vez de transformá-la pela regeneração. Por isso, usando categorias dooyeweerdianas, Schaeffer descreve o pensamento tomista como um motivo dualista de "graça e natureza", e rejeita esse esquema completamente em favor do motivo bíblico de "criação, queda e redenção".

3. Assim como não entendeu o significado de razão (item 1), XYZ também não entendeu o conceito de fé na terminologia de Schaeffer. XYZ concebe fé como uma crença desprovida de evidência racional e que vem trazer complementos nos pontos "misteriosos" em que a razão não dá conta do recado, e erroneamente atribui essa carga semântica à palavra "fé" quando ela aparece nos textos de Schaeffer. Essa visão da relação entre fé e razão é própria do motivo tomista, pelo qual a revelação vem coroar e complementar aquilo que nossa razão é capaz de descobrir sozinha, como um caso particular do aperfeiçoamento da natureza pela graça. Schaeffer não poderia ter esse conceito de fé, pois isso é parte do que ele critica já no primeiro capítulo do livro (item 2).

4. Não tendo entendido os conceitos de razão e fé isoladamente considerados (itens 1 e 3, respectivamente), é claro que XYZ não poderia entender a natureza da relação entre os dois. É por isso que, ao ouvir falar nessa relação, ele pensou logo em termos de limites cartesianamente (ou kantianamente) claros e distintos para a razão. No meu entendimento, isso constitui uma banalização deveras simplória do debate. Por achar que o tema em discussão era (ou deveria ser) esse, XYZ inferiu que Schaeffer é racionalista; e, por não encontrar uma dissertação sobre esse tema, concluiu que ele é subjetivista. Mas Schaeffer tinha um motivo muito bom para não elaborar essa dissertação: é que ele simplesmente estava falando de outra coisa, muito mais importante. E isso nos leva ao item 5.

5. Schaeffer não discute até onde a razão pode ir sem a fé porque, em sua opinião, não pode ir a parte alguma. Schaeffer é um pressuposicionalista, o que significa que, para ele, a lealdade ao Deus revelado na Bíblia - ou, inversamente, à autonomia da razão humana - precede e condiciona todo esforço de compreender ou harmonizar o que quer que seja. Nesse sentido, a fé é uma dimensão indispensável de todo esforço de conhecimento, sejam quais forem as convicções teológicas do sujeito. Não há uma disputa a cotoveladas de espaço entre a fé e a razão, e sim uma operação conjunta de ambas em todo ato de conhecimento, mas em planos diferentes. Essa ideia faz sentido especialmente à luz da antropologia filosófica de Herman Dooyeweerd.

6. Com base no item 5, Schaeffer critica em Tomás de Aquino a concessão de certo grau de neutralidade à razão humana, como se ela pudesse atuar à parte da fé em alguma medida; ao mesmo tempo, critica Kierkegaard porque este supõe que há uma dimensão da vida humana em que a razão não tem nenhum papel importante, já que "a fé começa precisamente onde acaba a razão". Ambas são formas de separar a fé da razão, e é a isso que Schaeffer se opunha. Para Schaeffer, embora na aparência pareça haver uma oposição radical entre Tomás e Kierkegaard, eles estão unidos nesse erro mais profundo e radical, com o qual é necessário romper. Por conseguinte, Schaeffer não foi nada subjetivista ao discordar de ambos ao mesmo tempo.

7. Ao contrário do que afirmou XYZ, conheço várias pessoas que não se importam em ser chamadas de racionalistas. Talvez ele esteja generalizando demais seu próprio sentimento. Apesar disso, ele mesmo não está imune ao racionalismo. Seu modo de entender a relação entre fé e razão é típico do racionalismo mais raso, como o que eu costumava encontrar ao discutir, durante a faculdade, com ateus cientificistas presunçosos e incultos. Ele mesmo afirmou que "estabelecer os claros limites entre razão e fé [...] já é uma forma de racionalismo", e essa é sua grande preocupação - tanto que é aí que ele situa a grande contradição dos calvinistas criticados. O fato de tal racionalismo vir de alguém que julga estar criticando o racionalismo de outros é deveras revelador, e corrobora a visão vantiliana de que racionalismo e irracionalismo são duas faces de uma mesma moeda, e que em qualquer cosmovisão não-redimida as duas estão sempre presentes, ainda que uma possa ser mais aparente.

8. A ironia do item 7 tem um corolário nas palavras finais de XYZ, para quem o calvinismo ignora a subjetividade envolvida no esforço de interpretação das Escrituras. Ele está correto em ver racionalismo nisso, mas está errado em supor que a abordagem de Schaeffer (ou do calvinismo em geral) seja essa. À luz dos itens 4 e 5, a questão não é "até que ponto" podemos interpretar a Bíblia de modo autônomo e objetivo, e sim se estamos dispostos a nos deixar ensinar por ela, isto é, se vamos a ela com o propósito de permitir que o Espírito das Escrituras guie nosso entendimento. A fé é depositada no Cristo da Bíblia, e não só no próprio texto. E fé, aqui, não é o que acontece depois que a razão para de funcionar, e sim a esperança de redenção (intelectual e hermenêutica, inclusive) que depositamos.

9. Em meio a tantos equívocos, XYZ fez pelo menos uma coisa bastante acertada, ao citar as seguintes palavras de Fernando Sabino: "Para mim, a fé prevalece sobre a razão, mas não a contraria. O homem só é um ser racional porque tem fé, mesmo quando pensa que não tem: neste caso, o que ele não tem é razão." Não digo, é claro, que Sabino fosse um pressuposicionalista, mas digo que suas palavras podem ser entendidas dentro desse quadro de referência sem nenhum problema. A precedência da fé sobre a razão e sua operação até no incrédulo (embora seja, nesse caso, uma fé idólatra) e o caráter não-excludente da operação normal de ambas estão claramente expressos aí. Pena que XYZ tenha citado essas palavras achando que elas se opunham às de Schaeffer. Na verdade, elas estão muito mais próximas do pastor americano que do existencialista dinamarquês.

5 de novembro de 2013

Deveres sem pessoas - parte 14

Na última postagem, dei início aos comentários sobre a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade do artigo A autonomia da ética, do  Dr. David Owen Brink. O objetivo da seção é demonstrar que Deus não pode ocupar nenhum papel motivacional legítimo no comportamento moralmente correto do homem. Agora darei continuidade a essa análise. Conforme demonstram as citações já feitas, Brink não questiona o fato de que o cristianismo provê uma motivação prudencial adequada para a moralidade. Além disso, ele reconhece que o secularismo não proporciona uma justificação desse tipo. Sendo assim, só resta a Brink prosseguir atacando a "justificação prudencial", e isso é o que ele faz em [12.2]:

"[...] segundo esta concepção da motivação moral, cada pessoa tem uma justificação instrumental para ser moral, nomeadamente, que ser moral é necessário e suficiente para ter uma bem-aventurada vida depois da morte. Segundo esta concepção, o comportamento moral não é bom em si, mas em virtude das suas consequências extrínsecas. Mas [...] supõe-se por vezes que quando se age moralmente por razões puramente instrumentais isto diminui o valor moral dessa acção. Deus pode escolher recompensar o altruísmo desinteressado, mas não pode ser a perspectiva desta recompensa que motiva os agentes, sem que isso ao mesmo tempo roube tais acções das mesmíssimas características que Deus quereria recompensar."

Há várias meias-verdades nesse parágrafo. Brink não problematiza o conceito de "justificação instrumental", quando deveria fazê-lo. Se eu faço o bem à minha esposa por querer o bem dela (afinal, eu a amo), isso exclui o meu desejo de tornar mais fácil que ela me ame de volta? E, caso não exclua, essa segunda motivação é imoral? Ela rouba ou diminui a virtude do bem que faço à minha esposa? Isso é a mesma coisa que fingir amá-la para obter vantagens e recompensas? Seria esse um caso de "justificação instrumental"? No meu entendimento, tudo isso é sem sentido. Brink diz absurdos justamente porque, como já expliquei, ele está preocupado demais com o Deus Juiz. Ele faria bem em se preocupar ainda mais, mas o problema é que ele está preocupadocom isso por motivos errados, puramente instrumentais.

Se Brink conseguisse por um instante pensar em Deus como um ser pessoal e entender nossa relação com Deus como uma relação pessoal, veria que suas categorias de pensamento sobre o papel motivacional de Deus para a moralidade são fundamentalmente inapropriadas. É por isso que ele cai no dilema entre benefícios extrínsecos e intrísecos da virtude, entre o uso interesseiro e o uso indiferente da moralidade. Se ele levasse isso a sério, seu casamento não duraria mais seis meses, pois ele teria de escolher entre enganar sua esposa e não se importar com ela - no primeiro caso, tratando-a segundo seus próprios interesses; no segundo, suprimindo seu desejo pelo bem dela. Mas a Bíblia resolve o dilema ao dizer: "quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Coríntios 10.31). Isso não é uma caça às recompensas, e tampouco é um "altruísmo desinteressado". É um altruísmo bastante interessado, que dá glória a Deus em primeiro lugar, serve às pessoas e se beneficia com a consciência limpa das recompensas daí advindas - as quais, ao contrário do clichê que Brink repete sem pensar, não começam só depois da morte, mas também são fruto da providência de Deus e das leis divinas inscritas na estrutura da criação. O cristianismo não cabe nas categorias de pensamento do Dr. Brink.

Brink persiste, no entanto, em seu dualismo, como ao argumentar em [12.3] que, "se a virtude deve ser cultivada pelas suas próprias recompensas, esta justificação deve evitar o apelo aos benefícios extrínsecos da virtude, que são conceptualmente separáveis do facto da virtude, e apelar em vez disso para os benefícios inseparáveis da própria virtude". E conclui:

"Saber se estas concepções das recompensas intrínsecas da virtude são defensáveis é uma questão complexa. O que é importante para os nossos propósitos é que se a virtude é a sua própria recompensa, então haverá um sentido importante em que o apelo às sanções e recompensas divinas fornece uma justificação prudencial da moralidade que é simultaneamente desnecessária e indesejável."

Na nota 19, o Dr. Brink remete a um outro artigo seu para a discussão sobre as "recompensas intrínsecas da virtude", sobre as quais ele não toma partido aqui. De qualquer modo, é frustrante o fato de ele basear todo o seu argumento em uma premissa de importância fundamental que, no entanto, não é defendida no próprio texto. Pior ainda, ele sequer se posiciona claramente acerca dela. Escreve apenas um "se"; se a hipótese não for válida, ele não levantou objeção alguma; e, se for, ele não a defendeu com argumentos.

O parágrafo [12.4] expõe uma outra visão filosófica possível do tema, nos seguintes termos:

"Esta concepção da autoridade da moral tem de insistir que o facto de eu atender a uma exigência moral qualquer de outra pessoa é em si uma razão para eu agir, independentemente de {me} beneficiar com isso. Isto seria uma concepção imparcial da razão prática, reconhecendo uma razão inderivativa para beneficiar os outros. Esta concepção foi mais plenamente desenvolvida na tradição kantiana. Saber se esta concepção é defensável ou não é também uma questão complexa. O que é significativo para os nossos propósitos é que esta concepção da autoridade da moral rejeita a justificação prudencial da moralidade a que muitas tradições religiosas dão corpo."

Vê-se que isso é apenas mais do mesmo. Lamentavelmente, O autor não se posiciona sobre a vertente que expõe, e não a fundamenta com argumentos. Aqui, outra vez, ele aponta um outro artigo seu sobre o tema. Além disso, como já observei na nona parte desta série, a visão kantiana da moral só faz sentido à luz de todo o restante do sistema kantiano, que Brink certamente não abraça. Sem esses pressupostos, Brink não tem nenhuma razão para nos dizer que devemos ser imparciais, e que é por isso que a moralidade dispensa Deus. Ao contrário, parece que a imparcialidade é uma regra moral como outra qualquer, e estamos perguntando sobre as motivações dela juntamente com todo o resto. Não há aqui um argumento sequer sobre por que devemos agir de modo moralmente correto sem justificação prudencial.

Essa seção do artigo é decepcionante pela escassez de argumentos. Tenho a impressão de que Brink está se limitando a listar teses e escolas filosóficas que se oporiam ao que ele pensa ser a religião tradicional. Sendo ele, porém, bastante ignorante sobre o que está criticando - não chegando sequer a entender, por exemplo, as motivações religiosas de um cristão para agir de modo moralmente correto -, mesmo seus poucos argumentos acabam não valendo nada.

Assim, depois de muita confusão e pouco argumento, a seção é concluída em [12.5] da seguinte forma: "Quer decidamos que a virtude é a sua própria recompensa quer decidamos que nenhuma recompensa é necessária, parece que podemos justificar a conduta e o cuidado morais de maneiras que não atribuem qualquer papel que seja a Deus". Como nas seções anteriores, aqui Brink atribui ao "teísmo" um dilema que só tem sua razão de ser dentro de um esquema que desconsidera a pessoalidade de Deus.

Com isso, encerro minhas considerações sobre a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade.

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Resta do artigo apenas um parágrafo, [13.1], que vem sob o subtítulo Comentários finais. Antes de passar a ele, no entanto, quero complementar tudo o que já disse sobre o conteúdo do artigo com uma breve observação sobre algo de que ele não trata, e que me parece ser uma omissão deveras relevante. Talvez eu devesse ter dito isso em um momento anterior desta série, mas creio que não é tarde demais para dizê-lo agora. É o seguinte: em certo sentido, toda essa discussão é enganosa. Todos os esforços de Brink para colocar dificuldades à posição "teísta" com base na moralidade apenas pressupõem que o ateísmo é uma alternativa viável. Mas, se há "teísmos" com dificuldades para dar conta da objetividade moral, o ateísmo não explica sequer a simples existência de categorias morais na mente humana. Uma vez que se admita um universo feito de matéria, energia, tempo, espaço e leis físicas, não há nenhum meio pelo qual possa resultar alguma dimensão moral, mesmo que apenas ilusória. A consciência moral é impossível nesse quadro, porque a própria consciência é impossível em todos os domínios. Esse é um problema para o qual eu tinha esperança de ver alguma discussão no artigo de Brink. Mas é mais um tema sobre o qual ele parece jamais ter pensado adequadamente.

O parágrafo final resume as conclusões centrais do artigo - todas equivocadas, como já creio ter demonstrado. Talvez fosse bom eu fazer um resumo de meus argumentos, mas estou com pouco tempo para isso. Porém, nem tudo nesse parágrafo final é mera repetição. Ao exaltar mais uma vez a autonomia da ética, o Dr. Brink afirma que "é esta concepção moralizada dos deuses que afasta Sócrates do género de politeísmo sem princípios dos seus antecessores e contemporâneos". Ainda que isso seja verdade, apenas reforça minha impressão de que, em se tratando de religião, a estrutura de plausibilidade de Brink está fortemente circunscrita ao ambiente politeísta onde a filosofia nasceu. Sua tentativa de analisar o monoteísmo judaico-cristão sem perceber que precisa refinar ou reformular suas categorias de pensamento é o grande responsável, no plano teórico, pelo seu fracasso - aquilo que na terceira parte designei como um politeísmo de um deus só.

Porém, o fracasso filosófico geralmente tem motivações mais profundas, e o parágrafo final também dá mostras disso. O breve comentário sobre Sócrates transcrito acima é seguido por uma nota que diz: "Esta concepção moralizada dos deuses pode ser também responsável por Sócrates ter sido levado a tribunal, acusado de impiedade, ainda que possamos pensar que esta concepção moralizada é mais piedosa do que a sua rival sem princípios". Desconheço evidências de que seja esse o motivo da acusação feita a Sócrates, mas o que me parece mais notável é o fato de Brink se referir à sua própria concepção como "moralizada" e "mais piedosa", ao passo que a dos religiosos por ele criticados ao longo de todo o artigo é "sem princípios". Brink vê aqui uma versão milenar do duelo entre sua "autonomia da ética" e o voluntarismo que ele definiu como o vilão do artigo. Repito que não aceito essas categorias, mas é o ponto de vista de Brink que importa aqui. Se ele elogia Sócrates, é porque olha o velho filósofo grego e vê sua própria imagem refletida. Sua intenção, no fim das contas, é bastante autolaudatória; e, falando de uma perspectiva mais ampla, boa parte do esforço despendido nesse artigo, se não no restante de sua obra, consiste em provar, para os outros e para si mesmo, que ele pode ser bom sem depender de Deus para isso.

29 de outubro de 2013

Deveres sem pessoas - parte 13

Esta é a mais longa série de postagens que já publiquei neste blog. Ao longo dela, venho tecendo comentários sobre o artigo A autonomia da ética, no qual o filósofo ateu David Owen Brink buscou mostrar que não há papel para Deus na objetividade moral. Nesta postagem, passo a me dedicar à seção Motivação moral e a autoridade da moralidade, [10.3-12.5]. Nela o autor busca excluir Deus do terceiro papel possível que ele pode ter na moral: o da motivação para uma conduta correta (as duas primeiras eram o papel metafísico e o epistemológico). Brink dá início à seção, em [10.3], declarando que "Deus desempenha um papel motivador na ética se fornece um incentivo necessário para sermos morais". Naturalmente, ele não crê que seja o caso. Mas nesse parágrafo inicial ele apenas descreve esse possível papel. Vejamos como o faz:

"Se calcularmos apenas os custos e benefícios terrenos da virtude, parece que não podemos sempre mostrar que é sempre melhor para nós sermos morais. Mas se a justiça exige que se puna o vício e se recompense a virtude, a justiça perfeita de Deus parece implicar que ele usaria o Céu e o Inferno para recompensar a virtude e punir o vício. Porque a vida depois da morte é eterna, as suas sanções e recompensas tornariam irrelevantes os custos e benefícios terrenos da virtude e do vício. Segue-se que a perspectiva de sanções e recompensas divinas poderia fornecer uma motivação prudencial para a moralidade que parece ausente se restringirmos a nossa atenção às sanções e recompensas seculares."

É essa a tese que o Dr. Brink pretende refutar no restante da seção. Considero interessante destacar que nesse ponto, embora o autor ainda não tenha sequer começado a argumentar, seu equívoco já está mais que evidente: o tratamento que ele dá à questão é estritamente "prudencial". O único papel motivacional que Brink é capaz de conceber para Deus é o de executor de um princípio impessoal de justiça, cuja existência torna pouco recomendável que cada um aja como bem entende. Como em todo o restante do artigo, nenhuma consideração séria de Deus como um ser pessoal é tentada aqui.

Que outras motivações Deus poderia exercer sobre a moralidade? Ora, imaginemos que o Dr. Brink chegue em casa certo dia e diga à sua esposa: "Querida, andei pensando e concluí que sua presença em minha vida é um excelente motivo para eu não procurar outras mulheres. Afinal, a probabilidade de você descobrir tudo é sempre alta, e isso geraria para mim consequências desagradáveis que vão desde o clima ruim aqui em casa até a perda da admiração de pessoas que eu prezo, o que fatalmente ocorreria se você contasse a elas sobre minhas escapulidas. Além disso, se você resolvesse se divorciar de mim, seria pior ainda: eu iria à falência pagando a pensão das crianças. Por isso, alegre-se: você tem para mim um papel motivador muito forte." Nesse caso, a sra. Brink teria algum motivo para se sentir amada e lisonjeada? Acharia ela que seu marido tem uma noção correta do que significa o casamento? Que ele está se privando do adultério pelos motivos corretos? É claro que não. Ao contrário, ela teria plena razão em se sentir insultada e humilhada.

No entanto, o "papel motivador" que Brink atribui a Deus nesse parágrafo é idêntico, exceto pelo fato de que Deus seria mais eficiente em descobrir seus deslizes. Brink insulta Deus com uma naturalidade tal que torna o insulto ainda mais grave. Sequer lhe ocorre que alguém possa ser motivado a uma vida moralmente correta por outros fatores: por amor a Deus (que leva naturalmente ao desejo de agradar a pessoa amada), por gratidão às tantas bênçãos recebidas da parte dele, por desejar glorificar seu nome no mundo, por desejar a semelhança de Cristo, por ter consciência de sua própria treva interior e estar convencido de que só Deus pode nos libertar dela... Não; Brink não tem nenhum interesse em Deus como pessoa, e não é capaz de conceber que alguém possa tê-lo. Para ele, Deus é só uma instância jurídica infalível. É assim que as motivações excusas do coração humano, em sua perversão e rebeldia contra Deus, são "inocentemente" convertidas em premissas dogmáticas de sofisticadas teorias filosóficas. A atitude do Dr. Brink em [10.3], bem como em todo o restante da presente seção, é uma excelente ilustração do que a filosofia reformada chama de "efeitos noéticos do pecado".

De [11.1] em diante, Brink passa a se ocupar da "razão pela qual havemos de dar importância às exigências morais"; em outras palavras, "procura-se uma defesa prudencial da autoridade da moralidade". Assim, ao menos por enquanto, o autor prosseguirá na mesma limitação auto-imposta declarada no parágrafo anterior, a qual é bastante artificial. Segundo Brink, não podemos "estar à procura de uma razão moral para sermos morais". Não vejo por que não, exceto pelo fato de que, para a teoria moral secular, é difícil responder a essa pergunta. A objetividade da moral é em si uma razão suficiente para sermos morais, pois taz como implicação imediata a normatividade do aspecto moral da realidade. E todo o problema do compromisso de Brink é que ele não é capaz de fundamentar adequadamente essa objetividade.

Não obstante, uma vez constatada a (ao menos possível) tensão entre as exigências da moral e o nosso interesse próprio, é necessário responder a ela. Brink começa uma "defesa secular tradicional da moralidade" dizendo, em resumo, o seguinte em [11.2]:

"Apesar de poder ser desejável ficar com os benefícios do cumprimento alheio das normas de temperança e cooperação sem incorrermos nós próprios nesse ónus, as oportunidades para o fazer são infrequentes. [...] Por esta razão, o cumprimento é tipicamente necessário para usufruir dos benefícios do cumprimento constante dos outros. [...] o cumprimento é muitas vezes necessário para evitar sanções sociais."

Os destaques são meus, e os fiz a fim de mostrar que Brink reconhece as limitações desse método. Isso fica explícito em [11.3], quando ele diz que, "desde que entendamos a justificação prudencial da moralidade em termos de vantagem instrumental, a coincidência secular entre a moralidade relativa aos outros e o interesse próprio iluminado tem de ser sempre imperfeita. [...] A coincidência imperfeita entre a moralidade e o interesse próprio implica que a imoralidade não tem sempre de ser irracional". De fato, e talvez aqui resida o maior mérito de Brink nessa seção. Na medida em que reduz a moralidade à racionalidade, essa visão não pode deixar de conceder ao indivíduo o direito (moral) de avaliar racionalmente quais são as exceções que valem a pena. Assim, essa justificativa falha completamente. Afinal, os critérios podem variar de pessoa para pessoa. E, ainda que o juízo de alguém sobre a conveniência de agir mal em um dado caso seja equivocada, só poderemos acusar essa pessoa de ser pouco inteligente, mas não de ser imoral.

Em [12.1], Brink volta a introduzir Deus na conversa: "É claro que um Deus omnisciente, omnipotente e perfeitamente bom poderia fazer sanções e recompensas eternas, de modo a tornar perfeita a coincidência entre a moralidade e o interesse próprio", e assim "poderia fortalecer a justificação prudencial secular da moralidade". Embora reconheça isso, no entanto, Brink levanta objeções ao papel motivador de Deus na moralidade. A primeira é que talvez a moralidade não exija "uma justificação prudencial perfeita", e "o que é moralmente correto não seja sempre prudente". Sem dúvida, a moralidade secular precisa lidar com essa possibilidade. Mas esse fato não chega a ser uma objeção, pois depende de um "talvez" para cuja demonstração não é feito nenhum esforço. E, na verdade, só a inexistência de Deus poderia constituir prova suficiente, de modo que, dado o escopo do artigo, o argumento é circular. Pois, se Deus existe, o que é moral é sempre prudente.

Na próxima postagem trarei o restante de minhas considerações sobre essa seção, e também os comentários finais ao artigo e, com isso, a conclusão desta série.

8 de setembro de 2013

Deveres sem pessoas - parte 12

Na última postagem dei início aos comentários sobre a seção Indício moral e vontade divina do artigo A autonomia da ética, em que o filósofo ateu americano David Owen Brink argumenta que Deus não é necessário para a objetividade moral. A referida seção ataca especificamente a questão do papel epistemológico de Deus na moralidade. No parágrafo [10.1], o penúltimo da seção, Brink apresenta seu segundo argumento, defendendo que não temos uma revelação divina clara o suficiente para guiar nossa percepção da realidade moral. Esse argumento é dividido em três partes, e na postagem anterior eu havia analisado as duas primeiras. Agora, portanto, passo à seguinte.

A terceira parte do segundo argumento de [10.1] é um pouco mais complexa que as anteriores, mas nem por isso menos simplória. Nos "casos em que a tradição e a escritura falam inequivocamente", Brink questiona "se o que é afirmado deve ser interpretado literalmente". Seguem-se dois exemplos, cujo efeito retórico depende primariamente da confiança do autor em que os leitores do artigo os considerarão nada menos que absurdos ou ridículos. Ambos são retirados de Deuteronômio (21.18-21 e 22.13-21, respectivamente) e dizem que "os pais podem e devem matar à pedrada os filhos rebeldes" e que "a comunidade pode e deve apedrejar até à morte qualquer esposa cujo marido descubra que não era virgem quando do casamento".

Digo que esse argumento é simplório porque ele reduz demais o problema ao ignorar, por exemplo, que a aceitação da Bíblia como Palavra de Deus não nos obriga a observar toda a letra da Lei de Moisés. À luz do conceito dos pactos sucessivos (tratados, por exemplo, pelo teólogo O. Palmer Robertson em seu clássico O Cristo dos pactos), entender a questão como simples opção entre a literalidade ou não de certas normas jurídicas veterotestamentárias significa nada menos que privar-se de entender a doutrina cristã ao enquadrá-la em categorias que não lhe são próprias. Esse modo de entender (ou, melhor dizendo, de não entender) a Bíblia constitui analfabetismo teológico na medida em que faz abstração da questão importantíssima (e algo controversa) de determinar o que é provisório e o que é permanente na antiga dispensação. Esse é um tópico sempre presente no pensamento cristão, como demonstram as discussões narradas nos Atos dos Apóstolos e a Epístola aos Hebreus inteirinha. Brink não tem o direito de discorrer sobre a literalidade das leis do Antigo Testamento ignorando um tema tão básico. Mas o fato é que o ignora completamente.

Contudo, eu havia dito que essa terceira parte do segundo argumento pode, por sua vez, ser subdividida em duas partes. A primeira é a discutida no parágrafo anterior. Mas a segunda também é deveras interessante e reveladora, pois, em vez de tratar de questões morais, como o restante do artigo, faz um desvio em direção às ciências naturais: "uma leitura literal do Antigo Testamento fornece uma data para a idade da Terra e afirmações sobre a história das espécies vegetais e animais que é contradita pelos registos fósseis e geológicos". Uma afirmação tão peremptória e fora de escopo não merece que eu me dedique a examinar sua veracidade, o que exigiria uma atitude incompatível com tamanho simplismo. É suficiente, para os propósitos desta série, examinar o papel retórico dessa sentença, que busca dar plausibilidade à conclusão do parágrafo: "Temos mais razões para aceitar as afirmações científicas e morais seculares do que para aceitar uma leitura literal destes textos religiosos particulares". O objetivo retórico evidente dessa manobra é emprestar (por osmose) às suas especulações "morais seculares" o prestígio que as ciências naturais possuem na cultura ocidental contemporânea e, por consequência, vestir nos críticos religiosos dessas mesmas especulações a famosa caricatura do fundamentalista de mente estreita que rejeita fatos científicos porque contradizem sua fé.

Não é difícil ver que uma associação tão superficial e gratuita como essa é muito pouco para caracterizar como científicas as elucubrações delineadas na seção Variedades de naturalismo. Já demonstrei isso em minhas críticas ao conteúdo daquela seção (nas partes 8, 9 e 10 desta série), e não tenho nada a acrescentar. A tática é pueril o suficiente para que sua aparição em um artigo com tantas qualidades possa ser considerada decepcionante. Não obstante, desejo fazer apenas uma observação sobre a conduta argumentativa do Dr. Brink nesse ponto. Como já observei na postagem inicial da presente série, ele mesmo se define em sua página pessoal como estudioso de "teoria ética, história da ética, psicologia moral e jurisprudência", sendo portanto, um amador tanto em ciências naturais quanto em teologia. É razoável, portanto, afirmar que suas opiniões sobre ambos os temas se baseiam amplamente na autoridade de pessoas que os estudaram de modo bem mais profundo que ele.

Dada essa condição, seria razoável também esperar que o Dr. Brink fosse igualmente cônscio de sua ignorância em ambas as áreas, e não fosse mais desconfiado de uma classe de especialistas que de outra. Ou, caso isso não ocorresse, seria de se esperar que ele tivesse consciência do fato como algo que necessita de explicação, e então a fornecesse no artigo, ainda que em uma sentença breve e simplória, como é seu costume ao tratar de temas que ignora. Afinal, Brink não tem conhecimento de primeira mão sobre os pormenores técnicos e científicos dos debates entre evolucionistas e criacionistas, ou entre evolucionistas e evolucionistas, assim como desconhece os pormenores culturais, históricos e teológicos pertinentes ao esforço de harmonização de contradições bíblicas.

Contudo, isso não acontece. Além de fazer afirmações sobre ciência e teologia com a mesma desenvoltura com que discorre sobre seus temas de especialidade, Brink desconsidera a autoridade acadêmica dos teólogos e outros estudiosos cristãos com a mesma naturalidade com que aceita a dos cientistas e outros estudiosos seculares. Quase todos os secularistas que conheço acham essa parcialidade bastante natural e justa. Mas não é, e o Dr. Brink, ao adotá-la, apenas demonstra que é um dogmático da pior espécie: a dos que sequer têm consciência de que possuem dogmas; para eles, seus dogmas são a verdade única e universal, que só um idiota completo é capaz de colocar em discussão. Mas tal procedimento não se justifica racionalmente. Afinal, Brink pretende provar, de um ponto de vista racional e neutro, que Deus não tem um papel epistemológico na moral. Nesse caso, pressupor que os cristãos estão errados e os secularistas estão certos em temas epistemológicos gerais não passa de uma petição de princípio, na melhor das hipóteses.

Na verdade, o problema do Dr. Brink é um pouco mais grave do que dei a entender ao contrapor os intelectuais cristãos aos secularistas. Justiça seja feita: a autoridade da ciência, apesar de tudo, não é uma unanimidade entre estes últimos. No brevíssimo artigo O provincianismo neo-ateu, publicado na revista Época há vários anos, Marcelo Cavallari afirmou que "Richard Dawkins, Daniel Dennett e os demais autores que se dedicam ao recente ateísmo militante parecem figuras saídas do século XIX", pois "escrevem como se a filosofia da ciência não existisse". Não sei quanta semelhança há entre os neo-ateus citados e o Dr. Brink; mas, nesse ponto, a identidade é perfeita. Depois de um século repleto de figuras como Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Michael Polanyi e Michel Henry - apenas alguns dos eminentes pensadores não-cristãos que fizeram críticas avassaladoras à concepção tradicional de ciência, aquela que ainda aprendemos na escola -, o papel que Brink desempenha aqui não pode ser considerado menos que ridículo. Embora pretenda dar aulas de epistemologia, ele desconsidera por completo os debates internos do próprio secularismo sobre os méritos e deméritos da ciência moderna - coisas que aparecem qualquer obra introdutória básica sobre filosofia da ciência.

Porém, mais que revelar a ignorância do autor sobre temas acadêmicos relevantes, o parágrafo [10.1] - que, como já afirmei no último post, é um dos mais interessantes do artigo - revela suas lealdades (palavra muito importante que já apareceu na quinta parte desta série) e o papel delas em sua cosmovisão. Como observei na segunda parte, Brink é bastante honesto quanto às motivações que o impelem a defender a autonomia da ética: além de evitar o relativismo e o niilismo morais, ele deseja também evitar o compromisso com o "teísmo", salvaguardar a "separação entre igreja e estado" e combater a influência cultural e política dos religiosos. A argumentação assimétrica desenvolvida em [10.1] mostra o quanto ele está comprometido com essas metas, e o quanto elas influenciam sua conduta. É importante que fique claro que as motivações vêm necessariamente antes da argumentação e determinam os critérios pelos quais a questão é avaliada - aquilo que os sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann chamam de "estrutura de plausibilidade". A pretensão de ter excluído o papel epistemológico de Deus na moralidade por meio da argumentação racional e imparcial é uma ilusão que o Dr. Brink alimenta porque não tem suficiente senso autocrítico. Seus compromissos políticos, culturais e espirituais constituem causa, e não consequência, de sua rejeição da moral "teísta".

Antes de passar ao próximo parágrafo e encerrar meus comentários a essa seção, pretendo chamar rapidamente a atenção para o padrão que se estabelece aqui. Comentando as atitudes de Brink na postagem anterior, aludi várias vezes à sua "preguiça" de resolver certas dificuldades que se apresentam no estudo da moralidade sob pressupostos "teístas" (na prática, cristãos), em contraste com sua firme convicção de que dificuldades análogas na moral secular não constituem problema. E mostrei na segunda postagem da série que, embora de modo inconsistente com seu materialismo, o autor conseguiu fugir a essa tentação até certo ponto; agora, no entanto, isso não aconteceu. Aqui, como lá, essa preguiça altamente seletiva brota de certos compromissos prévios com uma ontologia e uma epistemologia determinadas. Decorre daí a alegação, tantas vezes repetida, de que é difícil conhecer isto ou aquilo. De fato, dados os pressupostos do ateísmo, conhecer o que quer que seja é impossível, e não apenas difícil; o fracasso retumbante da seção Variedades de naturalismo é um ótimo exemplo disso. Mas e daí? Os cristãos não estão comprometidos com os pressupostos seculares que o autor, de modo inconsciente e dogmático, introduz a todo instante como obviedades. Assim como a incapacidade da ciência de provar a existência de Deus revela uma limitação da ciência, e não de Deus, a incapacidade do Dr. Brink de encaixar a moral cristã em seus critérios seculares revela um problema desses critérios, e não daquela moral. Se o próprio Dr. Brink sequer desconfia dessa possibilidade, é porque, uma vez mais, ele é dogmático demais para suspeitar de si mesmo.

Pelas razões que já expus, a seção Indício moral e vontade divina é, em minha opinião, a mais lamentavelmente pobre do artigo. Mas não quero encerrar meus comentários sobre ela sem fazer a Brink um elogio merecido. Em [10.2] ele comenta que uma solução comum aos problemas apresentados no parágrafo anterior consiste em "sancionar a interpretação da tradição e da escritura que fornecem a concepção moralmente mais aceitável da vontade de Deus". Mas Brink é esperto o suficiente para perceber que, nesse caso, "são as nossas crenças sobre a natureza da moralidade que fornecem indícios sobre a vontade de Deus", e não o contrário. Embora seja lamentável que ele tenha apresentado apenas essa possível solução ao problema, quando há outras muito melhores à disposição, o fato é que ele tem toda a razão nessa crítica. Esse tipo de solução, tão presente nas teologias liberais e neo-ortodoxas, resulta no vão esforço de enquadrar a verdade bíblica em critérios modernos ou pós-modernos e, dessa forma, fazer concessões a uma cultura tão depravada e carente de redenção quanto qualquer outra que já tenha existido. Uma visão consistente da soberania de Deus sobre a esfera moral não admite julgamentos morais autônomos quanto à veracidade ou pertinência da revelação. Meia autonomia da ética não é preferível a uma inteira.

31 de agosto de 2013

Deveres sem pessoas - parte 11

Estou há meses escrevendo e publicando aos poucos um comentário ao artigo A autonomia da ética, do filósofo ateu americano Dr. David Owen Brink. Na última postagem, ainda tratando da seção Variedades de naturalismo, fiz algumas considerações de ordem epistemológica. A seção seguinte, Indício moral e vontade divina, tem apenas cinco parágrafos, [9.3-10.2], e trata justamente do papel epistemológico de Deus na moralidade. Sua questão central fica clara já no parágrafo inicial:

"Mesmo que Deus não faça algo ser moralmente bom ou mau, poderá mesmo assim ser um indicador de confiança do que o é, fornecendo-nos indícios sobre os nossos deveres morais. Na verdade, se Deus existe e é moralmente perfeito e omnisciente, então a sua vontade tem de ser um indicador perfeito do que é (independentemente) valioso. Não daria isto à religião um papel epistemológico significativo na moralidade?"

Como era de se esperar, Brink responde negativamente. Passo agora a analisar os argumentos apresentados nessa seção, começando na presente postagem e terminando na próxima. Naturalmente, tal discussão pressupõe o que o autor julga já ter demonstrado nas seções anteriores. Da mesma forma, minha réplica pressupõe a validade das críticas que já fiz nas dez postagens precedentes, de modo que o que se segue pode ser melhor compreendido à luz do que foi dito. É o caso, por exemplo, do primeiro argumento levantado por Brink, em [9.4]:

"Mesmo que Deus fornecesse uma fonte de indícios sobre as exigências da moralidade, não teria de ser a única ou a mais importante. Afinal, se o naturalismo for verdadeiro, as exigências da moralidade têm uma fonte metafísica que não a vontade de Deus. As exigências morais serão presumivelmente uma questão de promover a justiça, os direitos e a felicidade. Temos a possibilidade de raciocinar directamente sobre estas questões morais, entregando-nos ao raciocínio moral secular, em vez de o fazermos obliquamente através da consulta {a} um barómetro divino destas matérias."

Como se vê, o argumento depende, de modo explícito e consciente, da premissa de que Deus não tem um papel metafísico na moral. O autor defendeu essa tese na seção Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron. Dessa forma, levando em conta sua confiança em métodos secularistas de pesquisa moral, como os apresentados na seção Variedades de naturalismo, é natural que o Dr. Brink veja Deus como um mediador dispensável. Contudo, dediquei cinco posts (partes 3, 4, 5, 6 e 7) à refutação dos argumentos de Brink contra o papel metafísico de Deus na moralidade, e três (partes 8, 9 e 10) à crítica de seus métodos seculares. Brink se engana ao supor que há uma lei moral à parte do caráter de Deus; consequentemente, ainda que ele não saiba disso, seus métodos nada mais são que tentativas de entender o caráter de Deus desconsiderando o próprio Deus, o que não tem sentido. Isso se nota especialmente em algo que já denunciei na última postagem, mas que convém trazer à tona novamente: ao "presumir" que as "exigências morais serão [...] uma questão de promover a justiça, os direitos e a felicidade", Brink ignora solenemente a justiça, os direitos e a felicidade do próprio Deus, como se não tivéssemos deveres em relação a ele.

Segue na mesma direção o segundo argumento, apresentado em [9.5]:

"Os ateístas pensarão que estes indícios directos e seculares {são} tudo o que há. Mas mesmo os teístas devem reconhecer a existência destes indícios directos e preferi-los no caso de os indícios indirectos sobre a vontade de Deus {serem} suficientemente difíceis de obter."

O terceiro argumento, que busca demonstrar essa dificuldade, será apresentado em seguida e constitui, na verdade, a parte mais interessante da seção. Mas, antes de passar a isso, quero apenas relembrar que, como venho dizendo desde a segunda parte, o autor não tem a menor ideia de qual é o fundamento metafísico da moralidade. Sendo assim, que garantia ele pode nos dar de que a opinião de Deus é um indício menos direto que a razão humana, ou que qualquer outra faculdade humana? Essa afirmação é dogmática e gratuita, dados seus pressupostos. O ateu tem todo o direito de discordar de Brink nesse ponto e concluir que, dada a falta de fundamentação racional dessa proposta, devemos considerar que as verdades morais inexistem ou que não temos acesso a elas, de modo que cada um faz bem em perseguir seus interesses sem preocupações dessa ordem. Como já observei antes, as premissas de Brink não lhe permitem sustentar a objetividade da ética de modo consistente.

Além disso, como já observei na oitava parte, Brink é bastante ignorante em matéria de teologia, e as consequências disso se manifestam também aqui. Mostrei no último post que suas metodologias de pesquisa no terreno da moral não têm valor racional; na verdade, nem chegam a constituir autênticas metodologias, e isso justamente porque não dispõem de um absoluto definido que lhes sirva de fundamento. Tal condição é inerente ao ateísmo. Se há, pois, algum método capaz de atender aos anseios de Brink, só pode ser um método baseado em pressupostos teístas, ainda que não seja explicitamente teológico. Em outras palavras, mesmo que o objeto de estudo não seja o conteúdo moral da revelação especial (isto é, a Bíblia), o método não poderá deixar de entender as verdades morais investigadas como parte da revelação geral. Mas Brink ignora, ao menos nesse artigo, o conceito revelação geral, e é aqui (digo, também aqui) que reside sua ignorância teológica. Se fosse mais instruído no assunto, ele saberia que, no contexto da cosmovisão cristã, simplesmente não faz sentido falar em indícios morais que não decorram de revelação divina, ainda que tais indícios, por hipótese, não estejam presentes na Bíblia e possam ser encontrados em outras fontes, pois estas também foram criadas por Deus e o revelam de alguma maneira.

Dito isso, podemos passar ao parágrafo seguinte, cujo propósito é mostrar que não há uma revelação confiável da vontade de Deus sobre assuntos morais, isto é, que não dispomos de meios racionalmente seguros para conhecer essa vontade. São levantados dois argumentos, sendo que o segundo se divide em três partes, e essa terceira parte pode ser subdividida em duas. Várias dessas questões poderiam ser (e de fato foram) tratadas amplamente em livros de teologia e apologética. Aqui não posso ter a pretensão de abordar os temas de modo profundo. E tampouco considero isso necessário, pois o Dr. Brink os levantou de modo extremamente superficial e desajeitado, sem qualquer intenção de problematizá-los de fato. Proporcionalmente, minhas respostas serão até profundas demais.

O primeiro argumento do parágrafo [10.1] diz que "há múltiplas tradições e escrituras. Na medida em que afirmam coisas opostas sobre a vontade de Deus, não podem ser todas verdadeiras. Mas é difícil saber como determinar quais das tradições e escrituras são mais fiáveis." Observo, de passagem, que a afirmação central já depende de uma certa concepção de Deus. Eu endosso essa concepção, mas o fato de o Dr. Brink apresentá-la como a coisa mais óbvia do mundo é um sinal claro da estreiteza de seu campo de referências - ou, dizendo em português mais claro, de sua ignorância sobre o tema das religiões em geral, muitas das quais não endossariam essa premissa, que considerariam racionalista demais.

Mais interessante para a presente discussão, porém, é o fato de que também há múltiplos sistemas seculares sobre o conteúdo da lei moral e seus fundamentos, mas nem por isso o Dr. Brink se exime da árdua tarefa de se lançar ao assunto e estudar profunda e incansavelmente a fim de identificar os méritos e deméritos de cada uma. Uma pequena amostra de suas reflexões desse teor foi apresentada na seção Variedades de naturalismo, nesse mesmo artigo. Nem parece o mesmo homem que agora reclama preguiçosamente que determinar "quais das tradições e escrituras são mais fiáveis" é muito difícil, a tal ponto que ele não pretende sequer dar início à investigação do tema. O contraste entre as duas atitudes é notório, especialmente porque não há nada no artigo que o justifique.

O segundo argumento se concentra nas "questões em aberto" existentes até em "uma só tradição religiosa". Como já mencionei, esse argumento se divide em três partes. A primeira é que, "Sobre alguns tópicos morais possíveis, a tradição e a escritura podem fazer silêncio". Porém, uma vez mais, o mesmo pode ser dito de qualquer sistema moral. Jean-Paul Sartre, por exemplo, levantou em O existencialismo é um humanismo uma questão moral para a qual não há solução óbvia no sistema kantiano. No entanto, isso não impediu o Dr. Brink de tratar a moral kantiana com muita seriedade no artigo em questão. Ele certamente não acha improvável que, embora Kant não tenha lidado com a referida questão em seus escritos, uma compreensão aprofundada dos princípios subjacentes ao sistema kantiano traga uma solução para o problema. Eu também não duvido que o caso seja justamente esse. Como especialista em jurisprudência, o Dr. Brink sabe que nem tudo está escrito na Constituição, mas que nem por isso as decisões em casos singularmente complicados são necessariamente arbitrárias ou desvinculadas dos princípios constitucionais. Por que isso seria diferente em se tratando de códigos morais fundados em tradições religiosas? E, uma vez mais, o que justifica tamanha preguiça da parte de Brink? Até onde posso ver, nada. E tampouco se justifica que essa preguiça seletiva seja apresentada como argumento tão fulminante que duas linhas bastam para evidenciar sua validade.

A segunda parte do segundo argumento consiste na afirmação de que "a tradição e a escritura podem falar [...] de maneiras opostas". A nota 15 cita como único exemplo a contradição bíblica da "doutrina do 'olho por olho' [...] com a doutrina do 'oferecer a outra face'". Sem dúvida isso é melhor que não citar exemplo algum, como no caso que acabo de discutir. Porém, considero relevante o fato de que esse exemplo, justamente por ser clássico, é discutido até nos mais vagabundos manuais de apologética e comentários exegéticos das passagens bíblicas citadas. Isso para não mencionar as obras que tratam teologicamente do tema em um nível bem mais profundo. O fato de o Dr. Brink desconhecer dois milênios de reflexão cristã sobre o tema e apresentar a suposta contradição como a coisa mais óbvia e indiscutível do mundo é nada menos que decepcionante, menos pela ignorância em si que por seu caráter inconsciente, ingenuamente autoconfiante e, em decorrência disso, presunçoso. Brink poderia pelo menos ter refletido um pouco sobre o contraste entre as duas passagens à luz das diferenças entre os deveres da pessoa humana e os da autoridade constituída.

A terceira parte do argumento, com suas duas subdivisões, será avaliada no próximo post.

24 de julho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 10

Na penúltima postagem da presente série fiz uma descrição da metodologia secularista de investigação da moral que David O. Brink propõe na seção Variedades de naturalismo de seu artigo A autonomia da ética. E na última, indo do geral para o específico, descrevi e critiquei separadamente as três abordagens seculares que o autor apresenta ali. É importante não ser injusto com o Dr. Brink. Depois de expor as três alternativas, ele deixa claro em [9.2] que "O nosso compromisso com a autonomia da ética exige apenas que algumas delas pareçam intelectualmente promissoras". Ele tem razão. Pode-se optar por apenas uma das três, ou mesmo por alguma outra versão não citada do naturalismo ético. Contudo, é razoável supor que, se Brink citou especificamente essas três, deve ser porque as considera mais promissoras que outras possíveis candidatas. E o que tentei fazer na postagem anterior foi justamente mostrar que nenhuma delas é de fato promissora. Lembremos que a pergunta fundamental da seção, enunciada em [6.2], é: "Mas em que consistem as exigências ou qualidades morais se não consistem na atitude ou vontade de Deus?" Guiado por essa questão, em [6.3] ele afirmou: "É relevante para a nossa investigação sobre se a moralidade exige uma fundação religiosa na medida em que a plausibilidade da autonomia da ética depende de haver algumas explicações promissoras do que são as exigências e distinções morais." Nesse caso, formalmente falando, todo o seu esforço é nada mais que um reductio ad absurdum, ou seja, seu fracasso leva necessariamente à conclusão oposta da que pretendia provar.

Dito isso, encerrarei meus comentários a essa seção voltando do específico para o geral, a começar por duas breves observações sobre os esforços de Brink e suas consequências. Ambas são aplicações diretas de ideias levantadas e discutidas por dois pensadores cristãos do século XX.

O primeiro é Francis Schaeffer. No livreto A igreja do final do século XX há um trecho curioso em que ele enuncia as "únicas três possibilidades" de uma moral social sem Deus. A pergunta que Schaeffer busca responder é basicamente a mesma que Brink enuncia nesta seção, mas com foco sociológico e político em vez de epistemológico. A primeira das três opções é o que ele chama de "hedonismo": a consciência individual é absoluta, e toda coerção social ou política é moralmente errada. A máxima "é proibido proibir" resume bem essa opção, inclusive em sua autocontradição flagrante. A segunda é a "ditadura dos 51 por cento", pela qual a verdade moral é a convenção apoiada pela maioria, à qual os restantes têm o dever de se sujeitar. A única imoralidade seria, então, fazer algo que a maioria não deseja que seja feito. E a terceira opção é o "totalitarismo", pelo qual decidirá o certo e o errado quem tiver poder político para impor sua vontade; ser imoral, nesse caso, é sinônimo de contrariar quem porventura estiver no poder. Essas são as únicas opções humanistas possíveis; são mutuamente incompatíveis, de modo que mesmo uma tentativa de combinar duas delas, ou as três, terá de hierarquizá-las e escolher uma delas como fundamental. Mas a moralidade, como já defendi na quinta parte, é necessariamente pessoal. Uma vez que Deus tenha sido retirado da conversa, o único legislador possível é o próprio homem, seja o indivíduo ou a coletividade, exercendo sua função diretamente ou por delegação. As opções epistemológicas aventadas por Brink (vantagem mútua, imparcialidade e responsabilidade) são todas abstratas o bastante para serem incapazes de escapar a esse "trilema" no plano prático - assim como no teórico, como já mostrei. É necessária uma teoria moral que torna imorais simultaneamente o egoísmo individual, a opressão das minorias e a dos que não têm poder político. Nenhuma das três abordagens de Brink oferece isso.

O segundo intelectual cristão é o já citado C. S. Lewis. Em Cristianismo puro e simples há um capítulo chamado As três partes da moralidade (esta discussão está cheia de tríades!) em que ele ilustra nossa relação com a moral mediante uma analogia com uma frota de embarcações. As três dimensões da moral seriam análogas, respectivamente, ao bom funcionamento interno de cada embarcação, à manutenção de sua trajetória em relação ao restante da frota e à execução do percurso correto rumo ao destino. Assim, a moral tem uma dimensão individual, uma social e uma teleológica (e, por implicação, teológica). Em outras palavras, ela depende de como lidamos com nós mesmos, com os outros seres humanos e com Deus. Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o fato de que só a segunda dessas três categorias de relações é abarcada pelo conjunto das elucubrações éticas do Dr. Brink. Isso sem dúvida é psicologicamente compreensível, mas não se justifica filosoficamente. O silêncio sobre as outras duas partes da moralidade apenas pressupõe dogmaticamente que não temos nenhum dever moral que não seja em relação a outros seres humanos; em particular, que Deus não tem o direito ou o interesse de exigir nada de suas criaturas morais. Em matéria de direitos, portanto, o Deus do Dr. Brink não está sequer em pé de igualdade com suas criaturas; está abaixo delas. Repito que isso é psicologicamente compreensível, e espiritualmente mais ainda. Mas essa característica onipresente na argumentação de Brink refuta, uma vez mais, sua pretensão de estar estabelecendo uma ética mais compatível com o "teísmo". Não obstante, insisto que o Dr. Brink não estava sendo desonesto quando declarou, em [5.3], que sua autonomia da ética é compatível com o teísmo; ele "apenas" não sabia do que estava falando.

Os problemas, porém, ainda não acabaram. Terminei a oitava parte dizendo que, para Brink, "O 'ajuste dialético', ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da 'teoria moral secular'." Mas há vários problemas com esse critério final. O maior deles é o fato de não ser um critério final. Nada impede, por exemplo, que existam vários esquemas internamente coerentes e compatíveis com as intuições morais usadas como ponto de partida e que, no entanto, sejam incompatíveis entre si. Havendo tal coisa, o critério de Brink não ajudará a descobrir qual desses esquemas é o verdadeiro.

Da mesma forma, nada em sua argumentação garante que as próprias intuições das quais se parte são corretas, nem que são as únicas relevantes. Consequentemente, a proposta de Brink não diz (e não pode dizer) como se resolverão eventuais desacordos nesse campo. Brink está dizendo apenas que tudo será resolvido por meio da argumentação; mas isso está longe de ser uma metodologia. Ele não chega sequer a propor como ponto de partida o exame das convicções morais comuns a todas as culturas humanas, como fez Lewis. Nenhum método de tratamento de questões antropológicas relevantes, do tipo que ele exaltou em [4.4] ao falar em "propriedades naturais", aparece neste ponto. Na verdade, não há aqui sequer a consciência mais genérica de que a ética e a epistemologia não podem se sustentar à parte da ontologia.

Em resumo, o método consiste em algo assim: pensemos e argumentemos para ver aonde conseguimos chegar. Ora, isso não é um método, e sim a própria definição de falta de método. O autor não tem critérios concretos para determinar o ponto de partida, nem o caminho a ser percorrido. Só lhe resta fazer o papel do Deus que nega, estabelecendo dogmaticamente como premissas fundamentais os princípios preferidos por ele, por sua cultura ou por qualquer outro grupo com o qual ele porventura se identifique. No fim das contas, resta apenas uma grande confusão e arbitrariedade. Esse é o abismo inescapável em que caiu a intelectualidade moderna. E é desse abismo que brotou o relativismo moral que, abolindo toda autoridade moral objetiva, permitiu a politização de toda a realidade e a transformação de todos os desacordos em simples lutas pelo poder. Brink, naturalmente, não apóia isso, mas apenas porque é um homem à moda antiga (isto é, um iluminista tardio, um moderno inconformado com a pós-modernidade), incapaz de levar a sério a ideia de uma moralidade inventada pelo homem. Contudo, ele não tem um método que lhe permita evitar o abismo.

Esse fim lamentável ocorre a despeito do bom começo a que aludi na penúltima postagem, quando o Dr. Brink sensatamente criticou o racionalismo de caráter puramente dedutivo de algumas abordagens. Pretendo agora fazer algumas considerações sobre o que o Dr. Brink disse até aqui, relacionando-o com o cristianismo. Faço isso com dois objetivos: o primeiro, mais apologético, é explicar por que a visão cristã da objetividade moral não escoa pelo mesmo ralo que tragou o esforço do Dr. Brink; o outro é mostrar o que os cristãos devem aprender com o que esse mesmo esforço produziu de verdadeiro.

Afirmei na oitava parte desta série que a abordagem não-racionalista, adotada em [7.3] e ausente em vários outros pontos do artigo, é compatível com a visão bíblica da ética. Eu disse isso porque a Bíblia não nos apresenta o aspecto moral da criação (ou do Criador) como um conjunto de afirmações, regras e princípios morais a serem descobertos primariamente pela via da razão analítica, deduzindo casos particulares a partir de um princípio abstrato último e auto-evidente. Isso talvez até possa ser feito, mas apenas a posteriori e, acredito, de modo incontornavelmente imperfeito. Deus não concedeu autonomia ou auto-evidência a princípio algum; o fundamento último da moral é Ele próprio, e ninguém menos. Por conseguinte, o esforço de descobrir a verdade moral se assemelha muito menos a uma investigação filosófica que ao processo de conhecer o caráter de uma outra pessoa. Dentro da perspectiva cristã, a abordagem de Brink faz todo o sentido: visto que a fonte da moralidade não é um princípio, e sim uma pessoa, nenhuma proposição moral, seja qual for seu lugar na hierarquia dos valores, tem primazia na "justificação das nossas crenças morais". Esse fato permite evitar absolutizações indevidas levadas a efeito por quaisquer indivíduos, culturas ou subculturas, ao mesmo tempo em que permite a salvaguarda da objetividade, na medida em que o caráter do qual ela depende é o da Personalidade Absoluta, como diria John Frame.

Naturalmente, o que acabo de afirmar indica o caminho para a solução do problema, mas ainda não o resolve. É certo que, se estamos falando de conhecer o caráter do Deus que serve como padrão para todo juízo moral, a revelação que Deus faz de seu caráter nas Escrituras - e na criação em geral, devidamente interpretada pelas lentes das Escrituras - deverá ser a autoridade final. Mas como faremos para identificar a correta interpretação das Escrituras? Afinal, todos sabemos que os cristãos discordam entre si quase tanto quanto quaisquer outros correligionários. Nesse ponto, a discussão quase sempre se volta para o estabelecimento dos princípios corretos de exegese bíblica e suas aplicações. Mas pretendo enfatizar aqui um aspecto mais fundamental, embora muitas vezes ignorado, seja por negligência, seja apenas por jamais vir à consciência.

É lugar-comum dizer que os pressupostos pré-exegéticos influenciam nossa compreensão do texto, seja este bíblico ou não. Mas o que isso significa? Creio que, antes de qualquer outra coisa, significa o seguinte: sejam quais forem as questões hermenêuticas, linguísticas, culturais e existenciais que possam influenciar a compreensão do sentido do texto bíblico, o fato é que, em última análise, todo desacordo entre dois cristãos sobre as implicações morais de um texto decorre de diferentes compreensões sobre o caráter de Deus. Afinal, dizer que uma pessoa aprova ou não determinada conduta é dizer algo sobre quem essa pessoa é. Se erramos em nossa compreensão do que Deus deseja, ou se sua vontade nos parece obscura em certos pontos, é porque, em última análise, não o conhecemos devidamente. E aqui me refiro ao conhecimento mais pessoal possível.

Também nesse sentido o cristão pode e deve concordar com Brink sobre a extensão de nossa falibilidade. A diferença é que não só temos um texto inspirado com autoridade divina, nem só isso e um método exegético, mas temos também a habitação do Espírito Santo em nossos corações, abrindo nossa mente para o entendimento das Escrituras. Não estou dizendo, é claro, que essa presença torna nossos juízos infalíveis. O que estou tentando mostrar é a qualidade distintiva da epistemologia cristã: a obra do Espírito Santo faz com que o método epistemológico moral do cristão seja algo mais que a combinação do raciocínio analítico abstrato com um conjunto de premissas exegeticamente extraídas de um texto inspirado. Representamos mal o cristianismo quando descrevemos a epistemologia cristã nesses termos. Além da revelação verbal nas Escrituras e da capacidade de pensar, dispomos também de uma relação pessoal direta pela qual aprendemos a conhecer a Pessoa que escreveu o Livro e nos ensinou a pensar. Conhecemos a moral objetiva conhecendo a vontade de Deus, e conhecemos a vontade de Deus conhecendo pessoalmente o Dono dessa vontade. Decorre daí a importância epistemológica da oração. "Se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente". A única solução possível para os conflitos de interpretação moral dentro do cristianismo consiste, em última análise, em conhecer melhor o caráter de Deus. Sem dúvida isso não satisfaz os critérios da filosofia analítica, na medida em que nenhuma relação pessoal admite tal redução. Mas o cristianismo pode renunciar à filosofia analítica no nível último - ou, melhor dizendo, recusar-se a absolutizá-la - justamente porque oferece a vida de comunhão pessoal com Deus. Brink não tem isso a oferecer, e por isso seu fracasso na via analítica resulta em um fracasso total.

Encerro aqui meus comentários sobre a seção Variedades de naturalismo. Mas estas últimas considerações já começam a entrar no tema da próxima seção do artigo, em que Brink fala do papel epistemológico de Deus na moralidade. Entrarei esse assunto a partir do próximo post.

12 de julho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 9

Dei início na última postagem à análise da seção Variedades de naturalismo do artigo A autonomia da ética, na qual o Dr. David Owen Brink busca um método de investigação secularista da moralidade. Terminei mostrando que "O 'ajuste dialético', ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da 'teoria moral secular'", e prometi que faria uma crítica dessa perspectiva. Contudo, creio que será mais proveitoso abordar primeiro as três abordagens seculares e naturalistas da moral que Brink expõe em [8.2], [8.3] e [9.1]. Elas se baseiam, respectivamente, nos princípios da vantagem mútua, da imparcialidade e da responsabilidade. Passo agora a fazer uma breve exposição e crítica de cada uma. Na próxima postagem farei o movimento inverso, passando dos problemas específicos de cada abordagem às dificuldades onipresentes nesta seção.

A primeira abordagem diz que "podemos identificar as exigências da moralidade com as normas do comportamento social cuja observância geral é mutuamente benéfica", e isso "explica o nosso interesse em sermos morais e o interesse da comunidade em instilar um sentido ou consciência moral nos seus membros". Não discorrerei muito sobre essa vertente porque o próprio Brink parece não gostar muito dela, uma vez que levanta uma objeção em [8.3]: "esta abordagem parece limitar o cuidado moral relativamente àqueles com quem se interage regularmente. [...] O âmbito lato da moralidade pode ser visto como algo que reflecte uma perspectiva que procura transcender os interesses e lealdades pessoais do agente." Em outras palavras, essa abordagem não explica por que devemos agir de modo benéfico à sociedade naquelas situações em que sabemos que não haverá sanção social por agirmos de modo diferente.

Eu acrescento que essa abordagem também não conta com o risco de a própria sociedade julgar mal o que é bom para si e, dessa forma, punir pessoas que lhe fazem bem e recompensar as que lhe fazem mal. Os exemplos históricos disso são tantos que não vou citar nenhum. Basta dizer que muitos grupos humanos, de cristãos a ateus, de conservadores a comunistas, acreditam que isso acontece o tempo todo. Sendo assim, é justo perguntar: o indivíduo ou grupo mais lúcido seria imoral se fizesse o que vê como melhor para a sociedade, e não o que a própria sociedade considera bom? A fundamentação da moral no princípio da vantagem mútua é profundamente falha porque não leva em conta o fundamento ontológico (as "propriedades naturais das situações") à luz do qual as escolhas morais podem ser justificadas. Um código moral sem ontologia não presta para nada. A abordagem moral baseada na vantagem mútua é problemática porque é simplista, abstrata e reducionista. Ela não fornece uma resposta para os dilemas concretos e pungentes da vida.

A segunda abordagem, baseada no princípio da imparcialidade, admite duas concepções diferentes sobre o que seu princípio significa. A primeira, que Brink chama de "agregativa", "exige que um agente tome igualmente em consideração os interesses das partes afectadas, equilibrando os benefícios de alguns com os prejuízos de outros, consoante for necessário, de modo a determinar o resultado melhor para todos", e assim "identifica o nosso dever com a promoção da felicidade humana ou com outras consequências boas". Brink também parece não gostar muito dessa opção, que "permite que os interesses de muitos tenham mais peso do que os de poucos", o que evidentemente poderia justificar uma ampla variedade de injustiças manifestas contra minorias e pessoas que se encontram em situações excepcionais; esse é, aliás, um risco inerente a qualquer coletivismo. A outra interpretação possível do princípio da imparcialidade, que Brink chama de "contratualista", "rejeita este tipo de equilíbrio interpessoal e insiste que ajamos apenas com base em princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar".

A objeção mais óbvia (e clássica) a essa abordagem é que o valor moral da imparcialidade é apenas pressuposto como auto-evidente. A vertente agregativa esbarra no problema que C. S. Lewis percebeu em Cristianismo puro e simples: "Se pergunto: 'Por que não devo ser egoísta?' e você responde: 'Porque isso é bom para a sociedade', posso então perguntar: 'Por que devo me preocupar com o que é bom para a sociedade a não ser quando isso for benéfico para mim?', e então você terá de responder: 'Porque você não deve ter egoísta', o que simplesmente nos traz de volta ao ponto de partida". E a vertente contratualista se choca contra o problema que John Frame levantou em Apologética para a glória de Deus: por que nossa razão deveria nos impor algum dever moral de coerência com o que ela percebe como verdadeiro? Em outras palavras, onde está o fundamento da normatividade ética da verdade cognitiva? Já defendi na quinta parte que "não há deveres à parte de relações pessoais"; segue-se daí que a verdade só tem implicações morais porque diz respeito ao nosso compromisso ético fundamental com alguém. Quando Brink fala em "princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar", o "razoavelmente" é cognitivo, mas o "possa" é também moral. Nada em sua filosofia materialista justifica esse salto. No cristianismo, por outro lado, não há salto algum: temos um dever moral para com a verdade porque a apreensão das leis de Deus é um dos propósitos para os quais ele nos deu inteligência; porque Cristo é a verdade (João 14.6); porque Deus é a Personalidade Absoluta, e tudo o que somos e fazemos é expressão de nossa reação ao Pacto.

Há mais, porém. De modos diferentes, essas duas vertentes encarnam o mesmo problema fundamental: no primeiro caso, é necessária uma decisão dogmática sobre quais são as "consequências boas" que cada ser humano deve promover; no segundo, sobre quais são os princípios que, de tão razoáveis, ninguém tem o direito de rejeitar. "Felicidade humana" e "razoabilidade" certamente são expressões às quais bem poucos se oporão, mas sobre cujo conteúdo é impossível atingir um consenso, dada a ampla diversidade possível de posições culturais, religiosas, políticas, filosóficas e outras que influenciam o que cada pessoa entende por essas lindas palavras. Como tenho dito várias vezes ao longo desta série, juízos morais têm sempre uma base metafísica e epistemológica que a abordagem "imparcialista" faz questão de abstrair. Assim, em algum momento da discussão, o Dr. Brink, ou quem quer que o represente politicamente, teria de dizer, com base apenas em seus próprios dogmas: "Vejo com clareza que tais princípios trariam a felicidade humana ou outras consequências boas, e portanto todos devem obedecê-los, ainda que não concordem comigo"; ou então: "Tais princípios me parecem tão razoáveis que não concedo a ninguém o direito de questioná-los".

Em outras palavras, Brink não é capaz de estabelecer uma moral ateísta (ou compatível com o ateísmo) sem que ele mesmo ou alguma outra pessoa ocupe o papel de Deus - tanto do ponto de vista metafísico quanto do epistemológico, pois as duas coisas são indissociáveis. (E não adianta dizer que esse alguém é a humanidade em geral, pois o problema é justamente o fato de que alguém que não é a humanidade em geral terá de falar em nome dela.) A diferença é que Deus é infalível por definição; mas Brink quer conceder ao homem (melhor dizendo, a algum homem ou grupo seleto) direitos divinos ao mesmo tempo em que manifesta ter consciência da profunda falibilidade (cognitiva e moral) humana. A abordagem naturalista baseada na imparcialidade se fundamenta em uma simples abstração. Ela serve apenas para dar ao seu adepto a ilusão de que pode desprezar o "teísmo" de um modo simultaneamente inteligente e virtuoso por ser capaz de racionalizar dessa forma sua percepção da objetividade moral. E, na medida em que uma filosofia ética se torna abstrata, é também reducionista e impessoal. O efeito disso, no plano político, só pode ser o totalitarismo. Os filósofos pragmatistas que concluíram que o moralmente correto é o que o Estado determina como tal estavam apenas sendo coerentes com suas premissas.

A terceira abordagem que Brink apresenta é a kantiana, baseada na ideia de que "Ser um agente moral é ser responsável" e que os "requisitos morais" dependem "do que os agentes valorizam na medida em que são agentes racionais", isto é, "de características dos agentes morais enquanto tais". Dessa ênfase na racionalidade decorre o famoso imperativo categórico, pelo qual "devemos tratar todos os agentes racionais como fins em si e nunca meramente como meios". A filosofia moral de Kant é bem mais complexa, mas felizmente já escrevi um post inteiro sobre ela há alguns anos. Embora seja puramente descritiva, essa postagem antiga talvez ajude a compreender melhor minha insatisfação com essa filosofia, que tentarei explicar abaixo.

Kant era um racionalista - não no sentido estrito, mas no sentido amplo - e, de acordo com sua inclinação natural, quis construir uma filosofia moral baseada apenas no senso de dever (e, a se crer em Brink, na responsabilidade em um sentido causal). O resultado foi um "imperativo categórico" que nega relevância a tudo o que constitui uma pessoalidade autêntica: felicidade, amor e gratidão, por exemplo. Sua moral só leva em conta o dever e a razão. Ou, melhor dizendo, só leva em conta a razão, pois ela torna possível o dever, que é, no fundo, um dever para com a deusa Razão onde quer que ela se encarne - isto é, em outros seres racionais. Mesmo o brevíssimo resumo do Dr. Brink deixa isso claro.

Esse fato gera dois problemas básicos ao uso que Brink faz da moral kantiana. O primeiro é inerente à próprio kantismo, e decorre do fato de que da pura causação não se pode jamais deduzir uma responsabilidade no sentido moral; a filosofia de Kant não nos diz por que, afinal, devemos ser considerados responsáveis por nossas ações. Kant, como Brink, buscou fazer justiça à sua intuição da objetividade moral, mas não disse nada que convencesse alguém que não tivesse assentido de antemão aos pontos centrais de seu sistema filosófico particular. É claro que há nisso um elemento positivo: Kant sabia de algo que Brink quase sempre esquece, como já observei na segunda parte desta série: que não há objetividade moral possível sem um fundamento metafísico bem definido. Prova-o o próprio título da obra de Kant sobre o tema: "Fundamentação da metafísica dos costumes".

O segundo problema é que Kant jamais concordaria que a moralidade objetiva é compatível com o materialismo, e em parte suas razões para isso são boas; ele sabia que um fundamento transcendente era necessário, pois cria que o dever não é um conceito empírico, isto é, não se fundamenta no mundo fenomênico. A filosofia de Kant é humanista e secularista, sem dúvida, mas não é materialista. Porém, transcendência não basta, e Kant não entendia quão profundamente pessoal é a moralidade; ele não chegou nem perto de perceber que, como argumentei na quinta parte, uma moral objetiva só pode decorrer de uma Personalidade Absoluta. Decorre daí a aridez formalista de seu sistema, que contraditoriamente desconsidera inclusive as "propriedades naturais" das situações, como as que citei na sétima parte, e reduz os agentes morais a simples fagulhas da Razão.

Dessa forma, ao recorrer a Kant, Brink se coloca em uma dupla dificuldade: seu terceiro candidato, além de ser problemático por si mesmo, não é um aliado consistente do materialismo. Talvez seja por isso que Brink, ao descrever o pensamento de Kant, concentra-se nos pontos que não se chocam frontalmente com o materialismo. No entanto, a filosofia moral de Kant não pode ser coerentemente dissociada do restante de seu pensamento, que está pressuposto em sua elaboração da ética; tal mutilação seria fatal, inclusive, à sua utilidade como defesa da autonomia da ética.

29 de junho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 8

Na última postagem desta série encerrei uma parte importante de meus comentários ao artigo A autonomia da ética, do filósofo ateu americano David O. Brink: as considerações sobre a seção Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron, em que o autor ataca o "teísmo" enquanto base metafísica da objetividade moral. Vem em seguida a seção Variedades de naturalismo, [6.2-9.2], para a qual me volto agora. Para o autor, como já vimos, rejeitar Deus como base para a moral é sinônimo de abraçar o que ele chama de naturalismo ético. Segue-se, então, com naturalidade a pergunta que motiva toda essa seção, e que aparece já em [6.2]: "Mas em que consistem as exigências ou qualidades morais se não consistem na atitude ou vontade de Deus?" Essa parte do artigo é importantíssima por não ter propósito primariamente crítico; ou seja, nela o autor busca construir algo positivo, mostrando como, em sua opinião, é possível conhecer os valores morais e seus fundamentos prescindindo de Deus. Na verdade, como veremos, ele apresenta várias possibilidades naturalistas, e é daí que advém o título da seção.

Em vários sentidos, essa seção é decepcionante. Ainda na segunda parte, apontei que um dos problemas mais sérios do artigo é sua persistência em ignorar uma necessidade básica: a de dizer qual é, afinal, o fundamento metafísico da objetividade moral. Por isso, quando li em [6.2] a pergunta acima transcrita pensei: "Oba! Agora ele vai entrar no que realmente interessa." Mas nada parecido com isso aconteceu. Desse ponto de vista, o que se segue é deveras frustrante. Como em todas as páginas precedentes, aqui também o Dr. Brink pressupõe sem argumentação a necessidade de leis que estejam acima de Deus, silêncio de que já reclamei na quinta parte. Não percebe a natureza eminentemente pessoal e relacional (isto é, pactual) da moralidade, que defendi na mesma quinta parte. Dá claras mostras de que ignora o conteúdo da teologia cristã, fato de que reclamei na sétima parte. E continua na mesma ambivalência que sua definição de naturalismo produziu, como demonstrei também na sétima parte. Em suma, sou obrigado a manter todas as críticas que já lhe fiz, acrescidas de mais algumas, que aparecerão no devido tempo. Mas isso, do ponto de vista dialético, é nada menos que natural: o autor apenas pressupõe a solidez da parte do edifício que erigiu até aqui, e continua construindo em cima.

Por outro lado, há elementos nessa seção que são nada menos que preciosos. O que Brink está fazendo, em última análise, é explorar as possibilidades do naturalismo ético de um ponto de vista epistemológico. Em outras palavras, ele está tentando elaborar os princípios possíveis de uma autêntica ciência dos valores morais. Estou plenamente convencido de que o resultado de seu esforço foi nada menos que um fracasso total, e que isso se deu porque os pressupostos teológicos e filosóficos adotados por ele não permitem outro desfecho. Mas Brink fracassou fazendo bom uso de sua inteligência e de seus conhecimentos em sua área de especialidade, e assim me ensinou várias coisas interessantes. Além de fazer as perguntas certas, essa seção mostra que há, em um nível não-último, uma dose considerável de consistência e autoconsciência naquilo que o autor está empreendendo. Pretendo ressaltar alguns pontos positivos da abordagem de Brink na medida em que a comentar, mas mesmo assim creio que será impossível fazer-lhes plena justiça. Tudo o que posso fazer de antemão é dizer que há algumas percepções pontuais fantásticas ao longo de sua argumentação.

Em [6.4], Brink começa a colocar ordem na casa considerando que é "útil distinguir afirmações morais com diferentes níveis de abstracção e generalidade", e assim estabelece, em [7.1], três categorias de juízos morais, hierarquicamente estruturadas: "verdades morais particulares", "regras morais", mais abrangentes que as primeiras, e "princípios" que explicam "por que esse factor particular é moralmente relevante". Na verdade, Brink não chega a se posicionar sobre a existência ou não destes últimos, e tampouco sobre sua quantidade - isto é, não diz se haveria um único princípio por trás de todas as afirmações morais ou vários princípios irredutíveis. Considero essa percepção hierárquica dos juízos morais muito valiosa e plenamente compatível com a visão cristã da ética. Na verdade, encontrei-a pela primeira vez no livro Ética cristã: alternativas e questões contemporâneas, de Norman Geisler. O tratamento que Geisler dá ao tema me parece mais consistente e rigoroso. A divisão que Brink faz dos juízos morais em três níveis me parece um tanto arbitrária. Por que não quatro, cinco ou dez? Ainda mais grave é o fato de que a pluralidade e a inexistência de princípios, hipóteses não descartadas por Brink, expõem seu sistema ao risco de contradição interna. Se há vários princípios morais últimos, é preciso assegurar que nenhuma situação concreta da vida humana pode produzir conflito entre eles; se esse conflito ocorresse, a questão só poderia ser resolvida mediante o apelo a um princípio superior a ambos, ou à hierarquização dos dois, e em ambos os casos o resultado teria de ser a existência de um único princípio no topo da hierarquia. E, se não há princípios, o mesmo dilema se aplica às regras morais. Brink não parece se dar conta dessas dificuldades. Mas não creio que elas sejam o problema central da seção, de modo que me contento em mencionar minha insatisfação e passar adiante.

Em [7.2-3] o autor desenvolve um argumento que considero genial, e inteiramente compatível com a visão bíblica da moralidade. Ele diz que alguns, com base nessa visão hierárquica dos juízos morais, "Defendem que podemos justificar juízos particulares em termos de regras morais e que estas se podem justificar em termos de princípios morais fundamentais", os quais "têm de ser auto-evidentes", pois "nada mais há em termos do qual estes princípios se pudessem justificar", uma vez que, por definição, "estes primeiros princípios formulam factores morais últimos". Essa é uma visão bastante racionalista da epistemologia dos valores morais. O Dr. Brink objeta a ela nos seguintes termos:

"Podemos ter dúvidas quanto a juízos e regras morais particulares, mas certamente que há alguns juízos e regras morais particulares com respeito aos quais temos bastantes certezas, muitas mais do que com respeito a qualquer recôndito primeiro princípio. Por exemplo, tenho muito mais a certeza de que o Holocausto foi perverso ou que o genocídio é incorrecto do que tenho quanto à verdade do utilitarismo ou quanto ao imperativo categórico de Kant. Além disso, temos tendência para conseguir fornecer razões para aceitar ou rejeitar hipotéticos primeiros princípios."

Esse é um retrato bem mais realista dos modos pelos quais efetivamente apreendemos os valores morais, sem reduzi-los a esquemas sistemáticos abstratos. Não, é claro, que a abstração e a sistematização não tenham seu lugar apropriado; mas esse lugar vem depois, e não antes, da nossa interação direta e pessoal com o aspecto ético da realidade.

Argumentei na segunda parte desta série que Brink é mais sensato que a maioria dos ateus pelo fato de reconhecer a objetividade da ética; mas, por isso mesmo, sua visão é mais inconsistente com o ateísmo. De modo análogo, sua excelente percepção quanto à epistemologia da moral o coloca acima de quase todos os materialistas; mas, por isso mesmo, também o coloca em uma enrascada bem mais profunda. Isso pode ser visto com especial clareza em [7.5], parágrafo em que Brink esboça "uma metodologia para a teoria moral secular". Apesar do curto espaço, o tema é razoavelmente bem desenvolvido. Não obstante, citarei apenas um trecho, que me parece conter o espírito de toda a metodologia apresentada:

"Podemos tentar resolver a incerteza ou a discórdia a níveis mais particulares do pensamento moral tentando encontrar um terreno comum plausível a um nível mais geral. Mas podemos também tentar resolver a incerteza e a discórdia a um nível mais geral testando as implicações que um princípio moral potencial tem relativamente a casos particulares, comparando-as com a avaliação independente que fazemos desses casos. Assim, introduzimos um princípio moral para sistematizar as nossas convicções morais ponderadas, especialmente no que respeita a casos particulares e regras morais. Examinamos princípios possíveis, em parte, traçando as implicações que têm relativamente a casos reais ou imaginados, e comparando essas implicações com a nossa avaliação preexistente ou reflectida desses casos."

Em resumo, o autor está declarando o mesmo que afirmei acima ao dizer que nenhum juízo moral, qualquer que seja seu grau de abrangência, tem prioridade sobre os outros. Afirmações particulares podem ser usadas para contestar regras gerais, e vice-versa; ambas podem ser usadas para condenar candidatos a princípios universais, e estes também podem ser empregados para corrigir aquelas. Mesmo as intuições morais básicas não são infalíveis, como o autor deixa claro em [8.1]. Em virtude de sua profunda consciência (lamentavelmente ausente em certos pontos do artigo) da falibilidade epistêmica humana, Brink não é capaz de encontrar um ponto de partida seguro para construir seu sistema. Ele sabe disso, e sua melhor solução é a seguinte: "Idealmente, modificamos os nossos princípios, convicções morais ponderadas e outras perspectivas em resposta a conflitos, como a coerência parece exigir, até as nossas perspectivas éticas chegarem a um equilíbrio dialéctico". No parágrafo seguinte, Brink é ainda mais explícito: "A teoria moral secular deve começar com convicções morais ponderadas. Em muitos casos, apelar a estas intuições será adequado. [...] temos de tentar identificar princípios morais que forneçam um ajuste dialéctico adequado com essas convicções". O "ajuste dialético", ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da "teoria moral secular". Na próxima postagem levantarei algumas objeções a esse método.