31 de agosto de 2013

Deveres sem pessoas - parte 11

Estou há meses escrevendo e publicando aos poucos um comentário ao artigo A autonomia da ética, do filósofo ateu americano Dr. David Owen Brink. Na última postagem, ainda tratando da seção Variedades de naturalismo, fiz algumas considerações de ordem epistemológica. A seção seguinte, Indício moral e vontade divina, tem apenas cinco parágrafos, [9.3-10.2], e trata justamente do papel epistemológico de Deus na moralidade. Sua questão central fica clara já no parágrafo inicial:

"Mesmo que Deus não faça algo ser moralmente bom ou mau, poderá mesmo assim ser um indicador de confiança do que o é, fornecendo-nos indícios sobre os nossos deveres morais. Na verdade, se Deus existe e é moralmente perfeito e omnisciente, então a sua vontade tem de ser um indicador perfeito do que é (independentemente) valioso. Não daria isto à religião um papel epistemológico significativo na moralidade?"

Como era de se esperar, Brink responde negativamente. Passo agora a analisar os argumentos apresentados nessa seção, começando na presente postagem e terminando na próxima. Naturalmente, tal discussão pressupõe o que o autor julga já ter demonstrado nas seções anteriores. Da mesma forma, minha réplica pressupõe a validade das críticas que já fiz nas dez postagens precedentes, de modo que o que se segue pode ser melhor compreendido à luz do que foi dito. É o caso, por exemplo, do primeiro argumento levantado por Brink, em [9.4]:

"Mesmo que Deus fornecesse uma fonte de indícios sobre as exigências da moralidade, não teria de ser a única ou a mais importante. Afinal, se o naturalismo for verdadeiro, as exigências da moralidade têm uma fonte metafísica que não a vontade de Deus. As exigências morais serão presumivelmente uma questão de promover a justiça, os direitos e a felicidade. Temos a possibilidade de raciocinar directamente sobre estas questões morais, entregando-nos ao raciocínio moral secular, em vez de o fazermos obliquamente através da consulta {a} um barómetro divino destas matérias."

Como se vê, o argumento depende, de modo explícito e consciente, da premissa de que Deus não tem um papel metafísico na moral. O autor defendeu essa tese na seção Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron. Dessa forma, levando em conta sua confiança em métodos secularistas de pesquisa moral, como os apresentados na seção Variedades de naturalismo, é natural que o Dr. Brink veja Deus como um mediador dispensável. Contudo, dediquei cinco posts (partes 3, 4, 5, 6 e 7) à refutação dos argumentos de Brink contra o papel metafísico de Deus na moralidade, e três (partes 8, 9 e 10) à crítica de seus métodos seculares. Brink se engana ao supor que há uma lei moral à parte do caráter de Deus; consequentemente, ainda que ele não saiba disso, seus métodos nada mais são que tentativas de entender o caráter de Deus desconsiderando o próprio Deus, o que não tem sentido. Isso se nota especialmente em algo que já denunciei na última postagem, mas que convém trazer à tona novamente: ao "presumir" que as "exigências morais serão [...] uma questão de promover a justiça, os direitos e a felicidade", Brink ignora solenemente a justiça, os direitos e a felicidade do próprio Deus, como se não tivéssemos deveres em relação a ele.

Segue na mesma direção o segundo argumento, apresentado em [9.5]:

"Os ateístas pensarão que estes indícios directos e seculares {são} tudo o que há. Mas mesmo os teístas devem reconhecer a existência destes indícios directos e preferi-los no caso de os indícios indirectos sobre a vontade de Deus {serem} suficientemente difíceis de obter."

O terceiro argumento, que busca demonstrar essa dificuldade, será apresentado em seguida e constitui, na verdade, a parte mais interessante da seção. Mas, antes de passar a isso, quero apenas relembrar que, como venho dizendo desde a segunda parte, o autor não tem a menor ideia de qual é o fundamento metafísico da moralidade. Sendo assim, que garantia ele pode nos dar de que a opinião de Deus é um indício menos direto que a razão humana, ou que qualquer outra faculdade humana? Essa afirmação é dogmática e gratuita, dados seus pressupostos. O ateu tem todo o direito de discordar de Brink nesse ponto e concluir que, dada a falta de fundamentação racional dessa proposta, devemos considerar que as verdades morais inexistem ou que não temos acesso a elas, de modo que cada um faz bem em perseguir seus interesses sem preocupações dessa ordem. Como já observei antes, as premissas de Brink não lhe permitem sustentar a objetividade da ética de modo consistente.

Além disso, como já observei na oitava parte, Brink é bastante ignorante em matéria de teologia, e as consequências disso se manifestam também aqui. Mostrei no último post que suas metodologias de pesquisa no terreno da moral não têm valor racional; na verdade, nem chegam a constituir autênticas metodologias, e isso justamente porque não dispõem de um absoluto definido que lhes sirva de fundamento. Tal condição é inerente ao ateísmo. Se há, pois, algum método capaz de atender aos anseios de Brink, só pode ser um método baseado em pressupostos teístas, ainda que não seja explicitamente teológico. Em outras palavras, mesmo que o objeto de estudo não seja o conteúdo moral da revelação especial (isto é, a Bíblia), o método não poderá deixar de entender as verdades morais investigadas como parte da revelação geral. Mas Brink ignora, ao menos nesse artigo, o conceito revelação geral, e é aqui (digo, também aqui) que reside sua ignorância teológica. Se fosse mais instruído no assunto, ele saberia que, no contexto da cosmovisão cristã, simplesmente não faz sentido falar em indícios morais que não decorram de revelação divina, ainda que tais indícios, por hipótese, não estejam presentes na Bíblia e possam ser encontrados em outras fontes, pois estas também foram criadas por Deus e o revelam de alguma maneira.

Dito isso, podemos passar ao parágrafo seguinte, cujo propósito é mostrar que não há uma revelação confiável da vontade de Deus sobre assuntos morais, isto é, que não dispomos de meios racionalmente seguros para conhecer essa vontade. São levantados dois argumentos, sendo que o segundo se divide em três partes, e essa terceira parte pode ser subdividida em duas. Várias dessas questões poderiam ser (e de fato foram) tratadas amplamente em livros de teologia e apologética. Aqui não posso ter a pretensão de abordar os temas de modo profundo. E tampouco considero isso necessário, pois o Dr. Brink os levantou de modo extremamente superficial e desajeitado, sem qualquer intenção de problematizá-los de fato. Proporcionalmente, minhas respostas serão até profundas demais.

O primeiro argumento do parágrafo [10.1] diz que "há múltiplas tradições e escrituras. Na medida em que afirmam coisas opostas sobre a vontade de Deus, não podem ser todas verdadeiras. Mas é difícil saber como determinar quais das tradições e escrituras são mais fiáveis." Observo, de passagem, que a afirmação central já depende de uma certa concepção de Deus. Eu endosso essa concepção, mas o fato de o Dr. Brink apresentá-la como a coisa mais óbvia do mundo é um sinal claro da estreiteza de seu campo de referências - ou, dizendo em português mais claro, de sua ignorância sobre o tema das religiões em geral, muitas das quais não endossariam essa premissa, que considerariam racionalista demais.

Mais interessante para a presente discussão, porém, é o fato de que também há múltiplos sistemas seculares sobre o conteúdo da lei moral e seus fundamentos, mas nem por isso o Dr. Brink se exime da árdua tarefa de se lançar ao assunto e estudar profunda e incansavelmente a fim de identificar os méritos e deméritos de cada uma. Uma pequena amostra de suas reflexões desse teor foi apresentada na seção Variedades de naturalismo, nesse mesmo artigo. Nem parece o mesmo homem que agora reclama preguiçosamente que determinar "quais das tradições e escrituras são mais fiáveis" é muito difícil, a tal ponto que ele não pretende sequer dar início à investigação do tema. O contraste entre as duas atitudes é notório, especialmente porque não há nada no artigo que o justifique.

O segundo argumento se concentra nas "questões em aberto" existentes até em "uma só tradição religiosa". Como já mencionei, esse argumento se divide em três partes. A primeira é que, "Sobre alguns tópicos morais possíveis, a tradição e a escritura podem fazer silêncio". Porém, uma vez mais, o mesmo pode ser dito de qualquer sistema moral. Jean-Paul Sartre, por exemplo, levantou em O existencialismo é um humanismo uma questão moral para a qual não há solução óbvia no sistema kantiano. No entanto, isso não impediu o Dr. Brink de tratar a moral kantiana com muita seriedade no artigo em questão. Ele certamente não acha improvável que, embora Kant não tenha lidado com a referida questão em seus escritos, uma compreensão aprofundada dos princípios subjacentes ao sistema kantiano traga uma solução para o problema. Eu também não duvido que o caso seja justamente esse. Como especialista em jurisprudência, o Dr. Brink sabe que nem tudo está escrito na Constituição, mas que nem por isso as decisões em casos singularmente complicados são necessariamente arbitrárias ou desvinculadas dos princípios constitucionais. Por que isso seria diferente em se tratando de códigos morais fundados em tradições religiosas? E, uma vez mais, o que justifica tamanha preguiça da parte de Brink? Até onde posso ver, nada. E tampouco se justifica que essa preguiça seletiva seja apresentada como argumento tão fulminante que duas linhas bastam para evidenciar sua validade.

A segunda parte do segundo argumento consiste na afirmação de que "a tradição e a escritura podem falar [...] de maneiras opostas". A nota 15 cita como único exemplo a contradição bíblica da "doutrina do 'olho por olho' [...] com a doutrina do 'oferecer a outra face'". Sem dúvida isso é melhor que não citar exemplo algum, como no caso que acabo de discutir. Porém, considero relevante o fato de que esse exemplo, justamente por ser clássico, é discutido até nos mais vagabundos manuais de apologética e comentários exegéticos das passagens bíblicas citadas. Isso para não mencionar as obras que tratam teologicamente do tema em um nível bem mais profundo. O fato de o Dr. Brink desconhecer dois milênios de reflexão cristã sobre o tema e apresentar a suposta contradição como a coisa mais óbvia e indiscutível do mundo é nada menos que decepcionante, menos pela ignorância em si que por seu caráter inconsciente, ingenuamente autoconfiante e, em decorrência disso, presunçoso. Brink poderia pelo menos ter refletido um pouco sobre o contraste entre as duas passagens à luz das diferenças entre os deveres da pessoa humana e os da autoridade constituída.

A terceira parte do argumento, com suas duas subdivisões, será avaliada no próximo post.