31 de março de 2013

Deveres sem pessoas - parte 1

Há algumas semanas, um amigo me recomendou a leitura de um artigo sobre cujo tema ele gostaria de conversar. O amigo a que me refiro é o Sérgio Santos, autor do blog O fogo dos deuses; conheci-o aqui em Natal, onde estou morando há seis meses. O autor do artigo é David O. Brink, professor de filosofia na University of California, San Diego. O que o Sérgio e o Dr. Brink têm em comum é que ambos são ateus profundamente interessados na questão dos fundamentos da moralidade.

O artigo se chama The Autonomy of Ethics [A autonomia da ética] e pode ser lido em inglês neste endereço; há também uma tradução para o português lusitano neste PDF. Esses links não dizem nada sobre a origem do texto, mas a página pessoal do autor informa que foi publicado em 2006 como parte do The Cambridge Companion to Atheism [algo como O companheiro Cambridge para o estudo do ateísmo]. Sua tese principal é bem resumida nas seguintes frases da conclusão - ou Comentários finais, como ele a chama:

"Apesar da crença comum de que a moralidade exige uma fundação religiosa, essa doutrina é difícil de sustentar. [...] É melhor abraçar a autonomia da ética. [...] Se aceitarmos a autonomia da ética, então o ateísmo não nos empurra para o niilismo nem para o relativismo morais. [...] Apesar de a autonomia da ética negar que as distinções morais dependem da vontade de Deus, não impede a religião de desempenhar outros papéis na moralidade. Mas é difícil articular papéis epistemológicos e motivacionais plausíveis que Deus possa desempenhar na moralidade. Vê-se bem como a moralidade ajuda a religião. É mais difícil ver como a religião ajuda a moralidade."

Na citação acima, cortei alguns trechos que só podem ser bem entendidos à luz do restante do artigo. Mas as sentenças transcritas dão uma boa ideia daquilo em que o autor acredita. Quem me conhece um pouquinho sabe que me oponho radicalmente à autonomia da ética, bem como a qualquer outra autonomia que o homem pretenda ter em relação a Deus. Não obstante, gostei muito de ler esse texto, e agradeço sinceramente ao Sérgio por ter me sugerido sua leitura.

Nesta série de postagens a que dou início hoje, e que não sei ainda que tamanho terá, farei comentários em torno do artigo. Muitos desses comentários serão críticos, mas não pretendo desperdiçar a oportunidade de fazer elogios sempre que me parecerem merecidos. Assim, a continuação do presente texto deverá deixar mais claras para o leitor as razões que me levaram a gostar do artigo de Brink. Mas posso antecipar que essa é a melhor tentativa que já vi de uma fundamentação ateísta da moralidade objetiva. O autor trata do assunto com clareza e, ao menos em certas partes, com rigor. Alguns conceitos interessantes ficaram mais claros para mim e, de modo geral, foi muito salutar esse contato com um filósofo contemporâneo influenciado por figuras como John Stuart Mill e John Rawls. Essa é uma vertente filosófica com a qual tenho poucas afinidades, mas da qual também tenho pouco conhecimento. Embora eu considere pobres algumas percepções do autor, sua posição como estudioso em nível acadêmico nas áreas de "teoria ética, história da ética, psicologia moral e jurisprudência" (essas informações também são de sua página pessoal) fazem dele alguém que sempre tem algo a ensinar a um amador como eu. Não é sem respeito, portanto, que me lanço à tarefa de criticá-lo.

Devo dizer, no entanto, que, pesando os prós e os contras, eu considero os méritos da tese do autor apenas parciais e pontuais, enquanto suas falhas são onipresentes e profundas. Na verdade, considero que grande parte dos esforços de Brink para levantar objeções ao fundamento "teísta" (explicarei as aspas depois) da moralidade e construir uma ética compatível com o ateísmo foi refutada com mais de meio século de antecedência pelo literato e filósofo irlandês C. S. Lewis (1898-1963), ateu convertido ao cristianismo, em seu livro Cristianismo puro e simples, que traz a melhor exposição do argumento moral que conheço - bem melhor, em minha opinião, que a apresentada por William Lane Craig no livro Em guarda, para citar um exemplo recente e bem conhecido. Na verdade, Lewis levanta e responde a várias objeções ao argumento moral que, ao que tudo indica, sequer passaram pela cabeça do Dr. Brink, ou pelo menos não foram consideradas relevantes por ele no contexto de seu artigo.

Porém, o livro de Lewis surgiu a partir de uma série de preleções pelo rádio proferidas, se bem me lembro, durante a Segunda Guerra Mundial. Isso o levou a se expressar ali de modo bastante popular, preocupando-se mais com o didatismo que com o máximo rigor filosófico possível - muito embora haja, em minha opinião, rigor considerável em sua argumentação. Em vista dessa circunstância, a pertinência dos argumentos de Lewis para a refutação de propostas como a de Brink pode não ser evidente a todos os seus leitores, sobretudo aos de índole mais racionalista. (Uma leitura especialmente incompetente, maliciosa, desonesta, e atrapalhada do argumento moral de Lewis pode ser vista neste texto de Dan Barker, um pastor que se "desconverteu" ao ateísmo.) Para ajudar na compreensão disso, tentarei chamar a atenção para as considerações de Lewis em alguns pontos, citando declarações relevantes do irlandês em momentos apropriados.

Por outro lado, apesar de toda a minha admiração por C. S. Lewis, por seu livro e por seu argumento moral, vários de meus leitores sabem que mantenho em relação a ele divergências consideráveis, que começam na teologia (eu sou calvinista, enquanto ele era um anglicano filocatólico) e daí se espraiam para a filosofia e a apologética. Ao ler alguns de meus últimos posts, o Leonardo, amigo bastante arguto que vem acompanhando meu blog já há algum tempo, notou como um fato positivo a influência da filosofia reformada sobre meus rumos apologéticos mais recentes, sobretudo do pressuposicionalismo vantiliano. Da mesma forma, creio que os leitores mais sensíveis e bem informados notarão aqui em vários momentos a influência de pensadores reformados como Herman Dooyeweerd, Cornelius Van Til, Francis Schaeffer e John Frame, e talvez até de Gordon Clark, ainda que eu talvez não os cite explicitamente com frequência. No meu entender, a despeito de suas qualidades, o argumento moral clássico padece de algumas limitações, e a apologética pressuposicional, sem desprezar por completo a anterior, traz uma abordagem com ênfases mais sadias e complementos pertinentes.

Mas voltemos ao artigo do Dr. Brink. Embora eu tenha mencionado por alto algumas de suas qualidades e defeitos, nada disso constitui razão suficiente para que eu o comente. Já li muitos textos com qualidades e defeitos semelhantes sobre outros assuntos, e nunca me animei a escrever a respeito. Portanto, creio que devo expor em poucas palavras minhas motivações para fazer o que faço agora. Em primeiro lugar, é claro, temos a questão do interesse dos leitores em cujo benefício escrevo: acredito que uma exposição ao assunto tratado no artigo será proveitosa para eles. Aliás, creio que todo cristão faria bem em adquirir uma maior sensibilidade às cosmovisões ateístas e demais formas de incredulidade. Também me anima bastante o fato de o artigo ter sido recomendado por alguém como o Sérgio, um sujeito por quem tenho afeição pessoal e com quem tenho também várias afinidades, e que, além disso, demonstra agudo interesse em questões morais e em compreender o cristianismo. Além disso, em conexão com o que expliquei no parágrafo anterior, um exame desse artigo me trará a oportunidade de definir e esclarecer, pela primeira vez, minha posição quanto a argumentos morais como o de C. S. Lewis de uma perspectiva pressuposicional.

Além de tudo isso, porém, há as características do próprio artigo. Uma de suas propriedades mais decisivas é o fato de defender posições das quais discordo (quase) inteiramente. Sou do tipo que tem muita dificuldade em comentar textos com os quais concorda. Mas há equívocos totais que são de todo desinteressantes. O artigo de Brink, porém, não é assim: ele tem o mérito raro da prodigalidade em levantar questões interessantes e pertinentes, e é justamente por isso que quase nunca alcança respostas que lhes façam justiça. Além disso, o artigo não é interessante apenas pelo que discute, mas também, e talvez ainda mais, pelo que ignora, e pela forma deveras didática com que o faz. Não posso ter a pretensão de comentar exaustivamente esse artigo; não disponho de tempo nem de conhecimento para tanto. Mas estou convencido de que tenho algumas coisas importantes a dizer sobre o conteúdo dos textos de Brink, e passarei a dizê-las a seguir.

Antes, contudo, devo pedir a licença do leitor para resolver um probleminha chato, mas bastante prático. Nas citações do artigo, como no começo da presente postagem, usarei a tradução portuguesa citada acima, inclusive com os lusitanismos, exceto nos momentos em que houver problemas na tradução, os quais indicarei explicitamente pelo uso das chaves {}. Mas, como ainda não sei se vou comentar os trechos relevantes do artigo na ordem em que aparecem, preciso de uma convenção para fazer referências de um modo que ajude o leitor a encontrar as citações no corpo do artigo, que é longo.

O PDF indicado acima tem quinze páginas, sendo que as duas finais são compostas de notas. Fazer referência a notas é fácil. Usarei a notação [n22], por exemplo, para indicar que estou citando ou me referindo ao conteúdo da nota 22. Para o texto propriamente dito, farei referência ao número do parágrafo e da página. O arquivo começa na página 123, mas ignorarei isso e numerarei as páginas do texto de 1 a 13, como fazem os PDF readers. Assim, quando escrevo [10.1], estou me referindo ao primeiro parágrafo da décima página. Mas é bom deixar claro: o primeiro parágrafo de uma página é o primeiro parágrafo que começa nela. Assim, [10.1] é o parágrafo que começa com "Afinal, como vamos descobrir a vontade de Deus?", e não o que contém as palavras do topo da página, o qual começa na página 9 e será identificado como [9.5].

O ideal é que todos os leitores desta série leiam primeiro o artigo do Dr. Brink, e recomendo aos que puderem que o façam. Mas, para os que não puderem, creio que faço bem em fornecer pelo menos um breve resumo para facilitar-lhes a tarefa de se situarem na continuação da série.
 
1. Na seção introdutória [1.1-2.1], que não tem subtítulo, o autor declara um compromisso com a objetividade e a normatividade da ética, que pressupõem a falibilidade humana. Ele também defende a importância de estabelecer a autonomia da ética para evitar a necessidade de um compromisso com qualquer forma de teísmo sem o risco de cair no niilismo ou relativismo morais, salvaguardando também a possibilidade de uma moral secular.
 
2. Vem em seguida a seção Papéis morais diferentes para a religião [2.2-2.3], que define três papéis possíveis para Deus em relação à moral: metafísico, epistemológico e motivacional. Esclarece que a ênfase do artigo recai sobre o primeiro, que é também o mais importante. Mas os outros aspectos também serão discutidos.

3. Segue-se a seção Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron [2.4-6.1], que revisa um trecho relevante do diálogo platônico Eutífron sobre a relação entre a vontade dos deuses e a natureza da virtude. Apresenta os conceitos de voluntarismo e naturalismo morais e defende que tanto o teísmo quanto o ateísmo consistentes devem preferir o último. Defende também que o naturalismo ético torna a moral independente de Deus.

4. A seção Variedades de naturalismo [6.2-9.2] esboça alguns princípios gerais para uma metodologia de investigação de questões morais em um âmbito não-religioso e apresenta três possíveis abordagens seculares, fundadas, respectivamente, nos princípios da reciprocidade, da imparcialidade e da responsabilidade. O autor não manifesta preferência por nenhum deles, nem crê que todos sejam necessários ou mutuamente excludentes.

5. A seção seguinte, Indício moral e vontade divina [9.3-10.2], argumenta contra a existência de um papel epistemológico válido para a religião no que diz respeito a questões morais.

6. Vem depois a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade [10.3-12.5], em que o autor expõe o que vê como a natureza problemática do papel de Deus enquanto motivador de uma vida moralmente correta. Essa parte do artigo comenta também algumas outras motivações fornecidas ao longo da história da filosofia para o comportamento moral.

7. Nos Comentários finais [13.1], o autor sintetiza suas posições, associando a ideia de um fundamento religioso da moralidade ao voluntarismo ético e negando papéis epistemológicos e motivacionais válidos à religião no terreno da moral.

Esse esboço resume aquilo que o autor defende, mas não os argumentos com que o faz. Ainda não decidi que estratégia expositiva e argumentativa será utilizada. Mas, de algum modo, as razões do Dr. Brink, assim como as minhas, começarão a ficar claras na segunda parte.

2 comentários:

Yago Martins disse...

Esperando ansioso pela continuação :)

Leonardo Bruno Galdino disse...

André,

esse tema, de fato, é muito interessante. Mas fico a pensar numa coisa: por mais irônico que possa parecer, será que não há ateus que se utilizam de uma espécie de "argumento ontológico" para se referirem a Deus como referência última de moralidade? Em todo caso, espero que você mostre Quem É de fato "O DEUS DESCONHECIDO" do "argumento ontológico" deles.

Também aguardo ansiosamente pela continuação.

Abraços!