28 de agosto de 2014

Complementos causais - parte 2

Na postagem anterior dei início a alguns comentários e esclarecimentos em torno de minha leitura do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, de R. K. McGregor Wright, e dos comentários do Dr. Alan Myatt à primeira parte de minha série Sutilezas causais, em que fiz comentários sobre um dos capítulos desse livro. Prometi que nesta continuação eu faria uma breve comparação entre os posicionamentos de Cornelius Van Til e os de McGregor Wright com relação ao tema do determinismo, e é o que passo a fazer. Um dos motivos pelos quais citei Van Til duas vezes nos instantes finais da primeira parte é a afirmação do Dr. Myatt de que Wright era um vantiliano. Na época isso não fez nenhuma diferença para mim, pois eu nunca tinha lido Van Til. Mas desde então li quatro de seus livros, além de outros sobre ele (de discípulos e de antagonistas), e por isso o assunto agora tem, para mim, alguma importância.

As menções que fiz a Van Til na postagem anterior sugerem que tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Wright se manteve fiel às intenções do holandês. Eu já obtivera de minha primeira leitura indícios que pareciam apontar na mesma direção: apesar de a admiração de Wright por Van Til ficar explicitamente clara em vários pontos do livro, parece-me que, ao menos no que diz respeito aos temas fundamentais da obra, a dívida do autor para com Gordon Clark é bem maior. Embora eu não tenha contado, é provável que as referências a Clark sejam mais numerosas, e é sempre a ele, e não a Van Til, que Wright recorre para defender o determinismo e a perfeita harmonia lógica entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Além disso, na época da primeira leitura eu já tinha ciência das profundas divergências entre Clark e Van Til e da popularidade do livro nos círculos clarkianos brasileiros (a começar pelo irmão que me presenteou com o livro), de modo que me pareceu que Wright era basicamente um clarkiano, embora sem nenhuma birra com Van Til. Contribuiu para essa impressão a minha já mencionada falta de contato com o pensamento de Van Til na época, em contraste com minha relativa familiaridade com a obra de Clark.

Essas minhas impressões se modificaram um pouco no decorrer da segunda leitura. Agora vejo com clareza a influência de Van Til em diversos pontos da obra. Não obstante, continuo achando que, ao menos no que diz respeito à defesa do determinismo e à negação do mistério, e em especial quanto à relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana, Wright se afina muito mais com Clark que com Van Til. Na postagem anterior, embora não tenha me referido a Clark, apresentei fatos que, creio eu, permitirão que qualquer pessoa familiarizada com a obra deste reconheça a afinidade entre ele e o autor de A soberania banida. Nesta segunda (e última) postagem, pretendo demonstrar que Wright se afastou de Van Til também em sua visão sobre o determinismo. Ao comentar as influências que recebeu, na página 40, Wright atribui a Van Til sua "crítica da pressuposição da autonomia metafísica" e a Clark a "refutação da teoria do livre-arbitrio". Quem conhece a obra de Clark sabe que essa refutação segue uma linha determinista. O que resta saber é se a crítica vantiliana da autonomia metafísica faz o mesmo. Penso que não e, para defender isso, apresentarei e discutirei brevemente duas declarações de Van Til que julgo relevantes para elucidar isso. A primeira foi retirada do livro Jerusalem and Athens, página 16, em um momento no qual Van Til acusa Stuart Hackett de não compreender o calvinismo:

"A acusação básica de Hackett, de que o calvinismo é determinista e irracional, simplesmente não é verdadeira. Primeiro, quanto à acusação de que ele é determinista e que os homens são meros 'bonecos', basta ler o próprio Calvino para se convencer de que tal entendimento do calvinismo é falso. A noção calvinista da soberania divina não tem nada a ver com a noção do filósofo quanto a um determinismo físico, causal. Eu desenvolvi de modo extenso em outros lugares a visão pactual e exaustivamente personalista da providência que é uma parte muito clara do pensamento de Calvino."

É claro que o entendimento de Wright não coincide com o de Hackett quanto ao que seria um determinismo calvinista, como se vê no fato de que o primeiro busca dissociar o assim chamado "determinismo bíblico" dos bonecos e marionetes onipresentes na retórica anticalvinista. Mas essa diferença não anula a discrepância real entre Wright e Van Til. Para este, como se vê nas palavras acima, negar que sejamos bonecos é sinônimo de negar o determinismo, que se contrapõe a uma "visão pactual e exaustivamente personalista da providência". Ao contrário de Van Til, Wright deseja manter a visão pactual e personalista da providência e negar que sejamos bonecos sem deixar de aderir ao determinismo.

Além disso, Van Til é bastante claro ao qualificar o que entende por determinismo com as palavras "físico, causal". Uma vez mais, Wright pretende dissociar as duas coisas, argumentando que o "determinismo bíblico" transcende o domínio da matéria, sendo, portanto, causal sem ser meramente físico. Wright faz isso, por exemplo, na página 103: "Há diferentes tipos de necessidade, e a causação física é apenas uma delas". Não há essa distinção no pensamento de Van Til. O determinismo de Wright é o mesmo do filósofo, preso no falso dilema entre a "causalidade irrestrita" e o acaso. Desenvolvi um pouco essa ideia na direção de uma apologética contra o ateísmo na minha série Personalidade absoluta (partes um, dois e três).

A segunda citação de Van Til foi extraída do livro The protestant doctrine of Scripture (disponível aqui). Esqueçamos, por enquanto, a crítica a Berkouwer e Barth, pois é suficiente notar que Van Til discorda deles, e concentremo-nos no que o trecho abaixo nos ensina sobre a visão vantiliana do determinismo:

"Berkouwer fala de uma certa imperiosidade que marca a ideia de causalidade. Isso é verdade no caso da visão não-cristã da causa. Na verdade, nessa visão não-cristã a causa é o que é por causa do caráter supostamente legislativo da lógica humana. A realidade deve ser o que o homem - e seu deus -, pensando logicamente, diz que ela deve ser. Spinoza deu a melhor expressão a essa ideia quando disse que a ordem e a conexão entre as ideias são as mesmas que a ordem e a conexão entre as coisas. Aquele que pensa nesses termos pensa deterministicamente. E o indeterminismo não é remédio para o determinismo. O indeterminismo é apenas a admissão do fracasso da interpretação que segue as linhas do determinismo. É Barth quem ainda está preso no falso dilema entre determinismo e indeterminismo. O único modo de fugir dele é estabelecer a posição que Berkouwer advogou em seus primeiros dias, a posição que começa com o pressuposto da autoridade, unidade e clareza da Escritura como a Palavra de Deus."

Por aí se vê que Van Til não se considerava determinista nem indeterminista, e via as duas vertentes como efeitos da crença na autonomia da razão humana. A passagem adverte muito claramente contra o racionalismo que sempre está por trás da visão determinista, e que consiste, em termos dooyeweerdianos, na absolutização do aspecto analítico. Isso leva, nas palavras de Van Til, a uma "visão não-cristã" da causalidade, que passa a ser vista como um nexo causal ininterrupto entre eventos passados, presentes e futuros, da mesna forma pela qual, em uma dedução silogística perfeita, uma conclusão se segue das premissas através de uma série de passos lógicos inevitáveis.

Não duvido, é claro, que Van Til possa ter utilizado o termo "determinismo" alguma vez para se referir à sua própria posição. Na verdade, lembro de ter lido em algum lugar (não em fontes primárias) que ele já usou a expressão "determinismo pessoal", o que talvez explique a contraposição, feita pelo Dr. Myatt, entre "o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado" no pensamento apóstata. Mas isso, mesmo que seja verdade, não anula os argumentos que levantei aqui em favor de uma diferença radical entre a visão vantiliana da providência divina e o determinismo apóstata - diferença muito mais radical que a existente entre este último e o determinismo de Wright. Afinal, todos sabemos - e o próprio Van Til, de certo modo, o admitiu na réplica a Dooyeweerd em Jerusalem and Athens - que seu modo de usar certas terminologias era por vezes infeliz e levava a interpretações equivocadas. Pessoas tão diferentes quanto Doyeweerd, Sproul e Frame perceberam e reclamaram disso.

Diante de todas essas constatações, só posso concluir que o Dr. Myatt transmitiu uma impressão equivocada (ou pelo menos exagerada) ao dar a entender uma profunda fidelidade de Wright ao pensamento de Van Til.

30 de julho de 2014

Teologia Brasileira: Armadilhas do vocabulário político

O filólogo Victor Klemperer (1881-1960) foi um dos judeus alemães que sobreviveram ao regime nacional-socialista. Ele não só deixou registros históricos e pessoais valiosos, como seus Diários, mas também, conjugando seu conhecimento acadêmico à experiência existencial de viver constantemente perseguido e marginalizado por um governo totalitário, elaborou uma análise do uso da linguagem pelo Estado nessas condições: A linguagem do Terceiro Reich, publicada em 1947. Klemperer era um homem sensível e um observador arguto. Acredito que poucos conheceram como ele, por vias teóricas ou práticas, os usos perversos da linguagem posta a serviço da política. Eis um homem que tem autoridade para falar sobre as relações entre linguagem e mentira. Por isso, à primeira vista talvez pareça estranho que seu juízo tenha sido este: “A linguagem revela. Por vezes, alguém procura esconder a verdade por meio da linguagem. Mas a linguagem não mente.”

Há nessas palavras uma dimensão teológica oculta da qual o próprio Klemperer, como judeu convertido a um protestantismo teologicamente liberal e comprometido com o iluminismo, pode muito bem ter deixado de perceber: a linguagem foi criada por Deus para expressar a verdade, de modo que a mentira é um parasita pernicioso, mas nunca de todo bem-sucedido.

Ninguém ignora que o terreno do debate político é pródigo de mentiras completas, meias-verdades, confusões e ambiguidades, tanto propositais quanto inconscientes. É importante que o cristão aprenda a evitar tais armadilhas. Diante disso, a sentença de Klemperer se relaciona de várias maneiras ao espírito do presente ensaio, cujo propósito não vai além de uma introdução à tarefa de combater alguns equívocos cometidos com frequência na reflexão política. O método consiste em problematizar, a título de exemplo, dois pares de palavras-chave potencialmente enganadoras, mostrando de que modos podem ser (e são) usadas para ocultar a verdade ao invés de esclarecê-la. Ao mesmo tempo, pretendo mostrar como tais usos podem revelar algumas verdades que são, em geral, pouco notadas.

Continue lendo no site da revista Teologia Brasileira.

30 de junho de 2014

Complementos causais - parte 1

Hoje vou retomar um assunto sobre o qual discorri neste blog há quase três anos. Em agosto e setembro de 2011 publiquei uma série de quatro postagens (um, dois, três e quatro) intitulada Sutilezas causais. O objetivo era comentar o segundo capítulo do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna (São Paulo, Cultura Cristã, 2008), de R. K. McGregor Wright, intitulado "A incoerência da teoria do livre-arbítrio". A apreciação foi predominantemente crítica e se concentrou, não na teologia do autor, que subscrevo integralmente, e sim no que me pareceu uma falta de rigor filosófico que, por sua vez, gerou uma adesão mal refletida ao determinismo, entendido como única forma de fazer justiça à absoluta soberania de Deus. Meu objetivo era escrever essa crítica em apenas duas postagens, mas mudei meus planos quando o Dr. Alan Myatt fez alguns comentários à primeira delas; a fim de prestar alguns esclarecimentos, adiei a segunda parte, que se tornou a quarta, e escrevi dois posts intermediários.

Antes de explicar por que estou recapitulando tudo isso, devo dizer que há algumas coisas no texto que eu mudaria se fosse escrevê-lo hoje. Não me perdoo, por exemplo, por ter me referido a Alvin Plantinga como um "filósofo reformado" e pelo modo um tanto vago com que me referi à sua relação com o pensamento pressuposicional. Além disso, em vários pontos, o tom do texto já não me agrada muito. Ao republicar em 2005 seu livreto The Amsterdam Philosophy: a Preliminary Critique, escrito em 1972, John Frame lamentou que o tom de suas críticas a Herman Dooyeweerd e outros holandeses da mesma estirpe havia sido "estridente demais". Essas palavras descrevem bem minha impressão sobre o que escrevi nas partes um e quatro da série. Apesar disso, não mudei de posição quanto ao que defendi naquelas postagens.

O que pretendo fazer hoje são alguns desenvolvimentos e complementos ao que havia dito em 2011. Isso pode ser feito em duas direções diferentes, uma das quais eu terei de deixar para outra ocasião: contestei a associação entre soberania de Deus e determinismo, mas não me aprofundei na explicação dos problemas envolvidos nisso, e tampouco expus o que julgo a solução para a dificuldade. Tanto o próprio Dr. Myatt quanto outros leitores, em especial Osmar Neves e Roberto Vargas, me cobraram isso, e com razão. Mas eu não tinha, na época, clareza suficiente para explicar bem as intuições que tinha na cabeça. O Roberto, em especial, vinha cobrando isso há mais tempo, e com especial interesse, tendo chegado a dizer ao Dr. Myatt na caixa de comentários: "De resto, também gostaria de algo mais propositivo do André, embora já saiba que não era o objetivo do texto. Quem sabe estas questões nos premiem com algo neste sentido." Infelizmente, sua expectativa não se concretizou na época. A boa notícia é que já comecei a escrever sobre isso, e devo publicar o resultado nos próximos tempos. A má notícia é que será uma dissertação longa, de modo que prefiro abordá-la à parte e reservar a presente discussão para o outro desenvolvimento, que é mais curto e ligado mais diretamente ao livro de Wright.

Com base em sua amizade pessoal de várias décadas com Wright, o Dr. Myatt me garantiu que ele cria na existência de "mistérios na Bíblia que a mente humana não consegue entender", de modo que minha constatação de certo grau de racionalismo em sua cosmovisão só poderia se dever, de acordo com o Dr. Myatt, a um erro interpretativo meu. Ele diz ainda que Wright era um vantiliano e que sua visão do determinismo está de acordo com a de Cornelius Van Til, pela qual "o homem que defende a autonomia da vontade está sempre alternando entre o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado, dentro de uma contradição inevitável" (editei a frase para torná-la mais clara, dada a familiaridade incompleta do Dr. Myatt com nosso idioma). Quanto ao primeiro ponto, limitei-me na época a comentar o seguinte, dirigindo-me ao Dr. Myatt:

"Fico feliz em saber que Wright e o sr. mesmo creem em mistérios. Contudo, não há nenhuma evidência disso em A soberania banida: há ali, ao contrário, um constante tom de condenação aos que creem nessas coisas. Ele chega até a dizer que a apologética cristã é enfraquecida por admissões desse tipo. Então, ou Wright se expressou mal nisso também, ou há alguma outra coisa que não estou captando, e que o sr. poderá explicar se quiser. Só posso julgar o livro pelo que nele está escrito, e o livro é racionalista."

Embora o Dr. Myatt não tenha feito nenhum outro esforço de me convencer de sua tese, não deixei de anotar mentalmente a tarefa de reler o livro para verificar se minha interpretação havia de fato sido a melhor possível. Fiz essa releitura há alguns meses, embora não só por esse motivo, e estou aqui para apresentar os resultados. Seguem algumas de suas afirmações.

Na página 32, sobre os rumos históricos da teologia arminiana influenciada pelo iluminismo: "Um desenvolvimento interno do arminianismo original deve ser observado aqui. Os teólogos arminianos logo perceberam que o livre-arbítrio era não apenas incompatível com a onipotência da soberania divina como também com a onisciência de Deus. [...] Assim, eles seguiram os socinianos e rejeitaram a onisciência de Deus. [...] Os arminianos que eram menos preocupados com consistência simplesmente apelaram para um 'mistério' para sustentar a ideia do livre-arbítrio e a onisciência de Deus vivendo em tensão."

Na página 55, criticando William Shedd (critiquei essa crítica na quarta parte da série em 2011): "Shedd é um dos calvinistas típicos que sustentam uma boa visão da soberania de Deus, mas não querem abandonar algo do livre-arbítrio que torna, em última instância, o pensamento deles indistinguível do indeterminismo arminiano. Eles podem tentar encobrir suas ideias com palavras como mistério, paradoxo ou antinomia, mas, no final das contas, uma contradição permanece."

Na página 74, aprovando a seguinte afirmação de Leslie Stevenson sobre a relação entre a soberania e a liberdade humana: "a coisa padrão a dizer, naturalmente, é que esses são 'mistérios' em vez de 'contradições', que a razão humana não pode esperar ser capaz de entender os mistérios infinitos de Deus, que nós somente cremos no que Deus tem revelado de si mesmo a nós. Mas o problema com esse tipo de afirmação é que ela pode atrair somente aqueles já dispostos a crer, [e] pode não fazer nada para responder às genuínas dificuldades conceituais do cético."

Nas páginas 114 e 115, ao criticar o "sincretismo da graça com a capacidade humana" dos arminianos: "A façanha original do pensamento sincretista é uma teologia mista que incorpora posições incompatíveis. Pressuposições contraditórias são sustentadas arbitrariamente juntas sob a alegação de equilíbrio. O incrédulo reconhece imediatamente essa atitude como autocontraditória. [...] Então, para proteger essas contradições internas de um exame mais minucioso, fazem regularmente apelos para termos como mistério, paradoxo ou antinomia. Porém, há um preço a pagar por esse passo: se nós, crentes, podemos nos contradizer, assim também pode o incrédulo, e todo o empreendimento apologético é negado prontamente. Nenhuma defesa posterior racional de qualquer coisa é possível, seja do arminianismo ou do próprio evangelho."

Na página 180, ao criticar a exegese arminiana de alguns versículos bíblicos: "Quando não tentam ser lógicos, [os arminianos] não possuem qualquer reivindicação da mente ou da consciência. O ilógico rapidamente se reduz ao ininteligível, e chamá-lo de 'mistério' não resolve o problema."

Na página 205, sobre o problema do mal e questões filosóficas relacionadas: "Essa é a razão principal pela qual as respostas dos não-cristãos para o problema do Uno e do Múltiplo são inaceitáveis: elas somente parecem funcionar se aceitamos de bom grado sustentar as contradições em tensão e apelar para o mistério."

E, finalmente, na página 235, na conclusão do livro: "Já examinamos a influência da teoria do livre-arbítrio no pensamento evangélico, nas diversas áreas. Eu já procurei mostrar, de um panorama histórico, depois diretamente da Escritura, e então por meio de uma crítica dos frutos do libertarismo na teologia e na apologética, que essa teoria é realmente uma combinação desastrosa das suposições cristãs e das não-cristãs a respeito de Deus e da natureza humana, uma tensão sustentada por um sincretismo humanista instável. Isso somente incentiva os cristãos a repetirem o antigo dilema de jogar a unidade da lógica contra a descontinuidade do acaso, enquanto encobrem as suas autocontradições com um apelo ao paradoxo e ao mistério."

Essas sete citações esgotam, salvo engano, as referências do livro à crença na presença de mistérios acima da compreensão humana na revelação bíblica. Lendo-as com atenção, ou mesmo sem muita atenção, é fácil constatar que essas referências são todas negativas: para Wright, a afirmação de que algo é um mistério é um subterfúgio - se não desonesto, ao menos um tanto covarde - para não reconhecer uma simples contradição lógica fatal à nossa cosmovisão ou sistema teológico. Para ele, esse subterfúgio é característico de incrédulos e de cristãos adeptos do arminianismo, mas o calvinista consistente não tem motivos para recorrer a tal expediente - ao que parece, porque não há nenhuma obscuridade na teologia calvinista, ao menos nos temas em que há desacordo entre calvinistas e arminianos. Além disso, para Wright, o reconhecimento da existência de mistérios (ou paradoxos, ou antinomias) é fatal para a apologética cristã, pois reduz a credibilidade da doutrina bíblica aos olhos do incrédulo e lhe dá o direito de usar o mesmo artifício. Não se concebe uma função para o mistério que não seja puramente defensiva e estraga-prazeres.

Por tudo isso, a releitura do livro me convenceu de que minha primeira leitura não havia sido assim tão má. Continuo convencido de que, se o autor acreditava em mistérios, tal fato não teve efeito nenhum sobre essa obra. Não pretendo, é claro, colocar em dúvida a veracidade do testemunho pessoal do Dr. Myatt com base nisso. Apenas creio que há uma contradição fundamental entre a crença de Wright em mistérios e o modo pelo qual ele lidou com esse conceito em sua crítica do arminianismo. Como já afirmei anteriormente (não lembro exatamente onde), quando me refiro a algum irmão como racionalista, não pretendo afirmar que ele leve seu racionalismo às últimas consequências, pois ele teria deixado de ser cristão muito antes de conseguir isso.

No contexto dos debates intramuros do calvinismo (e do cristianismo em geral), creio que minha melhor explicação do que entendo por racionalismo foi dada na terceira parte de minha série O irracional dos racionalismos. Remeto o leitor a esse texto porque não vejo proveito em explicar tudo de novo aqui. Mas acho importante levantar essa questão porque desejo evitar a impressão de que, para mim, acreditar em mistérios é suficiente para que alguém receba um certificado de não-adesão ao racionalismo. Se dei ênfase à questão do mistério na presente postagem, é porque foi esse o principal ponto levantado pelo Dr. Myatt para demonstrar a infelicidade de minha primeira leitura de A soberania banida.

Porém, há outros vestígios de racionalismo na obra, que convém citar de passagem. Por exemplo, as asseverações de Wright sobre o perigo da admissão de mistérios para a apologética se baseiam no pressuposto de que a coerência lógica estabelecida por meio da razão analítica e teórica é o único critério pelo qual o cristianismo pode ser justificado e a cosmovisão do incrédulo pode ser denunciada como falsa. Essa ideia, se levada às últimas consequências, devolveria à razão humana a autonomia rejeitada por Van Til e desconsideraria os efeitos noéticos da queda, bem como a própria depravação total. Falei mais sobre isso na quarta postagem da série O direito ao mistério.

Vejo tendência semelhante na seguinte declaração de Wright (página 14): "Desde que obedeçamos às regras da lógica, as nossas pressuposições controlam todo o nosso pensamento". A restrição feita é não só desnecessária, mas enganosa, na medida em que reduz os pressupostos ao papel de meras premissas em um silogismo do qual nossa cosmovisão inteira seria dedutível. Essa é uma construção artificial que não faz justiça ao papel das pressuposições em uma cosmovisão, como Frame ressaltou muito bem no livro Apologética para a glória de Deus, e tampouco se coaduna com a afirmação de Van Til sobre a coexistência do racionalismo e do irracionalismo na cosmovisão do incrédulo.

Citei Van Til duas vezes nos últimos parágrafos. No próximo post concluirei meus complementos fazendo uma breve comparação entre os posicionamentos do holandês e os de McGregor Wright com relação ao tema do determinismo.

1 de maio de 2014

Sobre critérios e limites

Várias pessoas já me perguntaram o que penso do trabalho de William Lane Craig e de seu método apologético. A resenha abaixo responde em parte a essa pergunta. Escrevi-a quando ainda residia em Fortaleza, e ela foi publicada na revista Fides Reformata no segundo semestre de 2012 (volume XVII, número 2, p. 129-132). Pesam sobre ela algumas limitações, decorrentes sobretudo da limitação de espaço, uma exigência da revista que trouxe, por outro lado, a vantagem de me obrigar a colocar de lado minha costumeira prolixidade e ir direto ao que interessa.

Essa resenha não existiria sem o meu amigo Yago Martins. Foi ele quem me convenceu de que eu devia ler o livro, e para isso me emprestou seu exemplar. Meses mais tarde, ele me emprestou o livro de novo, para que eu pudesse escrever a resenha. Fica aqui registrada, portanto, minha dupla gratidão.

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CRAIG, William Lane. Em guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão. São Paulo: Vida Nova, 2011. 317 pp.

William Lane Craig é um dos mais famosos defensores da fé cristã vivos. Seus dois doutorados – em filosofia e teologia, sob a orientação de John Hick e Wolfhart Pannenberg, respectivamente – foram voltados para a apologética, sua paixão e vocação. Nessa obra, Craig fala ao cristão que busca se comunicar com incrédulos ou fortalecer a própria fé contra as tentações do intelecto. O tom é simples e didático, podendo ser digerido pelo leitor atento mesmo quando trata dos temas mais difíceis.

Os capítulos iniciais são introdutórios, explicando a natureza (cap. 1) e importância (cap. 2) da apologética. Os seguintes trazem argumentos em favor da existência de Deus. Dois são cosmológicos: o de Leibniz (cap. 3) e o kalam (cap. 4), baseado nas obras de Abû Al-Ghazâlî e Stuart Hackett. Seguem-se o argumento do ajuste fino das constantes físicas fundamentais à existência de vida (cap. 5) e o argumento moral (cap. 6). O sétimo lida com a objeção posta pelo sofrimento. Os capítulos finais tratam de Jesus: dois defendem a historicidade de sua declaração de divindade (cap. 8) e de sua ressurreição corpórea (cap. 9), e o último defende Cristo como único caminho para Deus (cap. 10).

A descrição da estrutura do livro mostra que Craig segue o método da “apologética clássica”, que busca estabelecer primeiro o teísmo em geral e só depois o cristianismo[1]. Em minha opinião, os argumentos mais sólidos são levantados nos capítulos 3 a 5. O argumento moral de Craig é menos persuasivo que o de C. S. Lewis[2]. O capítulo 8 é o menos didático, podendo soar algo obscuro ao leitor pouco familiarizado com debates sobre a historicidade dos evangelhos. E o capítulo 10 não chega a arranhar as formas mais sofisticadas de pluralismo.

O método de Craig consiste em buscar premissas aceitáveis igualmente ao cristão e ao incrédulo e extrair daí conclusões favoráveis ao cristianismo, de modo estritamente silogístico: “argumentar é apenas apresentar uma série de enunciados ou premissas que levem a uma conclusão. E isso é tudo” (p. 14). Essa via leva naturalmente à busca de atalhos que minimizem a quantidade dessas premissas e simplifiquem o trajeto até a conclusão. E tal minimalismo leva à necessidade de não discutir o que não é essencial à linha argumentativa escolhida; assim, o apologeta é levado a fazer concessões estratégicas à cosmovisão do incrédulo.

Os resultados de tais concessões formam um padrão notável em todo o livro. Ao defender que Jesus declarou ser Deus, Craig admite a teoria liberal-secular sobre a formação dos evangelhos e constrói seu argumento usando apenas as perícopes “unanimemente” tidas como autênticas. Ao fortalecer o kalam, ele endossa a autoridade da ciência moderna como palavra final sobre as origens do mundo físico. E, ao defender a justiça da condenação ao inferno, concede que nenhum pecado é grave o bastante para requerer uma punição perpétua, que ele justifica por outros meios. Assim, de concessão em concessão, Craig desperdiça a chance de expor a cosmovisão cristã de modo consistente, profundo e íntegro.

Não há problema em adotar provisoriamente os pressupostos do incrédulo para fins de discussão, em especial para revelar a inconsistência interna de sua cosmovisão. Francis Schaeffer fazia isso com muita propriedade[3]. Craig revela certa influência schaefferiana, mas restringe o alcance da apologética ao fazer dessa abordagem o método por excelência. Dentre as manifestações deletérias dessa restrição, nenhuma é tão severa quanto a desconsideração do aspecto espiritual que há em toda rejeição intelectual do Evangelho. Afinal, a escolha de um punhado de premissas comuns como ponto de partida só faz sentido se não houver nada de errado nelas, ou por trás delas. Mas por trás de um cérebro incrédulo há sempre um coração rebelde contra o Criador e apegado a uma ilusão de inocência. Craig não ignora isso, mas sua percepção do fato não tem grande efeito sobre seu método, que trata o problema como primariamente cognitivo ou, quando muito, emocional. Sua apologética se propõe a desfazer mal-entendidos, e não a remover pretextos, denunciar ídolos e convocar rebeldes ao arrependimento.

Isso se manifesta com especial clareza no capítulo sobre o problema do sofrimento. Craig levanta toda sorte de explicações: Deus não pode violar a liberdade humana; um mundo sem sofrimento talvez não fosse melhor; o bem disponível é incomparavelmente superior; Deus se importa e sofre conosco. Mas não diz a verdade que leva diretamente ao cerne do Evangelho: o sofrimento brota da depravação do coração rebelde contra Deus[4]. O incrédulo, nesse capítulo, é apenas alguém que tem direito a explicações pelo sofrimento que lhe impuseram. E Craig age como bom advogado, esforçando-se por mostrar que seu cliente foi posto no banco dos réus por engano, não merecendo estar ali porque fez o melhor que pôde para evitar nosso sofrimento. Ele não dá sinais de notar que há algo muito perverso na pretensão de julgar a correção moral do decreto divino. Como é dito no fim, “o verdadeiro problema” do sofrimento é apenas de ordem emocional (p. 189).

Depreende-se daí que a premissa basilar do método de Craig é a boa fé do incrédulo, em oposição à doutrina bíblica e reformada da depravação total, repudiada por ele juntamente com a absoluta soberania de Deus. A apologética de Craig é criticável em muitos pontos, mas não é incoerente com sua teologia, arminiana com dois ou três passos na direção do teísmo aberto. O problema da apologética de Craig é, pois, teológico, já que sua teologia gera uma antropologia que, eivada de concessões ao humanismo, minimiza os efeitos da queda.

O que impede Craig de confrontar os pressupostos do incrédulo é o fato de ele próprio compartilhar deles em certa medida. Decorre daí a relativa superficialidade de sua argumentação e de suas metas. Se a função da apologética fosse mostrar a veracidade do cristianismo ao incrédulo segundo os critérios dele próprio, jamais seria possível desafiar esses mesmos critérios e expor a cosmovisão cristã de modo contundente. O apologeta se perderia então no esforço colossal de descer ao nível do interlocutor, reduzindo o cristianismo até que coubesse nos padrões pré-definidos pela mente não-regenerada. Levado às últimas consequências, tal método desfaria o próprio escândalo da cruz para provar que nossa fé é muito razoável segundo critérios “neutros” e “objetivos”. Mas então a apologética já teria se tornado muito mais islâmica que cristã. Qualquer método que apela a alguma faculdade humana (razão, inteligência, intuição, sentimento etc.) ou disciplina científica (física, biologia, história, ontologia etc.) como árbitro soberano está apenas se recusando a remover um ídolo.

A despeito dessas severas limitações, o livro possui várias qualidades notáveis que tornam sua leitura proveitosa. É justo dizer, parafraseando Cornelius Van Til, que Craig é muito mais virtuoso que sua teologia, e devemos aprender com ele a não ser menos virtuosos que a nossa[5]. Transparece na obra seu amor por Cristo e pelo Reino, sua humilde alegria em tomar parte no que é, a despeito da sofisticação, um ministério de pregação do Evangelho e auxílio aos santos. Craig não ignora a importância do amor e da mansidão na apologética, e é notório que o livro foi escrito com profundo zelo professoral e compaixão, pelos leitores cristãos e pelos incrédulos que, através deles, ouvirão a mensagem da salvação.

É louvável também a presença da pessoalidade na obra. Craig sabe que a pessoa toda deve se envolver no ato da apologética. Entre as partes mais interessantes estão o relato de sua conversão e dois interlúdios intitulados “A jornada de fé de um filósofo”, que narram seu encontro com a apologética e o modo pelo qual Deus lhe abriu caminho para os estudos e a carreira de defesa da fé. Fica patente a ação soberana da Providência, que levantou e tem usado esse servo para manifestar a glória de Cristo.

As evidências discutidas no livro podem e devem ser aproveitadas como ferramentas apologéticas úteis em determinados contextos. As verdades ali expostas podem ser absorvidas por um programa apologético mais bíblico, abrindo espaço para um confronto intelectual e moral que o Espírito pode usar para convencer o incrédulo de seu pecado. E o valor dado por Craig ao rigor, à clareza e à leveza da argumentação constituem lições valiosas transmitidas ao leitor, menos pela teoria que pelo exemplo.

Em guarda pode ser instrutivo para cristãos que vivem dúvidas intelectuais honestas ou não têm a necessária maturidade para anunciar a mensagem da cruz com rigor intelectual e compaixão. O leitor, seja jovem, pastor, líder ou educador, pode ser levado por essa leitura a um contato salutar com novos conhecimentos e à expansão de seus interesses.

As limitações apontadas aqui não devem, pois, ser tomadas como sinais da inutilidade do livro ou de propostas apologéticas similares. Ao contrário, o leitor que tiver consciência dessas limitações poderá aproveitar muito melhor seus vários pontos positivos. Não devemos desconsiderar que, a despeito delas, Craig tem desempenhado um ministério bem-sucedido na conversão de incrédulos e no aprimoramento intelectual dos santos, para a glória de Deus. Admitir isso não é fazer concessão ao pragmatismo ou minimizar a importância dos erros expostos, mas sim apontar um motivo de encorajamento para todos nós: tal fato demonstra que, na manifestação do poder salvador e santificador, Deus não se deixa limitar pelas limitações de seus filhos.


[1] GEISLER, Norman, Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002, p. 61-64 e 182-184.
[2] LEWIS, Clive Staples, Cristianismo puro e simples. 5ª ed. São Paulo: ABU, 1997, p. 1-18.
[3] SCHAEFFER, Francis August, O Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[4] Na verdade, em meio às 32 páginas do capítulo há meia página sobre nosso “estado de rebelião contra Deus” (p. 184), mas esse ponto é mencionado de passagem apenas para descrever a explicação cristã para o sofrimento, sem o intuito de desafiar a rebeldia de quem quer que seja.
[5] “Muitos arminianos são muito mais virtuosos que suas teorias. [...] E aqui é necessário confessar que [nós, reformados], muito frequentemente, somos menos virtuosos do que nossa posição.” (VAN TIL, Cornelius, Apologética cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 142-143). Cf. a resenha de José Carlos Piacente Júnior em Fides Reformata, v. XVII, n. 1, 2012, p. 105-109.

6 de abril de 2014

Esperança milenar - parte 4



2.8. Transcendência

Embora Clarke fosse agnóstico, materialista, humanista e antirreligioso, sua obra denuncia em vários pontos a presença daquilo que Dooyeweerd chama de “motivação religiosa fundamental do coração”[1], bem como de sentimentos religiosos, embora não reconhecidos como tais nem dirigidos ao Deus verdadeiro. Esse aspecto será explorado na presente seção, tendo como ponto de partida a seguinte declaração de Clarke:

Se me pudessem ser concedidos três desejos, eles seriam: 1) paz no Sri Lanka – e no mundo todo, se não fosse pedir demais; 2) os primeiros protótipos comerciais de dispositivos geradores de energia limpa e praticamente infinita, que encerrariam a era do combustível fóssil; 3) a prova de vida em outro lugar – de preferência inteligente, embora eu me satisfaça com qualquer coisa capaz de juntar algumas células.[2]

Enquanto os dois primeiros desejos dizem respeito ao bem da humanidade, o último não necessariamente traria algum benefício prático a quem quer que fosse. Pensando na quantidade e variedade de coisas que Clarke poderia ter desejado em vez disso, fica claro que a vida extraterrestre possui um papel especial em sua cosmovisão. Evidências mais fortes disso podem ser encontradas em outras declarações suas. Por exemplo, quando lhe foi perguntado qual era, para ele, o “maior mistério”, sua resposta foi: “Oh, ETs. Você não consegue imaginar nada maior nem mais importante que isso, consegue?” Nessa ocasião, Clarke declarou não saber se existe ou não vida inteligente em outros mundos: “Se de fato estivermos sozinhos, significa que somos não só os herdeiros do cosmos, mas também seus guardiões, o que é um pensamento portentoso”[3]. Mais tarde, porém, ele se convenceu completamente: “Bem, é claro que não há nenhuma evidência. Mas parece incrível sugerir que nesse universo enorme nós somos a única forma de vida inteligente”[4]. E, ao ser indagado sobre o que gostaria de ver antes de morrer, sua resposta foi: “A primeira coisa, é claro, é a descoberta de vida inteligente no espaço exterior. Acho improvável que isso aconteça durante a minha vida, mas tenho certeza de que um dia será alcançado”[5].

Podemos resumir o conteúdo dessas declarações dizendo que os ETs inteligentes ocupavam, para Clarke, a função de “maior mistério”, o maior e mais importante fato a ser descoberto; que ele, a despeito de seu propalado ceticismo, dispunha-se a crer neles sem qualquer evidência; e que o surgimento de tal evidência era o que ele mais queria ver em vida.

Nesse campo, dentre vários outros, a cosmovisão de Clarke é muito semelhante à do astrônomo Carl Sagan (1934-1996), de quem foi amigo pessoal. Sagan foi o criador do projeto SETI (Search for Extra-Terrestrial Intelligence [Busca por Inteligência Extraterrestre]), destinado a procurar sinais de inteligência nas ondas eletromagnéticas vindas do espaço. Seu livro O mundo assombrado pelos demônios[6], além de conter uma defesa desse projeto, dedica-se a promover o ceticismo cientificista e criticar a “superstição” e a “pseudociência”, representadas na fé religiosa em geral e na crença em fenômenos paranormais, mediúnicos e ligados às diversas modalidades de esoterismo. Boa parte do livro é dedicada à crítica dos fenômenos ufológicos, abduções e relatos semelhantes, tidos como mais uma “superstição” – e, portanto, aparentados às crenças religiosas irracionais que o cético deve rejeitar.

Entretanto, embora admitindo que não há evidência conclusiva da existência de alienígenas inteligentes, Sagan julgava seguro crer na existência de tais seres com base em razões que lhe pareciam estritamente científicas, e não religiosas (pois a religião é, para ele e Clarke, o terreno da irracionalidade por excelência). Clarke concordava com tudo isso, e declarou, nas páginas finais de 3001, que a leitura desse livro deveria ser obrigatória nos colégios e faculdades (p. 262). Quando lhe perguntaram o que achava dos relatos de abduções, sua resposta foi: “Um lixo delirante total! Temo que haja um monte de homens e mulheres malucos andando por aí”[7]. E, de fato, o século XXXI via esses relatos como efeitos de doença mental (p. 113-4), em pé de igualdade com o “fanatismo religioso”.

Curiosamente, outro livro de Sagan, o romance Contato, de 1985[8], traz notáveis afinidades com a tetralogia de Clarke. Também ali os extraterrestres que fazem contato com a humanidade são muito avançados tecnologicamente (e moralmente), e as questões acerca deles e de sua influência sobre nós adquirem contornos claramente religiosos. Há também semelhança na ontologia materialista por trás de ambas as obras. Os alienígenas de Sagan são, porém, menos intervencionistas que os de Clarke, pois não tiveram participação na criação da humanidade, e tampouco manifestaram intenção de intervir em seu futuro.

Não foi por acaso que me referi aos Primogênitos de Clarke como deuses. Eles agiram como um demiurgo grego ao tomar parte na criação da espécie humana, fiéis ao objetivo de promover o surgimento de vida inteligente em toda a galáxia. Clarke percebeu bem cedo o fundo religioso dessa ideia; enquanto escrevia 2001 e discutia com Kubrick o roteiro do filme, ele registrou em seu diário (18/11/1965) a impressão causada por um filme que assistiu: “Um verso me atingiu de modo especial – o uso da frase ‘Deus fez o homem à sua própria imagem’. Esse, afinal,é o tema do nosso filme”[9].

Posteriormente, os Primogênitos decidem destruir a humanidade com base em uma reprovação moral, baseando-se em informações colhidas no século XXI. As providências para a execução desse juízo final chegaram no século XXXI e foram sabotadas com a ajuda de David Bowman, convertido pelos Primogênitos em um ser semelhante a eles (ou seja, de pura energia) em 2001. Embora a ameaça imediata tenha sido superada, porém, é de se esperar uma retaliação nos próximos séculos, e o livro termina com essa expectativa. Mas o leitor é informado sobre a decisão dos Primogênitos no epílogo do livro. Eles dizem: “O pequeno universo deles é muito jovem, e seu deus ainda é uma criança. Mas ainda é cedo demais para julgá-los. Quando retornarmos, nos Últimos Dias, Nós veremos o que deve ser salvo” (p. 247). O tom, a linguagem e o conteúdo são claramente escatológicos, e muitos paralelos com a teologia bíblica poderiam ser extraídos dessas poucas palavras.

Apesar disso, os Primogênitos têm menos em comum com o Deus das Escrituras que com as divindades do paganismo greco-romano: são múltiplos, tiveram sua origem dentro do mundo e a partir de matéria preexistente e são limitados em seus poderes e valores morais; gerenciam parte do que acontece no universo, mas não podem ocupar o papel de Absoluto em nenhum sentido admissível do termo.

Não devemos, é claro, tratar do tema como se o autor acreditasse de fato nos alienígenas que inventou. A questão diz respeito à estrutura de plausibilidade da cosmovisão do autor, e ganha ainda mais peso diante da já apontada semelhança com a ficção de Carl Sagan: existe uma afinidade profunda entre o velho paganismo politeísta e o novo racionalismo cientificista. Essa conexão também não é casual: no período moderno, a crença em habitantes do espaço sideral ganhou força primeiro, historicamente, entre os círculos influenciados pelo reavivamento do paganismo trazido pelo Renascimento[10].

Tanto no esoterismo ufológico barato quanto no refinado ceticismo científico, os alienígenas ocupam o espaço que antigamente era atribuído aos deuses. A diferença específica do cético materialista é que ele só se sente autorizado a crer no que lhe parece cientificamente bem fundamentado, e é por isso que a afinidade citada se torna mais facilmente detectável nos momentos (relativamente raros) em que ele se sente autorizado a dar asas à imaginação – por exemplo, em uma obra de ficção científica. O materialista moderno, pois, diferencia-se do pagão antigo por uma subtração, e não por um acréscimo: talvez seja lícito descrevê-lo como um pagão que tem restringida a faculdade da imaginação.

2.9. Deus

Deixando de lado as ideias da criação do homem à imagem de Deus e do juízo final sobre a humanidade, grotescamente parodiadas na tetralogia pelas ações dos Primogênitos, há em 3001 dois momentos que revelam uma percepção particularmente lúcida do Deus verdadeiro – aquilo que João Calvino chamou de sensus divinitatis[11]. Ambos apontam para a percepção da sabedoria e majestade manifestas na criação, em contraste com as quais se revelam pífias as realizações humanas. Será transcrito aqui um desses momentos, que revela essa percepção com especial intensidade. Poole deixava nosso planeta pela primeira vez desde que fora trazido inconsciente do espaço. No século XXXI, existe uma enorme construção humana chamada Cidade Estelar, uma estrutura anelar que circunda todo o planeta. O narrador diz (p. 102):

Quando eles estavam a cinquenta mil quilômetros de altitude, ele estava prestes a ver toda a Cidade Estelar, como uma estreita elipse rodeando a Terra. Embora o lado distante estivesse quase invisível, um fio de cabelo de luz contra as estrelas, inspirava reverência o pensamento de que a raça humana tinha agora estabelecido esse sinal nos céus.

Então Poole se lembrou dos anéis de Saturno, infinitamente mais gloriosos. Os engenheiros astronáuticos ainda tinham um caminho muito, muito longo a percorrer até serem capazes de igualar as realizações da Natureza.

Ou, se essa era a palavra correta, Deus.

Esse trecho ilustra bem a afirmação de Clarke de que “Nenhuma pessoa inteligente pode contemplar o céu noturno sem um senso de reverência”[12]. Isso foi o mais perto que ele conseguiu chegar do reconhecimento de que “Os céus proclamam a glória de Deus” (Salmo 19.1).

No entanto, visto que o reconhecimento dos atributos de Deus na natureza torna o homem indesculpável (Romanos 1.20), o coração humano busca fugir das implicações dessa revelação. Assim, Clarke cindiu Deus em dois conceitos, o Criador e o Juiz, e concedeu a “possibilidade” de existência apenas ao primeiro, considerado “um personagem muito mais interessante”[13]. O capítulo final de 3001 permite entrever a decisão pessoal de Clarke ao revelar um dos últimos pensamentos de Poole, depois que havia passado a ameaça do fim imediato da humanidade. Ninguém sabia qual seria a próxima atitude dos Primogênitos, mas Poole decidiu apenas não lhes dar mais atenção: “Quaisquer que fossem os poderes divinos emboscados além das estrelas, Poole lembrou a si mesmo, para os seres humanos ordinários só duas coisas eram importantes: o Amor e a Morte” (p. 245-246).

Dado o anseio de Clarke por encontrar seres inteligentes no espaço, é deveras revelador que seu personagem tenha tomado essa rota de fuga quando esses seres se mostraram hostis em um sentido escatológico. É fácil ver nisso um paralelo com a decisão do coração de Clarke quanto ao Deus verdadeiro: torcer para que o Último Dia seja apenas uma lenda e, com base nisso, aproveitar da melhor maneira possível o que a vida presente oferece de bom, encarando de modo realista e conformado a dose inevitável de mal. Esse triste compromisso fundamental se espraia para toda a cosmovisão de Clarke: sociedade, ciência, tecnologia, progresso, prazer... Tudo é posto a serviço de uma vã esperança de um dia vencer o mal e a morte pelas próprias forças, prescindindo da cruz de Cristo.

3. Considerações finais

A título de conclusão, convém sintetizar o que foi exposto à luz da chave de compreensão proposta por Dooyeweerd[14] com base no motivo bíblico criação-queda-redenção. 3001 possui momentos de verdade em todas as três áreas. A cosmovisão do autor comporta percepções corretas sobre os seguintes pontos: a manifestação dos atributos de Deus na natureza (criação); a depravação moral do homem e a fragilidade de sua condição no mundo presente (queda); a necessidade de superar o presente estado de coisas e o papel do homem como guardião e mestre sobre a natureza (redenção).

Entretanto, o direcionamento dado pela cosmovisão de Clarke traz uma distorção humanista fundamental nos três aspectos. No campo da criação, Clarke não apenas nega a evidência que aponta para Deus como Criador, reduzindo-a (na melhor das hipóteses) à função de uma distante causa primeira e negando a divina providência, mas também, em decorrência disso, possui uma visão reducionista do significado das coisas criadas, inclusive do próprio homem. Quanto à queda, ele não só assume a normalidade do cosmos atual, mas também minimiza a extensão e a profundidade da perversão do coração humano. É apenas graças a isso que ele consegue, ainda que de modo inconsistente, se satisfazer com uma esperança de progresso que está muito aquém da radicalidade da redenção que encontramos em Cristo, mas que tem a vantagem (do ponto de vista humanista) de tornar dispensável a intervenção divina.

Toda a cosmovisão de Clarke se orienta em oposição ao Deus verdadeiro e destina-se a mantê-lo afastado, em especial pela consciência – não passível de supressão completa – de que a ação redentora de Deus traz como corolário a condenação dos que se obstinam na rebeldia contra ele.


[1] KALSBEEK, L. Contours of a Christian Philosophy: an Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought. Toronto: Wedge, 1975.
[2] COKER III, John L. A Visit with Arthur C. Clarke. Oakland, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 14 de junho de 2012.
[3] GREENWALD, Jeff. Arthur C. Clarke on Life. San Francisco, 1993. Disponível aqui. Acesso em: 6 de junho de 2012.
[4] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[5] RATNATUNGA, Kavan. 60th Anniversary of Clarke’s Communication Satellite Idea. Colombo, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 29 de junho de 2012.
[6] SAGAN, Carl Edward. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[7] SCIFI.COM. Arthur C. Clarke and Gentry Lee Online Chat. Nova York, 1996. Disponível aqui. Acesso em: 11 de junho de 2012.
[8] SAGAN, Carl Edward. Contato: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[9] CLARKE, Arthur Charles. Arthur Clarke’s 2001 Diary (excerpt). Nova York, 1972. Disponível aqui. Acesso em: 5 de junho de 2012.
[10] KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Edusp, 1979.
[11] CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, v. 1, 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
[12] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[13] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[14] WOLTERS, Albert. Criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.