18 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 3

Na segunda parte da presente série, fiz comentários em torno da seção introdutória do artigo A autonomia da ética, de David Owen Brink. A seção seguinte está em [2.2-2.3], chama-se Papéis morais diferentes para a religião e nela o autor distingue "três papéis diferentes que Deus poderá desempenhar na moralidade": primeiro, "Deus desempenha um papel metafísico na moralidade se a existência e natureza das exigências morais dependem da sua existência e vontade"; segundo, Deus "pode desempenhar um papel epistemológico se nos fornecer uma fonte essencial de indícios sobre o que é moralmente de valor"; e, por último, "Deus desempenha um papel motivacional na ética se nos fornece um incentivo necessário ou razão para ser moral". A distinção é deveras pertinente, e é em momentos como esse que o autor revela o melhor de si. Mas, sem que haja surpresa nisso, ele nega a Deus todos os três papéis, e a maior parte do espaço do artigo é dedicada a isso.

Nessa seção há alguns outros elementos interessantes. Como, porém, eles serão melhor expostos e discutidos adiante, prefiro adiar sua análise e ir logo para a seção seguinte, intitulada Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron, [2.4-6.1], que se dedica à refutação do primeiro papel de Deus na moralidade, o metafísico, que o autor considera o "papel que tem mais relevância para a autonomia da moral". Em outras palavras, vamos entrar agora na parte mais importante do artigo. Por isso mesmo, dedicar-me-ei a ela com especial zelo: sua análise começa nesta postagem, e deverá continuar pelas próximas quatro.

Brink começa essa seção, em [2.4], citando um trecho relevante do diálogo Eutífron, de Platão, no qual se busca definir a piedade. Eutífron a define como "aquilo que (todos) os deuses amam", e Sócrates mostra que isso pode significar duas coisas diferentes: que "Algo é piedoso porque os deuses o amam" ou "Algo é amado pelos deuses porque é piedoso". Tal distinção é relevante, dentre outras razões, porque é em conexão com ela que o Dr. Brink introduz uma terminologia importante: a primeira possibilidade é chamada de "voluntarismo, porque faz a piedade de algo depender da vontade de Deus", enquanto a segunda é denominada "naturalismo, porque faz a piedade de algo depender da [...] natureza" desse algo. Sócrates convence Eutífron de que o naturalismo é preferível, pois "o carácter que as coisas piedosas têm de serem amadas pelos deuses depende de serem piedosas, e não vice-versa". Desse modo, a definição da piedade como "aquilo que os deuses amam" é ruim, já que "formula um sintoma ou correlato, e não a causa ou essência da piedade".

No contexto pagão vigente, o argumento de Platão faz muito sentido, uma vez que os deuses gregos, embora sejam poderosos e imortais, não podem preencher o papel de um absoluto metafísico - e tampouco, consequentemente, o de um absoluto moral. Eles são parte do cosmos e, portanto, também surgiram como produto indireto do caos primevo; moldaram e mantêm a ordem do universo, mas não estão acima dele e não são infinitos ou infalíveis em nenhum sentido. São, no fim das contas, apenas sujeitos fortões, bonitões e grandalhões. No imaginário moderno, estariam mais próximos de civilizações alienígenas avançadas, sobretudo do tipo que se mete ocasionalmente na história do nosso planeta, como é o caso dos ETs da célebre tetralogia de Arthur Clarke. Dentro da estrutura de plausibilidade politeísta, não há razão forte para se crer na infalibilidade moral ou cognitiva dos deuses, e muito menos para se supor que eles sejam a fonte metafísica última, da moralidade ou de qualquer outra coisa. Há, no pensamento grego, leis que estão igualmente acima dos deuses e dos homens.

Em virtude disso, as semelhanças entre os deuses gregos (ou pagãos em geral) e o Deus do cristianismo são bem mais superficiais do que muitos supõem, enquanto as diferenças são abissais. Não se pode dizer seriamente que a diferença entre o politeísmo e o monoteísmo reside tão somente no número de deuses admitidos. Essa é, em certo sentido, a mais branda de todas as diferenças. O Deus judaico-cristão não é só um ser pessoal que nos governa; é também um absoluto metafísico. Quanto ao primeiro aspecto, ele se assemelha, de fato, aos deuses gregos; mas, quanto ao último, o lugar de Deus só pode ser comparado ao do Fado, o Destino que rege implacavelmente tanto os homens quanto os deuses, pois é esse o absoluto metafísico da cosmovisão grega; porém, ao contrário do Deus cristão, tal absoluto não é pessoal, e é isso o que torna o politeísmo, em última análise, semelhante ao ateísmo. Do ponto de vista cristão, o paganismo antigo e o materialismo moderno (mas não só eles) cometem o mesmo erro básico, o de colocar um mero princípio impessoal no governo do universo e atribuir à personalidade, divina ou humana, um papel secundário. Ambos desconectaram o Absoluto da Personalidade.

Brink não percebe nada disso. Em [3.1], ao transpor o argumento de Sócrates para o monoteísmo judaico-cristão, ele declara expressamente não ver senão "diferenças superficiais" entre os dois casos. Quando ele pensa no cristianismo, vê apenas um politeísmo que, por algum motivo misterioso (falta de imaginação, por exemplo), sofre de severa escassez de deuses. Ele não entende o caráter absoluto da personalidade no cristianismo, e em momento algum argumenta contra ela - o que torna seu artigo um caso particular do que discuti em minha recente série Personalidade absoluta (em três partes: 1, 2 e 3). Se lhe for concedido o direito à ignorância nesse ponto, ele já terá ganho o debate pela simples definição dos termos, e atribuir ao Deus cristão um papel metafísico para a moralidade fará tão pouco sentido quanto atribuí-lo a Apolo ou aos Primogênitos de Clarke. De agora em diante, uma parte significativa (embora não necessariamente majoritária) do meu esforço argumentativo consistirá em não lhe conceder esse direito. Como não tenho nada a esconder de ninguém, faço minhas desde já as palavras de John Frame em Apologética para a glória de Deus. Elas definem bem meu objetivo:

"Somos chamados a permanecer firmes contra a pressuposição quase universal de que o mundo é fundamentalmente impessoal. Não podemos permitir que passe a oportunidade sem mostrar ao incrédulo que não é correto assumir o que ele geralmente assume - que é claro que a realidade última é impessoal. Temos de desafiá-lo a considerar a alternativa."

Filosoficamente, pode-se dizer que o Dr. Brink não percebe a relevância, para o que está discutindo, da diferença de estatuto e função ontológicos entre os deuses pagãos e o Deus dos monoteísmo judaico-cristão (o islamismo é um caso à parte, e deveras complexo, que não vou discutir aqui). Esse problema vem se somar a outro que levantei no post anterior: a total falta de percepção de que é necessário identificar o fundamento metafísico da objetividade moral e justificá-lo como tal. Juntos, esses dois problemas bastam ao menos para sugerir que o autor do artigo é um filósofo com treinamento e aptidões bastante limitados para a metafísica e a ontologia, o que me parece ser um problema comum a várias das tradições que o influenciaram, como o utilitarismo de Mill e pelo menos boa parte da filosofia analítica.

Não estou dizendo isso apenas por discordar das posições do autor; há vários filósofos, antigos e modernos, cujas posições no terreno da metafísica eu considero nada menos que absurdas, sem que isso me impeça de ver em suas respectivas elaborações metafísicas o resultado de uma longa e interessada reflexão. Não vejo isso no Dr. Brink; ele me parece não apenas ignorar o assunto, mas fazê-lo com enorme satisfação, sem jamais desconfiar que está perdendo algo importante com isso. Ao expressar essa impressão, também não é meu objetivo estabelecer um argumento ad hominem; na verdade, não estou sequer levantando um argumento de qualquer tipo. Faço apenas um simples diagnóstico das causas que impedem o autor de atingir o objetivo de seu artigo. Nas próximas postagens, mostrarei exemplos do que vejo como efeitos deletérios dessas limitações sobre a qualidade de sua argumentação.

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