13 de janeiro de 2013

Personalidade absoluta - parte 2

Dizia eu que a vida e os desígnios de uma pessoa transcendem o dualismo entre regularidade e não-regularidade. Mas o transcendem sem deixar de conter ambos os polos. O homem pode sair para o trabalho todos os dias no mesmo horário, cinco vezes por semana, onze meses por ano, sem que isso o transforme em um autômato. Sua vida pode conter muitas outras regularidades, como declarar seu amor à esposa todos os dias, almoçar na casa dos pais todo domingo, ler um trecho da Bíblia toda noite ou viajar para uma mesma região nas férias, ano após ano. A regularidade é perfeitamente normal em uma pessoa, conquanto haja casos extremos, como a proverbial pontualidade das caminhadas de Immanuel Kant. Algumas regularidades na vida de uma pessoa podem, inclusive, ser sutis o suficiente para passar de todo despercebidas por quem não a conheça muito bem.

No entanto, sempre há espaço para a quebra de todas as regularidades, exceções que podem ser ou não voluntárias. O homem que há vinte anos chega pontualmente às oito da manhã no trabalho pode não chegar hoje, porque marcou uma consulta ao dentista, ou porque um parente faleceu na madrugada precedente, ou porque sofreu um acidente no caminho, ou simplesmente porque tinha um saldo positivo no banco de horas e decidiu tirar uma folga para passear com a família. Ainda que um analista não encontre um padrão matemático (ou de qualquer outro tipo) nos eventuais atrasos desse homem, não estará, só por isso, autorizado a afirmar que eles são puramente casuais. A rede de relações e motivações é sutil e complexa demais para que alguém possa dar como sem propósito as ações de outra pessoa sem conhecê-la bem o suficiente.

Encerrei a primeira parte desta série com a constatação de que determinismo e acaso são categorias insuficientes para descrever ações e desígnios pessoais. Atividades pessoais podem parecer impessoais quando consideradas a uma distância grande o bastante. O "mal-entendido" só pode ser desfeito na medida em que a pessoa que produz as ações é conhecida. E, quando digo "conhecida", tenho em mente o sentido mais pessoal possível, o de uma relação interpessoal, e não de uma simples aquisição de informações sobre a pessoa em questão - muito embora essa última opção possa ser suficiente em alguns casos.

É nesse ponto que minhas considerações sobre a personalidade se relacionam com o ateísmo. A questão é que John Frame está coberto de razão quando insta o apologista a desafiar, de modo ostensivo e contundente, a convicção do incrédulo de que a realidade última é impessoal. Creio que muitos de nós estamos nos saindo mal nessa tarefa, e estou escrevendo esta breve reflexão para ver se esclareço, para mim mesmo em primeiro lugar, onde é possível melhorar. Estou convencido de que temos muito a aprender no sentido de extrair pleno proveito do papel da personalidade na apologética. O ponto fundamental a ser entendido e levado a sério é que o ateu deseja distanciar-se ao máximo de um encontro pessoal com Deus, e posiciona-se decididamente a uma distância "segura", a partir da qual pode olhar para o mundo criado e não ver por trás dele nenhum vestígio daquele ser pessoal terrivelmente perigoso que é o Criador. A função do apologeta (ou evangelista) cristão é levar o incrédulo a perceber isso e desafiá-lo a se aproximar dessa Pessoa para conhecê-la do modo apropriado, isto é, pessoalmente. Temos a nosso favor o fato de que o cristianismo é verdadeiro; daí decorre que o ateu não tem base real para justificar seu pressuposto de que está diante de uma realidade fundamentalmente impessoal. Mas é necessário conhecer e saber desmascarar os subterfúgios de que ele se utiliza para se convencer de sua ficção. É nesse sentido que passo a trabalhar a partir daqui.

O subterfúgio invariavelmente adotado é sugerido pela própria lógica interna do distanciamento pessoal: considerar como efeito de causas impessoais aquilo que resulta do desígnio de uma pessoa. Mas, dado que existem duas modalidades de fenômenos impessoais, o ateu será levado a alternar entre dois tipos de reducionismo, conforme o fato que lhe prenda a atenção no momento: se o fato em questão se lhe apresentar como regularidade, ele invocará o determinismo decorrente de uma lei impessoal; se for uma não-regularidade, recorrerá ao acaso. Como alternativa, ele poderá se reconhecer ignorante da verdadeira causa, mas, a despeito disso, ele incoerentemente alegará ter plena certeza de que essa causa não pode ser o Deus pessoal revelado nas Escrituras. Porém, essa não chega a ser de fato uma terceira opção, e sim apenas uma sobreposição das duas primeiras, de modo que não lhe darei mais atenção.

De um lado, o universo criado apresenta muitos fatos que podem, com maior ou menor dificuldade, ser descritos em termos de regularidades. É o caso, por exemplo, de muitos fenômenos da natureza, e também de não poucos fenômenos humanos. O ateu prontamente atribui tais fatos a leis impessoais e, com base nisso, nega a necessidade de um Criador pessoal para explicá-los. Ao fazer isso, ele implicitamente - e sem qualquer base racional para tanto - nega a Deus o direito de atuar como Legislador sobre sua criação.

Por exemplo, li na adolescência um livro de biologia que apresentava as homologias entre diferentes grupos taxonômicos como evidência de evolução, com base no argumento seguinte: se um Criador tivesse feito esses grupos separadamente, seria de se esperar que não houvesse entre eles nenhuma semelhança. É verdade que não poucos cientistas, criacionistas ou não, têm objetado desde sempre apontando para o fato óbvio de que até projetistas humanos muitas vezes fazem projetos diferentes que guardam, no entanto, certo grau de semelhança entre si. Mas o que considero mais importante, no presente contexto, é que o argumento do livro depende do pressuposto de que a personalidade não pode se manifestar de maneira regular. Chesterton contestou isso de modo belo e brilhante em Ortodoxia. Mas é suficiente, para nosso propósito imediato, relembrar algo que já afirmei: que as ações pessoais possuem tanto regularidades quanto não-regularidades. Ao criar uma divisão absoluta entre os dois aspectos e considerar só um deles como pessoal, o ateu evolucionista está indo contra toda evidência numa tentativa desesperada (e frustrada) de obscurecer a clareza da autorrevelação de Deus.

No entanto, esse mesmo ateu procederá de modo inverso ao se deparar com aqueles aspectos do mundo criado em que não pode ser discernida uma regularidade. Tais casos existem também na natureza, mas são especialmente evidentes e pungentes no caso da vida humana. Muitos acreditam, como os amigos de Jó, que a justiça de Deus deveria se manifestar como uma correlação bastante evidente entre o grau de virtude dos indivíduos humanos e o grau de felicidade ou prosperidade de que desfrutam na presente vida; que os bons deveriam ser privados dos sofrimentos intensos e das mortes tristes e dolorosas, ao passo que os perversos deveriam ser privados da vida tranquila e impune. Mas muitas vezes ocorre o contrário, como todos sabemos. E, quando um ônibus despenca ribanceira abaixo matando quarenta pessoas, certamente não podemos esperar que o único sobrevivente seja sempre, ou mesmo geralmente, o mais virtuoso dentre os passageiros. O ateu, então, triunfalmente aponta para essa falta de padrão como uma evidência clara contra a providência divina, e invoca o acaso como a verdadeira fonte daquilo que se observa. Ao fazer isso, ele inverte seu juízo anterior e passa a considerar que a personalidade se caracteriza pela regularidade, de modo que a falta desta indica a ausência daquela.

Essa flagrante contradição nos ensina várias lições importantes sobre a mentalidade ateísta. Antes de tudo, há por trás dela uma coerência profunda, que é a decisão de sempre interpretar a realidade de modo a eliminar dela, por uma via ou por outra, os vestígios de personalidade, em especial da "personalidade absoluta" cuja glória é proclamada pelos céus (Salmo 19.1). Essa rejeição da personalidade se impõe de modo irracional e arbitrário, a despeito de qualquer evidência, fundamentando-se, em última análise, no desejo de suprimir a consciência da ira de Deus contra o pecador, a qual também é revelada por aqueles mesmos céus (Romanos 1.18). E é aqui que é importante trazer aos olhos do ateu essa contradição e arbitrariedade, desafiando-o a sondar os motivos de sua escolha. Pois a grande questão é que ele raramente tem consciência de que fez uma escolha. Para ele, a impessoalidade última do real é um fato consumado, evidente, que nenhuma pessoa sensata poderia colocar em dúvida. Essa convicção está muito entranhada no pensamento materialista, e muitos até a associam a uma postura eminentemente "científica", "racional" ou "cética", sem perceber que é uma posição apriorística, irracional e dogmática.

O ateu mais comum, que é o tipo cientificista e pseudocético, demonstra isso em sua visão do que é realmente explicar algo. Por que ocorre tal ou qual fenômeno físico? Para o cristão, conquanto muitas causas secundárias possam ser apontadas, a resposta final está no decreto divino. Diante dessa resposta, contudo, o ateu franzirá a testa em sinal de desprezo e murmurará: "Ora, mas isso não é uma explicação!" Porém, se mostrarmos que tal efeito pode ser descrito por determinada equação, em harmonia com teorias físicas bem aceitas (que também são descritas por equações), então ele se dará por satisfeito. Porém, o cristão sabe que a equação tem, quando muito, um poder descritivo, não explanatório; ela jamais poderá nos dizer por que ela descreve bem alguma coisa no mundo físico. Também aqui convém desafiar frontalmente a ilusória pretensão materialista de que a personalidade pode ser dispensada sem maiores problemas.

3 comentários:

Luiz Renato disse...

Lendo seu texto, lembrei do que Stuart Olyott disse em certa pregação que ouvi em áudio: "se alguém te disser que não acredita em Deus, pergunte-lhe qual dos mandamentos ele não gosta".
Quanto ao ponto final do seu texto, creio ser complicado simplesmente explicar tudo com o decreto divino assim, "a rodo". Quando eu pergunto a alguém porque, por exemplo, plantas são verdes, a última resposta que eu quero ou preciso ouvir é "porque Deus quis". Não porque seja isso falso - é verdadeiro - mas porque isso não explica nada, porque sempre fica faltando responder porque Deus quis algo.
Nesse sentido, a explicação científica é melhor que a teológica. No mais, quando alguém pede explicação de algo, ele está mais preocupado, creio eu, com as causas materiais e formais e com as "causas segundas" do que com as eficientes e teleológicas e com as causas primeiras, que em geral são pressupostas.(espero estar usando corretamente os termos).
Enfim, quando explica algo com "porque Deus quis", independentemente da real verdade disso, ocorre duas coisas: ou a pessoa pressupõe isso e portanto já sabe disso, o que a torna desnecessária, ou a pessoa a nega de antemão, o que a torna inútil.
É verdade que evangelizar é, em parte, combater os pressupostos falsos, mas, aí, a explicação das coisas já está posta de lado.
Abraço.

André disse...

Caro Luiz, você deve ter percebido que a ênfase do texto todo está na importância da personalidade e em sua recusa por parte do ateu. Essa é a ênfase também do parágrafo final, como você pode ver na oração final: "Também aqui convém desafiar frontalmente a ilusória pretensão materialista de que a personalidade pode ser dispensada sem maiores problemas". Foi nesse contexto que inseri minhas observações sobre o conceito "científico" (entre aspas mesmo) do que é e do que não é uma explicação. E é nesse contexto que desejo que minhas palavras sejam entendidas. Não há em meu parágrafo nenhuma sugestão de que devemos responder "porque Deus quis" a todas as perguntas sobre o porquê de qualquer coisa. Naturalmente, isso depende do objetivo da pergunta, o que está claramente considerado nesta sentença: "Para o cristão, conquanto muitas causas secundárias possam ser apontadas, a resposta final está no decreto divino." Essa frase mostra também que eu tenho em mente explicações últimas, e não intermediárias, e o problema do ateísmo, que aponto em seguida, é o fato de tomar explicações intermediárias como últimas, removendo o aspecto pessoal da realidade última, idolatrando um intermediário e tornando-o vazio enquanto explicação. Essa ideia está contida em minha afirmação de que "o cristão sabe que a equação tem, quando muito, um poder descritivo, não explanatório; ela jamais poderá nos dizer por que ela descreve bem alguma coisa no mundo físico". Da mesma forma, não afirmei nem sugeri que a resposta "porque Deus quis" deve ser usada como argumento direto em conversas com ateus. Meu post se dirige a cristãos, e meu objetivo é fazer com que estes percebam as manifestações de rejeição da personalidade no pensamento e na linguagem do ateu cientificista. Sendo assim, não é necessário nem desejável que eu me expresse nesse texto como se estivesse me dirigindo aos próprios ateus.

Prosseguindo, convém dizer que não concordo que o decreto divino "não explica nada"; ele pode não ser uma resposta apropriada a determinadas perguntas, mas apenas porque o autor delas pretende receber uma resposta em um nível não-último, por assim dizer. Creio que você quis dizer apenas que essa resposta não elimina todas as dúvidas; mas, nesse caso, dizer que ela "não explica nada" vai muito além do que você pretendia expressar. Da mesma forma, concordo em parte quando você afirma que "Nesse sentido, a explicação científica é melhor que a teológica"; de fato é melhor, no sentido de que satisfaz a perguntas de ordem científica. Mas, como apontei de modo breve no parágrafo de que você não gostou, respostas científicas não fornecem explicações últimas sobre coisa alguma, nem sequer sobre si mesmas; e, em certo sentido, explicações não-últimas não são explicações. Esse sentido é o único com o qual eu estava lidando naquele parágrafo. Para mim, o decreto divino não só é uma explicação, embora você discorde, mas é também a única explicação última possível, a que fundamenta todas as demais explicações possíveis de tudo o que há no mundo criado. E, diferentemente de você, não considero que o decreto divino precisa ser explicado para ser uma explicação; se fosse o caso, estaríamos decaindo novamente de Personalidade Absoluta de Deus para explicações impessoais.

André disse...

Devo observar ainda que você se aproximou do problema de modo admirável ao dizer que "quando alguém pede explicação de algo, ele está mais preocupado, creio eu, com as causas materiais e formais e com as 'causas segundas' do que com as eficientes e teleológicas e com as causas primeiras, que em geral são pressupostas". Isso é verdade, mas é parte do problema: a ciência só pode lidar com causas segundas, mas a mente humana precisa de explicações primeiras. Então o ateu de mentalidade científica oscila entre duas atitudes incompatíveis, a de não se preocupar com a explicação última e a de absolutizar as não-últimas que possui (ou julga possuir). Ambas as atitudes são pecaminosas e devem ser confrontadas pelo cristão. Quando você diz que "as causas primeiras [...] são pressupostas", está se dirigindo à raiz do problema, pois o ateu de fato as pressupõe, mas de modo inteiramente errado, inclusive (mas não apenas) concebendo-as como princípios impessoais - equações, por exemplo. E é para isso mesmo que eu estava chamando a atenção no texto todo, em especial no último parágrafo: ateus e cristãos discordam sobre o que é e o que não é uma verdadeira explicação.

Infelizmente, você não parece ter apreendido devidamente a radicalidade dessa diferença. Quando você diz que, na evangelização, "a explicação das coisas já está posta de lado", está perdendo de vista o fato de que a epistemologia (incluindo o conceito de explicação satisfatória, especialmente no nível último) decorre dos pressupostos teológicos, e deve ser desafiada juntamente com todo o resto.

Abraços!