12 de julho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 9

Dei início na última postagem à análise da seção Variedades de naturalismo do artigo A autonomia da ética, na qual o Dr. David Owen Brink busca um método de investigação secularista da moralidade. Terminei mostrando que "O 'ajuste dialético', ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da 'teoria moral secular'", e prometi que faria uma crítica dessa perspectiva. Contudo, creio que será mais proveitoso abordar primeiro as três abordagens seculares e naturalistas da moral que Brink expõe em [8.2], [8.3] e [9.1]. Elas se baseiam, respectivamente, nos princípios da vantagem mútua, da imparcialidade e da responsabilidade. Passo agora a fazer uma breve exposição e crítica de cada uma. Na próxima postagem farei o movimento inverso, passando dos problemas específicos de cada abordagem às dificuldades onipresentes nesta seção.

A primeira abordagem diz que "podemos identificar as exigências da moralidade com as normas do comportamento social cuja observância geral é mutuamente benéfica", e isso "explica o nosso interesse em sermos morais e o interesse da comunidade em instilar um sentido ou consciência moral nos seus membros". Não discorrerei muito sobre essa vertente porque o próprio Brink parece não gostar muito dela, uma vez que levanta uma objeção em [8.3]: "esta abordagem parece limitar o cuidado moral relativamente àqueles com quem se interage regularmente. [...] O âmbito lato da moralidade pode ser visto como algo que reflecte uma perspectiva que procura transcender os interesses e lealdades pessoais do agente." Em outras palavras, essa abordagem não explica por que devemos agir de modo benéfico à sociedade naquelas situações em que sabemos que não haverá sanção social por agirmos de modo diferente.

Eu acrescento que essa abordagem também não conta com o risco de a própria sociedade julgar mal o que é bom para si e, dessa forma, punir pessoas que lhe fazem bem e recompensar as que lhe fazem mal. Os exemplos históricos disso são tantos que não vou citar nenhum. Basta dizer que muitos grupos humanos, de cristãos a ateus, de conservadores a comunistas, acreditam que isso acontece o tempo todo. Sendo assim, é justo perguntar: o indivíduo ou grupo mais lúcido seria imoral se fizesse o que vê como melhor para a sociedade, e não o que a própria sociedade considera bom? A fundamentação da moral no princípio da vantagem mútua é profundamente falha porque não leva em conta o fundamento ontológico (as "propriedades naturais das situações") à luz do qual as escolhas morais podem ser justificadas. Um código moral sem ontologia não presta para nada. A abordagem moral baseada na vantagem mútua é problemática porque é simplista, abstrata e reducionista. Ela não fornece uma resposta para os dilemas concretos e pungentes da vida.

A segunda abordagem, baseada no princípio da imparcialidade, admite duas concepções diferentes sobre o que seu princípio significa. A primeira, que Brink chama de "agregativa", "exige que um agente tome igualmente em consideração os interesses das partes afectadas, equilibrando os benefícios de alguns com os prejuízos de outros, consoante for necessário, de modo a determinar o resultado melhor para todos", e assim "identifica o nosso dever com a promoção da felicidade humana ou com outras consequências boas". Brink também parece não gostar muito dessa opção, que "permite que os interesses de muitos tenham mais peso do que os de poucos", o que evidentemente poderia justificar uma ampla variedade de injustiças manifestas contra minorias e pessoas que se encontram em situações excepcionais; esse é, aliás, um risco inerente a qualquer coletivismo. A outra interpretação possível do princípio da imparcialidade, que Brink chama de "contratualista", "rejeita este tipo de equilíbrio interpessoal e insiste que ajamos apenas com base em princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar".

A objeção mais óbvia (e clássica) a essa abordagem é que o valor moral da imparcialidade é apenas pressuposto como auto-evidente. A vertente agregativa esbarra no problema que C. S. Lewis percebeu em Cristianismo puro e simples: "Se pergunto: 'Por que não devo ser egoísta?' e você responde: 'Porque isso é bom para a sociedade', posso então perguntar: 'Por que devo me preocupar com o que é bom para a sociedade a não ser quando isso for benéfico para mim?', e então você terá de responder: 'Porque você não deve ter egoísta', o que simplesmente nos traz de volta ao ponto de partida". E a vertente contratualista se choca contra o problema que John Frame levantou em Apologética para a glória de Deus: por que nossa razão deveria nos impor algum dever moral de coerência com o que ela percebe como verdadeiro? Em outras palavras, onde está o fundamento da normatividade ética da verdade cognitiva? Já defendi na quinta parte que "não há deveres à parte de relações pessoais"; segue-se daí que a verdade só tem implicações morais porque diz respeito ao nosso compromisso ético fundamental com alguém. Quando Brink fala em "princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar", o "razoavelmente" é cognitivo, mas o "possa" é também moral. Nada em sua filosofia materialista justifica esse salto. No cristianismo, por outro lado, não há salto algum: temos um dever moral para com a verdade porque a apreensão das leis de Deus é um dos propósitos para os quais ele nos deu inteligência; porque Cristo é a verdade (João 14.6); porque Deus é a Personalidade Absoluta, e tudo o que somos e fazemos é expressão de nossa reação ao Pacto.

Há mais, porém. De modos diferentes, essas duas vertentes encarnam o mesmo problema fundamental: no primeiro caso, é necessária uma decisão dogmática sobre quais são as "consequências boas" que cada ser humano deve promover; no segundo, sobre quais são os princípios que, de tão razoáveis, ninguém tem o direito de rejeitar. "Felicidade humana" e "razoabilidade" certamente são expressões às quais bem poucos se oporão, mas sobre cujo conteúdo é impossível atingir um consenso, dada a ampla diversidade possível de posições culturais, religiosas, políticas, filosóficas e outras que influenciam o que cada pessoa entende por essas lindas palavras. Como tenho dito várias vezes ao longo desta série, juízos morais têm sempre uma base metafísica e epistemológica que a abordagem "imparcialista" faz questão de abstrair. Assim, em algum momento da discussão, o Dr. Brink, ou quem quer que o represente politicamente, teria de dizer, com base apenas em seus próprios dogmas: "Vejo com clareza que tais princípios trariam a felicidade humana ou outras consequências boas, e portanto todos devem obedecê-los, ainda que não concordem comigo"; ou então: "Tais princípios me parecem tão razoáveis que não concedo a ninguém o direito de questioná-los".

Em outras palavras, Brink não é capaz de estabelecer uma moral ateísta (ou compatível com o ateísmo) sem que ele mesmo ou alguma outra pessoa ocupe o papel de Deus - tanto do ponto de vista metafísico quanto do epistemológico, pois as duas coisas são indissociáveis. (E não adianta dizer que esse alguém é a humanidade em geral, pois o problema é justamente o fato de que alguém que não é a humanidade em geral terá de falar em nome dela.) A diferença é que Deus é infalível por definição; mas Brink quer conceder ao homem (melhor dizendo, a algum homem ou grupo seleto) direitos divinos ao mesmo tempo em que manifesta ter consciência da profunda falibilidade (cognitiva e moral) humana. A abordagem naturalista baseada na imparcialidade se fundamenta em uma simples abstração. Ela serve apenas para dar ao seu adepto a ilusão de que pode desprezar o "teísmo" de um modo simultaneamente inteligente e virtuoso por ser capaz de racionalizar dessa forma sua percepção da objetividade moral. E, na medida em que uma filosofia ética se torna abstrata, é também reducionista e impessoal. O efeito disso, no plano político, só pode ser o totalitarismo. Os filósofos pragmatistas que concluíram que o moralmente correto é o que o Estado determina como tal estavam apenas sendo coerentes com suas premissas.

A terceira abordagem que Brink apresenta é a kantiana, baseada na ideia de que "Ser um agente moral é ser responsável" e que os "requisitos morais" dependem "do que os agentes valorizam na medida em que são agentes racionais", isto é, "de características dos agentes morais enquanto tais". Dessa ênfase na racionalidade decorre o famoso imperativo categórico, pelo qual "devemos tratar todos os agentes racionais como fins em si e nunca meramente como meios". A filosofia moral de Kant é bem mais complexa, mas felizmente já escrevi um post inteiro sobre ela há alguns anos. Embora seja puramente descritiva, essa postagem antiga talvez ajude a compreender melhor minha insatisfação com essa filosofia, que tentarei explicar abaixo.

Kant era um racionalista - não no sentido estrito, mas no sentido amplo - e, de acordo com sua inclinação natural, quis construir uma filosofia moral baseada apenas no senso de dever (e, a se crer em Brink, na responsabilidade em um sentido causal). O resultado foi um "imperativo categórico" que nega relevância a tudo o que constitui uma pessoalidade autêntica: felicidade, amor e gratidão, por exemplo. Sua moral só leva em conta o dever e a razão. Ou, melhor dizendo, só leva em conta a razão, pois ela torna possível o dever, que é, no fundo, um dever para com a deusa Razão onde quer que ela se encarne - isto é, em outros seres racionais. Mesmo o brevíssimo resumo do Dr. Brink deixa isso claro.

Esse fato gera dois problemas básicos ao uso que Brink faz da moral kantiana. O primeiro é inerente à próprio kantismo, e decorre do fato de que da pura causação não se pode jamais deduzir uma responsabilidade no sentido moral; a filosofia de Kant não nos diz por que, afinal, devemos ser considerados responsáveis por nossas ações. Kant, como Brink, buscou fazer justiça à sua intuição da objetividade moral, mas não disse nada que convencesse alguém que não tivesse assentido de antemão aos pontos centrais de seu sistema filosófico particular. É claro que há nisso um elemento positivo: Kant sabia de algo que Brink quase sempre esquece, como já observei na segunda parte desta série: que não há objetividade moral possível sem um fundamento metafísico bem definido. Prova-o o próprio título da obra de Kant sobre o tema: "Fundamentação da metafísica dos costumes".

O segundo problema é que Kant jamais concordaria que a moralidade objetiva é compatível com o materialismo, e em parte suas razões para isso são boas; ele sabia que um fundamento transcendente era necessário, pois cria que o dever não é um conceito empírico, isto é, não se fundamenta no mundo fenomênico. A filosofia de Kant é humanista e secularista, sem dúvida, mas não é materialista. Porém, transcendência não basta, e Kant não entendia quão profundamente pessoal é a moralidade; ele não chegou nem perto de perceber que, como argumentei na quinta parte, uma moral objetiva só pode decorrer de uma Personalidade Absoluta. Decorre daí a aridez formalista de seu sistema, que contraditoriamente desconsidera inclusive as "propriedades naturais" das situações, como as que citei na sétima parte, e reduz os agentes morais a simples fagulhas da Razão.

Dessa forma, ao recorrer a Kant, Brink se coloca em uma dupla dificuldade: seu terceiro candidato, além de ser problemático por si mesmo, não é um aliado consistente do materialismo. Talvez seja por isso que Brink, ao descrever o pensamento de Kant, concentra-se nos pontos que não se chocam frontalmente com o materialismo. No entanto, a filosofia moral de Kant não pode ser coerentemente dissociada do restante de seu pensamento, que está pressuposto em sua elaboração da ética; tal mutilação seria fatal, inclusive, à sua utilidade como defesa da autonomia da ética.

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