28 de fevereiro de 2014

Esperança milenar - parte 1



Em abril de 2012, durante minhas férias, cursei com a Norma, na qualidade de aluno ouvinte, a disciplina Cosmovisão Reformada, oferecida pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Era parte de meu compromisso como aluno elaborar uma análise de um filme ou obra literária usando as ferramentas que aprendi no curso, baseadas sobretudo na antropologia filosófica de Herman Dooyeweerd. Escolhi a obra 3001: a odisseia final, de Arthur Clarke, fiz o trabalho e o entreguei, se bem me lembro, em agosto do mesmo ano.

A partir de hoje, e continuando nas próximas três postagens, publicarei esse trabalho, cujo título original era 3001: a odisseia final - uma análise crítica teorreferente. O trabalho não ficou tão bom quanto poderia, sobretudo por causa da limitação de espaço; eu sou prolixo demais para dizer o que quer que seja com propriedade em um espaço curto. Mas preferi manter o texto como estava, exceto por ter traduzido as citações, que foram feitas do inglês e incluem as da própria obra sob análise. A edição que usei, e à qual farei referências o tempo todo, é a da Ballantine Books (Nova York, 1996).

Li esse livro pela primeira vez em 2005, graças à indicação de Daniel Souza, colega de faculdade e grande amigo que agora é também um irmão em Cristo. Registro, portanto, minha gratidão a ele.

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1. Introdução

1.1. Objetivo

Este trabalho apresenta uma análise crítica de alguns aspectos relevantes do livro 3001: a odisseia final, de Arthur Clarke, a partir de uma perspectiva filosófica biblicamente orientada.

1.2. O autor

O inglês Arthur Charles Clarke (1917-2008) foi provavelmente o melhor e mais prolífico escritor de ficção científica do século XX, tendo publicado 51 livros desse teor, além de 45 obras não-ficcionais e muitos contos e ensaios. A tecnologia, seus fundamentos e seus usos sempre estiveram no centro de suas atenções, e ele próprio deu algumas contribuições para seu desenvolvimento, sendo a mais notável delas o conceito de órbitas geoestacionárias, que possibilitou a invenção dos satélites de telecomunicações.

Clarke defendia o agnosticismo e o ceticismo cientificista, e sua cosmovisão era dominada pelo materialismo. Em muitos aspectos, embora não em todos, ele se afinava ao racionalismo típico da subcultura das ciências exatas, que ainda resiste em parte ao avanço da pós-modernidade nas universidades. Embora nutrisse certa simpatia pelo budismo, desprezava as religiões em geral e tinha um ódio especialmente intenso pelo cristianismo. Seu interesse em ciências humanas era amplo, mas pouco profundo, e a superficialidade de seus conhecimentos nessa área pode ser percebida com facilidade.

Além de suas atividades como escritor, Clarke também se envolveu na fundação de vários centros de pesquisa tecnológica, apoiou associações ligadas a astronomia e proteção dos animais, colaborou para o desenvolvimento da indústria no Sri Lanka (onde residiu desde 1956 até sua morte) e foi membro da Academia Internacional de Humanismo.

1.3. A obra

2001: uma odisseia no espaço é a obra mais famosa de Clarke, em virtude de sua relação com o filme homônimo de Stanley Kubrick. Clarke e Kubrick trabalharam em estreita colaboração, produzindo simultaneamente o livro e filme, ambos os quais foram lançados em 1968. O livro teve uma continuação em 1982, com 2010: uma odisseia no espaço II, seguida por 2061: uma odisseia no espaço III, publicado em 1985. O autor tinha 78 anos em 1996, quando escreveu 3001, o volume final da tetralogia.

Não pretendo fazer aqui uma análise literária do livro, e tampouco descrevê-lo além do necessário para o entendimento deste trabalho por parte de quem não o leu; para tanto, bastam algumas observações gerais sobre as características da obra e seu enredo. Descrições mais pontuais serão dadas adiante, na medida em que forem necessárias.

O protagonista da história é o astronauta Frank Poole, personagem que fora dado como morto no espaço em 2001, mas que é resgatado e reabilitado mil anos depois. É da perspectiva dele que é narrado quase tudo o que se passa. Naturalmente, em mil anos muitas coisas terão mudado dos pontos de vista tecnológico, político, cultural, linguístico e outros, de modo que boa parte do trabalho do autor consiste em descrever essas mudanças imaginadas e, ao mesmo tempo, retratar de modo psicologicamente realista o esforço de Poole para se adaptar ao novo mundo. Dessa forma é tentado um equilíbrio entre as dimensões objetiva e subjetiva da obra, e o autor busca a verossimilhança em ambos os campos.

Os avanços tecnológicos ocupam uma posição central na obra, dando ensejo a várias reflexões, por parte do protagonista, acerca de seu papel na promoção de mudanças sociais, políticas, culturais e até filosóficas. Clarke visivelmente se esmera (e se deleita) no esforço de produzir um quadro tão preciso e realista quanto possível, valendo-se de amplo conhecimento e elevada criatividade. Muitos detalhes narrativos ligados à questão da tecnologia podem passar despercebidos ao leitor não iniciado em ciências exatas, mas os detalhes técnicos não chegam a comprometer a narrativa, que pode ser interessante e envolvente para qualquer leitor. O estilo de Clarke não é profundo em nenhum sentido, mas busca manter em dose equilibrada todos os aspectos necessários a uma boa história. Contribui para isso o bom humor – que é, aliás, uma característica pessoal do autor.

O livro contém também elementos importantes que não derivam de suas considerações sobre a humanidade. Ao lado da adaptação de Poole ao século XXXI, o problema central do livro é uma ameaça vinda do espaço, da parte de seres extraterrestres que o prólogo chama de Primogênitos. Trata-se de uma raça muito antiga e poderosa que logrou alcançar a imortalidade, e que se empenha em estimular o desenvolvimento de vida inteligente em diversos pontos da galáxia. A própria humanidade só pôde evoluir graças à ajuda dos Primogênitos. Mais tarde, porém, eles concluíram que somos um experimento mal sucedido e decidiram extinguir nossa espécie. Esse “juízo final” chegou justamente no século XXXI, e a tarefa de Poole e demais personagens é impedi-lo.

3001 contém um prólogo sobre os Primogênitos, seguido por quarenta capítulos (distribuídos em cinco seções), um epílogo e duas seções adicionais, uma das quais (Fontes e reconhecimentos) é útil para este trabalho, por revelar algumas de suas influências.

1.4. Questões metodológicas

Antes de passar à análise propriamente dita, é necessário fazer algumas considerações gerais sobre a maneira pela qual a cosmovisão do autor é ali revelada e transmitida. A ausência de grandes conflitos de ideias na obra é uma de suas maiores limitações, mas é também um fator que facilita minha tarefa neste trabalho. A uniformidade de opiniões entre os personagens é quase absoluta e, além disso, Clarke muitas vezes coloca suas próprias opiniões nas bocas (e cabeças) deles, jamais permitindo que um eventual opositor tenha a palavra final. Isso pode ser atestado tanto pelo exame de outros pronunciamentos públicos do autor quanto pelos comentários pessoais que ele registrou no final da própria obra.

Porém, não podemos deixar de lado sem discussão os problemas com que se depara a análise de qualquer obra ficcional e não-dissertativa, agravados pelo caráter futurista do livro em questão: antes de tudo, ele poderia ser facilmente tomado de modo indevido como uma simples tentativa de prever o futuro. O próprio Clarke viu-se obrigado a protestar em diversas oportunidades contra essa maneira equivocada de entender sua obra. Disse ele: “Eu nunca previ o futuro. Ou quase nunca. Eu faço extrapolações. Veja, eu escrevi seis histórias sobre o fim do planeta; é impossível que todas elas se realizem!”[1]. Indagado sobre a diferença entre ciência e ficção científica, ele respondeu: “Bem a ficção científica... raramente tenta prever o futuro. É mais frequente que ela tente impedir o futuro. [...] Acho que alguns de nós, como George Orwell, foram muito bem-sucedidos em impedir alguns tipos de futuro”[2]. E, quando pediram que falasse de sua motivação para atuar no gênero da ficção científica, Clarke respondeu: “A ficção é mais que a não-ficção, em certos aspectos. Você pode criar um universo próprio. Você pode expandir a mente das pessoas, alertando sobre as possibilidades do futuro, o que é muito importante em uma época na qual as coisas estão mudando rapidamente”[3]. Esses breves comentários mostram que Clarke estava, ao menos até certo ponto, ciente da intensidade do elemento puramente imaginativo na literatura futurista, bem como das pesadas limitações de nosso poder de predição.

Não convém, no entanto, superestimar o valor dessas advertências, pois Clarke se mostrou deveras inconsistente em algumas de suas considerações sobre o futuro. Ele afirmou, por exemplo: “No que diz respeito ao futuro, toda predição política ou sociológica é impossível. [...] A única área onde há alguma possibilidade de sucesso é o futuro tecnológico”[4]. No entanto, ele não resistiu à tentação de fazer predições políticas e sociológicas em diversas oportunidades. Afirmou, por exemplo, que “o livre fluxo de informação possibilitado pelos satélites significa o fim da censura e da ditadura”[5], e profetizou o fim da crença na astrologia preditiva[6]. As causas dessa inconsistência serão expostas adiante; por ora, é importante apenas ter em mente que as afirmações sobre o futuro feitas ficcionalmente em 3001 têm uma intenção preditiva potencialmente mais forte do que o próprio Clarke estaria disposto a admitir.

À parte disso, contudo, as ideias acima apresentadas – da ficção como extrapolação, denúncia de possibilidades indesejadas ou sugestão de bons caminhos a trilhar – não deixam de apontar para uma conexão proposital com a realidade presente, tal como compreendida pelo autor. E, na verdade, essa conexão brota do próprio espírito da ficção científica enquanto gênero literário: o que a distingue da literatura fantasiosa, por exemplo, é justamente o esforço de plausibilidade do ponto de vista científico. Isso não significa que o escritor não possa dar asas à imaginação e propor seres, eventos ou artefatos tecnológicos não abarcáveis por teorias científicas conhecidas. Mas significa que, mesmo nesses casos, é importante que haja verossimilhança. A ficção científica está, pois, fundamentalmente comprometida com a busca de um alto grau de realismo.

Além disso, a lógica interna do gênero leva naturalmente à generalização desse princípio para outros elementos da narrativa, alheios ao aspecto estritamente científico e tecnológico. Um autor que preza por esse tipo de verossimilhança também zelará por ela em outros planos. 3001 é uma obra que apresenta esse esforço de modo notório em todos os níveis: psicológico, cultural, político, sociológico e até no pouco que é dito sobre uma raça inteiramente fictícia como a dos Primogênitos.

Mas a grande pergunta, que nos leva ao cerne metodológico do presente trabalho, é esta: aquilo que o autor considera realista o é de fato? O esforço do autor para produzir um mundo verossímil diz muito sobre seus critérios de verossimilhança ou, em outras palavras, sobre a estrutura de plausibilidade por ele adotada. Analisando a obra, é possível extrair elementos que permitem constituir um retrato dessa estrutura e dos pressupostos nela embutidos e, por essa via, chegar a uma avaliação biblicamente orientada da cosmovisão contida na obra.

Naturalmente, esse empreendimento só será possível na medida em que o texto analisado for rico em elementos e aspectos relevantes para a obtenção desse retrato. Desse ponto de vista, a criatividade literária de Clarke e a vastidão de seus interesses tornam sua obra deveras adequada. 3001 foi escolhido em detrimento dos volumes precedentes da mesma série não só por apresentar uma fase mais madura do pensamento do autor, mas também porque sua proposta de retratar um futuro consideravelmente mais distante trouxe o efeito benéfico de deixá-lo menos preso aos ditames da realidade presente e, dessa forma, livre para expor sua cosmovisão de modo mais profundo e abrangente. Não é à toa que o próprio Clarke descreveu 3001 como o projeto mais desafiador de sua carreira[7].


[1] GREENWALD, Jeff. Arthur C. Clarke on Life. San Francisco, 1993. Disponível aqui. Acesso em: 6 de junho de 2012.
[2] SIEBERG, Daniel. Clarke to Comdex: “Travel by Wire”. Atlanta, 2001. Disponível aqui. Acesso em: 21 de junho de 2012.
[3] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[4] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[5] SPIKE MAGAZINE. Arthur C. Clarke: 3001: The Final Odyssey. Brighton, 1998. Disponível aqui. Acesso em: 12 de junho de 2012.
[6] RATNATUNGA, Kavan. 60th Anniversary of Clarke’s Communication Satellite Idea. Colombo, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 29 de junho de 2012.
[7] KAUFMAN, Marc. Arthur C. Clarke Interview. Filadélfia, 1994. Disponível aqui. Acesso em: 7 de junho de 2012.