17 de dezembro de 2016

Profecia e divindade - parte 8

2.5. Deus como Pai

Um último ponto que precisa ser mencionado, por estar diretamente ligado à interpretação islâmica de Jesus e à negação de sua divindade, é a questão básica do que a Bíblia quer dizer quando atribui a Jesus o título de Filho de Deus e outros semelhantes. Já toquei nesse ponto no item 2.2, onde procurei mostrar que, segundo o Novo Testamento, Jesus é o Filho de Deus em um sentido que o distingue de qualquer outro ser humano. Ele é o Deus Unigênito, o único filho legítimo, ao passo que todos nós, quando chegamos a nos tornar filhos de Deus, o fazemos através de Cristo, por meio da adoção. É importante ter em mente mais uma vez que a expressão "filho de Deus" não era banal para os antigos judeus como é para a nossa cultura semicristianizada de hoje. Sem essa perspectiva, não entenderemos passagens como esta (João 5.17-18):

"Disse-lhes Jesus: 'Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando'. Por essa razão, os judeus mais ainda queriam matá-lo, pois não somente estava violando o sábado, mas também estava até mesmo dizendo que Deus era seu próprio Pai, igualando-se a Deus."

Esse trecho mostra que, mesmo quando Jesus não usava a expressão "Filho de Deus", as pessoas entendiam que ele estava atribuindo divindade a si mesmo ao se referir a Deus como "meu Pai". Esse pode parecer estranho à primeira vista, porque a metáfora de Deus como pai do povo de Israel é antiga, e inclusive está presente no Antigo Testamento. Mas o escândalo consistia justamente no fato de Jesus usar a primeira pessoa do singular: "meu Pai", e não "nosso Pai". Jesus nunca colocou sua filiação em pé de igualdade com a de nenhuma outra pessoa. Por exemplo, Jesus disse: "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém sabe quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai, a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar" (Lucas 10.22). Quando Jesus dizia que Deus é Pai dele, estava indo além da mera paternidade metafórica de Deus, e além também da simples ideia de Deus como Criador de todas as coisas. Ter um filho significa comunicar uma natureza. Quando geramos um filho, comunicamos nesse ato a natureza humana a esse filho, coisa que não acontece quando fazemos algo com nossas mãos - digamos, uma obra de arte. A obra de arte não é um ser humano; um filho, sim. Da mesma forma, quando Deus Pai criou o mundo, não transmitiu ao mundo sua natureza divina; o máximo que a Bíblia diz é que nós, seres humanos, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1.26). Mas não somos Deus, ao contrário de Jesus; por isso a Bíblia diz que ele é Filho, e não criatura.

Essas considerações são importantes para o nosso propósito porque o Alcorão nega enfaticamente que seja apropriado se referir a Jesus como Filho de Deus. Em algumas passagens parece que a queixa decorre de uma compreensão simplista e equivocada, pela qual Jesus seria filho de Deus por ter Deus mantido relações sexuais com Maria. Talvez essa compreensão grosseiramente materialista seja, de fato, a ideia que ocorre a muitos muçulmanos, em especial os menos cultos, quando ouvem que os cristãos consideram Jesus o Filho de Deus. E alguns dos que defendem a doutrina cristã contra as críticas islâmicas têm se limitado a desfazer esse entendimento equivocado. Porém, acredito que a objeção que o Alcorão levanta não é tão banal assim. Isso está claro em 19.34-35, em que as seguintes palavras são atribuídas a Jesus: "É inadmissível que Deus tenha tido um filho. Glorificado seja! Quando decide uma coisa, basta-lhe dizer: Seja!, e é. E Deus é o meu Senhor e vosso. Adorai-O, pois! Esta é a senda reta." Note que a questão fundamental é que, segundo o Alcorão, Deus só pode criar, mas não gerar; "basta-lhe dizer: Seja!, e é" é uma clara alusão ao poder criador de Deus, a criação a partir do nada, "creatio ex nihilo". O muçulmano não pode aceitar que Jesus seja chamado legitimamente de Filho de Deus, porque isso sugere justamente essa comunicação da natureza divina, o que faz com que Jesus não seja mais ontologicamente um homem como outro qualquer ("Deus é o meu Senhor e vosso"). Se isso fosse admitido, ficaria destruída a concepção islâmica do monoteísmo, pois estaríamos "associando" outras pessoas a Deus; como vimos no parágrafo anterior, os judeus contemporâneos de Jesus tinham exatamente essa mesma sensibilidade. Mas para o muçulmano a questão é ainda mais grave que para o judeu contemporâneo de Jesus, pois, como mostrei na parte 1, o primeiro está comprometido com uma revelação posterior e superior à de Cristo.

Por tudo isso, o preletor muçulmano fica muito aquém de fazer justiça à questão quando cita diversas passagens bíblicas que tratam da paternidade de Deus e conclui daí que Jesus ensinou uma posição essencialmente islâmica sobre esse tema. Ele chegou a dizer, referindo-se a certa declaração de Jesus, que "qualquer pessoa que disser que não busca sua vontade, mas sim a vontade do Pai, é um muçulmano". Mas essa conclusão não é verdadeira porque, a rigor, não há lugar para a paternidade divina no islã. O simples fato de Jesus ter se expressado nesses termos já revela uma incompatibilidade tremenda entre as visões cristã e muçulmana de Deus e sua relação com a humanidade e com o próprio Jesus. O Alcorão em parte alguma se refere a Deus como Pai, e tampouco essa ideia existe na intuição religiosa do muçulmano comum.

3. Outras questões

Com isso, chego ao fim da minha análise sobre a resposta do preletor muçulmano. Não quero encerrar, contudo, sem fazer dois breves esclarecimentos sobre duas questões que não foram abordadas diretamente, mas que estão de algum modo ligadas ao conteúdo do vídeo. Ambas brotam do fato de que a moça que faz a pergunta ao preletor no início do vídeo se identifica como católica. Sendo eu um cristão protestante, acredito que os comentários a seguir devem ser feitos, ainda que de modo breve, pois tocam em questões pertinentes às dissensões internas da cristandade.

O primeiro comentário é a questão da autoridade. Um dos objetivos do preletor muçulmano em sua resposta é mostrar que a Igreja não se manteve fiel à mensagem de Jesus e ao conteúdo da Bíblia em geral. Como expliquei antes, muitos muçulmanos acreditam que a própria Bíblia foi corrompida, mas o fato é que esse preletor não recorre a essa possibilidade. O importante é notar que, logo no início de sua resposta, o preletor explicitamente coloca em dúvida o ensino da Igreja e chama a um exame do próprio texto bíblico como árbitro supremo da questão. Já forneci longamente os motivos pelos quais não concordo com as interpretações bíblicas dele. Não obstante, sendo eu um protestante teologicamente conservador, concordo com ele que o caminho a ser seguido é esse mesmo. Uma das divergências fundamentais dos reformadores, que os levou para fora da Igreja Católica, era justamente sobre o problema de onde se situaria a autoridade máxima, onde está o referencial infalível. Os reformadores defendiam que conhecemos a vontade de Deus lendo a Bíblia e sendo instruídos pelo Espírito Santo a entendê-la cada vez melhor, de modo que a própria Igreja deveria ser julgada à luz da Bíblia. A doutrina católica, porém, sustentava e continua sustentando que a Bíblia só pode ser interpretada corretamente pela Igreja, e que o Espírito Santo não age à parte dela nesse sentido; nesse sentido, a Igreja não pode e não deve se submeter à Bíblia. Acho importante enfatizar essa diferença para deixar claro que, para um protestante como eu, criticar e rejeitar essa instituição chamada Igreja (ou alguma outra igreja) não equivale de modo algum a criticar ou rejeitar o cristianismo. Não considero nenhuma igreja infalível, incluindo aquela a que pertenço. Minha lealdade, no caso, à Igreja Presbiteriana do Brasil se dá na medida em que ela é fiel à Bíblia; essa fidelidade é imperfeita, é claro, mas considero-a substancial; se no futuro isso mudar, não hesitarei em ir para outro lugar. Dessa forma, protestantes e católicos se relacionam de modo muito distinto com a instituição eclesiástica. É exatamente por isso que grande parte da minha crítica ao preletor muçulmano se deu no terreno da interpretação bíblica, e não em considerações sobre a instituição ou a tradição - embora, é claro, estas tenham seu lugar e papel legítimos. Quando ele ataca a autoridade da Igreja, está tocando em um ponto central para a sua ouvinte católica, mas não tão central para mim.

A segunda questão que não pode ser desconsiderada é o próprio pressuposto embutido na pergunta da moça: ela quer saber por que o fato de ela não ser muçulmana é tão relevante para o seu destino eterno; ela quer saber se o fato de ela ser uma pessoa tão boa não deveria tornar menos importantes essas divergências doutrinárias sobre a identidade de Jesus e coisas do tipo. O preletor muçulmano, na verdade, não respondeu a essa parte da pergunta. E essa resposta também remete, de certa forma, à divergência fundamental que provocou a Reforma. No meu entendimento, os reformadores estavam corretos em sua interpretação da resposta bíblica a essa questão. E a resposta bíblica é simplesmente que a premissa da moça católica está errada: ela não é uma boa pessoa. Não há boas pessoas; os que se consideram fundamentalmente bons estão cegos e iludidos. Sem isso, a mensagem bíblica sobre Jesus não tem a menor importância, pois não há sentido em buscar um Salvador se não sabemos do que é que devemos ser salvos: de nossa própria maldade, que nos torna merecedores de uma justa punição da parte de um Deus santo que necessariamente odeia toda forma de mal. É por isso que Jesus disse: "Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento" (Lucas 5.32). O preletor muçulmano não pôde entender essa parte da pergunta porque a concepção islâmica da natureza humana é fundamentalmente falha. Para o islã, tudo se resume a receber de Deus a orientação sobre como agir, e então agir de acordo com ela. Ele não oferece a solução para o mal humano, porque não reconhece a existência do problema. O catolicismo vai na mesma direção até certo ponto, embora não de modo tão consistente. Apenas o Jesus da Bíblia é capaz não só de diagnosticar de modo correto o problema do homem, mas também de resolvê-lo, oferecendo aquela regeneração verdadeira de nossa natureza que não somos capazes de produzir em nós mesmos. E é por isso que depositar nele toda a nossa esperança é necessário. "Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia" (João 6.40).

9 de dezembro de 2016

Profecia e divindade - parte 7

2.3. Filipenses 2.5-11

Nesse trecho clássico de uma de suas cartas, Paulo faz uma bela exposição de uma doutrina bíblica importante, relacionada ao que aconteceu com Jesus quando se encarnou, morreu e ressuscitou. Farei alguns comentários em seguida.

"Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai."

Essa passagem afirma claramente a divindade de Jesus e sua igualdade de natureza com o Pai, mas sua importância vai além disso: ela expõe as doutrinas gêmeas de que a teologia sistemática trata sob os nomes de "doutrina da humilhação de Cristo" e "doutrina da exaltação de Cristo". A encarnação foi um ato de humildade e humilhação pelo qual Jesus voluntariamente abriu mão, em certo sentido, de sua dignidade como igual ao Pai. Mas, após sua morte, tendo cumprido com perfeição a obra que lhe fora confiada, Jesus foi novamente exaltado pelo Pai, não apenas por sua ressurreição, nem apenas por ter se tornado Senhor sobre tudo ("Toda autoridade me foi dada nos céus e na terra" foi uma das últimas palavras do Cristo ressurreto no evangelho segundo Mateus, como já mencionei), mas também porque seu nome seria proclamado como tal e assim reconhecido em todas as partes do mundo. A doutrina da humilhação, declarada nesse texto, também esclarece as várias passagens em que Jesus, durante sua vida terrena, se expressou de modo a sugerir algum tipo de inferioridade sua em relação ao Pai, e explica como isso pode ser conciliado com as claras afirmações da plena divindade de Cristo e sua igualdade com o Pai.

2.4. De volta ao vídeo

Depois de ter examinado brevemente esses três textos bíblicos, e outros relacionados que foram citados de passagem, podemos voltar aos argumentos que o preletor muçulmano levantou contra a ideia de que a Bíblia ensina a divindade de Jesus. Eu havia mencionado que os argumentos eram três, dos quais o segundo já havia sido refutado por pressupor equivocadamente que afirmar a divindade equivaleria a negar a humanidade de Cristo. Chamei também a atenção para o fato de que as três partes do primeiro argumento pressupõem que não pode haver subordinação de Cristo em relação ao Pai. Portanto, todas as três partes são refutadas pelo esclarecimento da doutrina da humilhação de Cristo, que acabo de expor e discutir brevemente com base no texto de Filipenses 2: a subordinação ocorrida durante o estado de humilhação é totalmente compatível com a plena divindade de Jesus e sua igualdade com o Pai, e ambas as doutrinas são claramente afirmadas no mesmo texto.

Sendo assim, resta apenas um argumento: o de que Jesus nunca declarou ser Deus. Antes de responder a isso, é interessante chamar a atenção para uma mudança sutil na estratégia argumentativa do preletor. Até aqui ele citou indiscriminadamente textos de diversas partes da Bíblia, não levando em consideração a identidade do autor. Como já apontei antes, em parte alguma ele se mostrou disposto a afirmar (embora muitos apologistas muçulmanos afirmem) que a Bíblia contém erros; ao contrário, sua estratégia argumentativa precisa pressupor a autenticidade e confiabilidade do que a Bíblia declara sobre Jesus. Ao chegar a este ponto, no entanto, ele põe de lado o que outras pessoas afirmaram na Bíblia sobre Jesus e dá a entender que só o que Jesus afirma sobre si mesmo tem validade. Essa mudança de procedimento não vem acompanhada de nenhuma justificativa, e creio que muitos espectadores nem sequer a notaram. Mas o preletor é enfático nesse ponto, chegando a mencionar que as traduções da Bíblia destacam em vermelho as falas do próprio Jesus, distinguindo-as do restante do texto (na verdade, até onde sei, apenas uma edição da Bíblia faz isso).

Acredito que essa mudança tem uma motivação importante: a evidência bíblica de que os apóstolos e a igreja primitiva em geral criam na divindade de Cristo é esmagadora. Nos próprios textos que citei (e muitos outros poderiam ser citados) isso transparece claramente. Um muçulmano não tem como ler a Bíblia sem ficar profundamente incomodado com essas declarações, que conflitam fortemente com a imagem de Jesus que o Alcorão apresenta. Creio que essa dificuldade está por trás da ampla adesão do mundo islâmico à ideia de que os ensinos de Jesus foram mal interpretados e distorcidos pelos discípulos, e de que Jesus, sendo profeta, não poderia concordar com esses desvios. Já mostrei que o Alcorão afirma isso expressamente. Porém, como também já expliquei, dizer claramente que a própria Bíblia contém distorções, embora não seja problemático para a doutrina islâmica, é problemático para esse preletor específico, pois ele tomou a decisão retórica de não questionar a autoridade bíblica ao tentar convencer a jovem católica que fez a pergunta. Nesse contexto, restringir a discussão às palavras ditas pelo próprio Jesus é um procedimento artificial, pois é um modo de eliminar logo no ponto de partida boa parte da evidência bíblica da divindade de Jesus. Mas isso não poderia ser declarado expressamente, pois a eficácia da estratégia de mudança de foco depende justamente da capacidade de ocultar esse contraste; uma vez vindo à consciência, o encanto se desfaz.

Por ser esse um procedimento ilegítimo e arbitrário, considero que a simples constatação de sua existência, somada à evidência que vim elencando nas seções anteriores, vinda de várias partes do Novo Testamento, bastam para mostrar que a Bíblia ensina claramente a divindade de Jesus. No entanto, darei um passo a mais e mostrarei que, mesmo que nos restrinjamos às palavras do próprio Jesus, como quer o preletor muçulmano, ainda encontraremos evidência da divindade de Jesus. Vários exemplos poderiam ser citados, como as referências de Jesus à sua capacidade de perdoar pecados ou sobre sua relação com o sábado. Mas me concentrarei em um único exemplo.


O momento em que a reivindicação de divindade de Jesus me parece mais nítida está registrado em João 8.56-59. Durante uma discussão com os fariseus, na qual eles questionavam a origem divina de seu trabalho, Jesus disse: "Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se". Seus antagonistas responderam: "Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?" O espanto deles é compreensível, pois Abraão vivera dois mil anos antes. Mas ficaram ainda mais espantados com a resposta de Jesus: "Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!" Há intérpretes que tentam diluir o significado dessa afirmação de Jesus dizendo que o que estava em discussão era apenas a idade de Jesus, de modo que ele estava, na verdade, apenas afirmando sua preexistência. Mas essa interpretação não se sustenta, por várias razões. Uma delas é que, se foi isso o que Jesus quis dizer, achou um jeito muito estranho de dizê-lo. Nesse caso, bastaria dizer "antes de Abraão nascer, eu já existia". Mas por que o uso do verbo no presente? A construção pode parecer estranha para nós, mas era familiar aos judeus da época, de modo que Jesus certamente sabia disso e, como bom professor que era, quis dizer exatamente o que sabia que as pessoas entenderiam. Mas o que seria?

A resposta está no Antigo Testamento, mais uma vez. Para ser mais exato, está em Êxodo 3.13-14, quando Deus aparece a Moisés (no famoso episódio da sarça ardente) e promete libertar o povo de Israel da escravidão no Egito. O texto diz: "Moisés perguntou: 'Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: Qual é o nome dele? Que lhes direi?' Disse Deus a Moisés: 'Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês'." Desde então, a expressão "eu sou", sem objeto direto, tornou-se uma reivindicação de divindade. O que Jesus afirmou sobre si mesmo ia muito além de sua mera preexistência. Jesus sabia muito bem o impacto que sua afirmação causaria, e de fato causou, pois João narra o que aconteceu a seguir nos seguintes termos: "Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo, mas Jesus escondeu-se e saiu do templo". Para aqueles judeus, Jesus havia acabado de cometer publicamente um ato de blasfêmia, de modo que só lhes restava executar a sentença prescrita na Lei: o apedrejamento do blasfemador. Eles não fariam isso se não lhes parecesse que Jesus havia afirmado ser Deus. E Jesus não teria se expressado mal, muito menos quanto a uma questão dessa importância.

23 de outubro de 2016

Profecia e divindade - parte 6

2.1. Hebreus 1

Uma das passagens bíblicas mais esclarecedoras sobre o tema da divindade de Jesus está nas palavras iniciais da carta aos Hebreus. Essa carta não tem preâmbulos: entra direto no seu tema principal, que é a superioridade de Cristo sobre todas as revelações anteriores. Sua primeira sentença é assim: "Havendo Deus outrora falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nesses últimos dias ele nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro sobre todas as coisas e pelo qual também fez o universo". Note-se que tudo se estabelece em termos de um contraste absoluto entre o antes e o agora. A única coisa em comum é que o Deus que se revela (fala) é o mesmo. Mas ele se revelara "muitas vezes e de muitas maneiras", e agora falou de uma única maneira. Antes havia sido "aos pais", isto é, aos antepassados dos judeus que estavam lendo a carta, e agora é "a nós". E o mais importante: antes Deus havia falado através dos profetas, e agora ele falou pelo Filho. A intenção de contrastar o Filho com os meros profetas é evidente. É claro que a oposição não é absoluta, pois Jesus também é chamado de profeta várias vezes no Novo Testamento. O ponto a ser destacado é que ele não é menos que um profeta, mas certamente é muito mais. E, na verdade, basicamente todo o restante do capítulo 1 de Hebreus é dedicado a essa superioridade de Jesus sobre os profetas. O argumento começa já nessa primeira frase, quando, depois de se referir ao Filho, o autor anônimo diz que esse Filho foi constituído por Deus como "herdeiro sobre todas as coisas" e acrescenta a afirmação impressionante de que Deus criou o universo através desse mesmo Filho. Não são coisas que a Bíblia atribua a algum mero profeta.

Mas isso não é tudo. O texto continua falando de Jesus nos seguintes termos: "Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata de seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de haver feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que o deles". Eis, portanto, uma sequência rápida e impressionante de afirmações sobre a identidade de Jesus. Destaco quatro elementos. Primeiro, Jesus é o resplendor da glória de Deus; essa glória se evidencia nele de modo inigualável. Segundo, Jesus é a expressão exata do ser de Deus; quando Jesus disse "quem me vê, vê o Pai", ele não estava afirmando ser o Pai, mas estava afirmando uma semelhança que não encontra paralelo na capacidade de qualquer ser humano comum. Terceiro, ele sustenta todas as coisas "por sua palavra poderosa", como diz uma outra versão (de modo mais claro, mas menos poético). Para os judeus (e cristãos), Deus não é só o Criador de todas as coisas, mas também seu sustentador, ou seja, ele faz com que cada coisa criada continue existindo momento a momento; o autor de Hebreus atribui a Jesus esse poder de sustentar toda a criação. E quarto, ao cumprir sua missão no mundo, Jesus alcançou dignidade maior que a dos anjos. Adiante discutirei outra passagem bíblica que explica isso melhor. O autor de Hebreus gasta o restante do capítulo argumentando, com base em passagens do Antigo Testamento, que Jesus é superior a todos os anjos.

Note-se que todas essas declarações são extremamente ousadas, ou mesmo blasfemas, se o autor da carta estiver falando de alguém que é menos que Deus. Note-se, além disso, que todas essas afirmações bombásticas são feitas em um contexto que trata justamente da história da revelação. É porque Jesus é todas essas coisas que aquilo que ele revela sobre Deus é superior ao que revelaram todos os profetas que o precederam, os quais, afinal de contas, eram apenas humanos. Essa lógica e esses dados bíblicos são exatamente o que o preletor muçulmano precisa ignorar (não sei se conscientemente ou não) para afirmar a visão corânica de que Jesus é um profeta como tantos outros. A superioridade da revelação de Jesus sobre qualquer outra está inquebrantavelmente vinculada à superioridade do próprio Jesus sobre qualquer outro ser humano. Diante do modo como a Bíblia apresenta a perfeição e a natureza de Cristo, a ideia de que uma revelação superior pudesse aparecer mais tarde na história, através de Maomé ou de qualquer outra pessoa, simplesmente não faz sentido. As opções consistentes são apenas duas: rejeitar a pretensão de profetas como esse ou rejeitar o que a Bíblia afirma sobre Jesus.

2.2. João 1

O primeiro capítulo do evangelho segundo João é também muito incisivo quanto à identidade de Jesus. Em alguns pontos, apesar da linguagem peculiar, a mensagem transmitida é a mesma de Hebreus, mas há também alguns acréscimos interessantes e dignos de nota. O evangelho de João começa assim: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (1.1-3). O fato de o evangelho ter início com as palavras "no princípio" é um clara alusão à criação do mundo conforme o relato do Gênesis, que começa com "No princípio criou Deus os céus e a terra". O apóstolo João está dizendo que Jesus estava presente na criação do mundo junto com o Pai ("estava com Deus"). Além disso, o texto afirma explicitamente que o próprio Jesus "era Deus". Mesmo que essa afirmação não estivesse claramente presente, o contexto já seria suficiente para sugerir a mesma coisa. Dizer que alguém estava presente na criação do mundo e participou do ato criador era, para um judeu, uma indicação clara de divindade, pois a doutrina judaica não atribui esse papel a mais ninguém. Isaías 44.24 diz claramente: "Eu sou o Senhor, que fiz todas as coisas, que sozinho estendi os céus, que espalhei a terra por mim mesmo". Portanto, os versículos iniciais de João afirmam que Jesus é tão Deus quanto o Pai e, ao mesmo tempo, que ele e o Pai são pessoas distintas.

Ainda no capítulo 1, João fala também do papel especial de Jesus na revelação. Isso é feito em dois momentos: os versículos 14 e 17-18. O primeiro diz: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai". E os versículos 17 e 18 dizem: "Porque a lei veio por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por intermédio de Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou". Portanto, Jesus é quem revela a glória do Pai. Jesus é superior a Moisés - que, vale lembrar, é o maior profeta do Antigo Testamento. Os leitores judeus de João certamente se lembrariam de um episódio narrado em Êxodo 33.18-20, no qual Moisés pede para ver a glória de Deus. Mas Deus lhe concede apenas uma visão parcial, acrescentando que "Você não poderá ver a minha face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo". Parece que João tinha essa história em mente, pois usa a ideia de ver Deus, ver a glória de Deus, e a comparação com Moisés está claramente em vista no versículo anterior: Jesus conhece a glória do Pai de um modo que ninguém mais conhece, e ele a revela de um modo que ninguém mais revela.

Essa posição de singularidade que Cristo ocupa é afirmada nesses versículos ainda de uma outra maneira: nas duas referências a Jesus como "unigênito", palavra que indica que Jesus é filho único. Essa ideia não costuma ser muito enfatizada, e a religiosidade popular, com chavões como "todo mundo é filho de Deus", tende a atribuir a essa expressão uma conotação mais vaga e diluída, que não corresponde ao uso bíblico - nem, de modo geral, ao uso que se fazia na Antiguidade. Os versículos 12 e 13 expõem isso com muita clareza ao dizer sobre Cristo que, "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus". Note-se que ele não aplica a expressão "filhos de Deus" indistintamente, e sim apenas àqueles que "receberam" Jesus; e diz ainda que esses, tendo-o recebido, "são feitos", ou seja, se tornam filhos de Deus, coisa que não eram antes. Essa ideia é muito importante. Paulo a desenvolve em termos levemente diferentes, falando de uma "adoção", pela qual Deus passa a nos tratar como filhos legítimos, embora não o sejamos por natureza. Isso está em Romanos 8.13-17:

"Pois se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: 'Aba, Pai'. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua glória."

Essa ideia é repetida adiante, nos versículos 22 e 23: "Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo." E, novamente, nos versículos 28 e 29: "Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos." Toda essa linguagem, embora honrosa para os filhos adotivos, deixa claro que existe uma diferença fundamental entre Jesus, o unigênito e filho de Deus por direito, e nós, adotados de forma graciosa e misericordiosa, que somos tratados por Deus com uma honra que não merecemos por nossa própria natureza.

20 de setembro de 2016

Profecia e divindade - parte 5

Nas primeiras quatro partes da presente série (um, dois, três e quatro), sob o título "Relações entre as religiões", expus as semelhanças e diferenças entre judeus, cristãos e muçulmanos quanto à história da revelação divina e as relações entre as religiões monoteístas, motivado em parte por uma análise de um vídeo no qual um preletor muçulmano responde à pergunta de uma jovem católica sobre temas ligados a esse. Darei início agora à segunda metade da exposição, que deverá prosseguir até a oitava e última parte desta série e versará sobre a pessoa de Jesus Cristo e a perspectiva islâmica sobre ele, ainda tendo o mesmo vídeo como pano de fundo.

2. A divindade de Jesus

A questão da identidade de Jesus, sua natureza e seu lugar na história da revelação é outra questão teológica básica em que há severas divergências entre os muçulmanos e a tradição cristã. Dizendo de modo simplificado, o islã considera
(com raríssimas exceções) que todos os profetas são portadores da mensagem de Deus, mas são seres humanos como quaisquer outros. Jesus não é uma exceção a isso, embora o Alcorão reconheça nele certos traços excepcionais. Por exemplo, o Alcorão declara expressamente que Jesus nunca cometeu pecado; além de não afirmar o mesmo sobre nenhum outro profeta, o Alcorão afirma explicitamente que o próprio Maomé pecou. Embora a crença popular islâmica considere Maomé como homem sem pecado, essa crença vai contra o conteúdo expresso do Alcorão, que atribui essa perfeição a Jesus ao mesmo tempo em que a nega a Maomé. Esse fato tem gerado sempre um certo embaraço para os apologistas do islã. Apesar disso, e de algumas outras coisinhas, o Alcorão é muito claro em sua negação da divindade de Jesus ou de qualquer outro profeta. O fato de eles serem humanos, e nada mais que isso, é parte importante da cosmovisão islâmica.

Por exemplo, em 3.64 Allah diz a Maomé: "Dize: 'Ó seguidores do Livro! Vinde a uma palavra igual entre nós e vós: não adoremos senão a Allah, e nada lhe associemos e não tomemos uns aos outros por senhores, além de Allah'. E, se voltarem as costas, dizei: 'Testemunhai que somos submissos'." Na terminologia corânica, "associar" alguém a Allah significa considerar esse alguém como divino, em pé de igualdade com Allah. Para Maomé, associar alguém a Deus equivale a cometer o pecado básico, o da idolatria, e o cristianismo faz justamente isso com Jesus, quebrando, assim, a simplicidade do monoteísmo autêntico. Nessa mesma passagem, a ordem de "não tomar uns aos outros por senhores" é claramente uma reprovação da terminologia neotestamentária, que frequentemente se refere a Jesus como Senhor. Da mesma forma, a sura 5 narra um diálogo entre Allah e Jesus nos seguintes termos, em que Jesus nega ter afirmado sua própria divindade:

"Quando Deus disse: Ó Jesus, filho de Maria! Foste tu quem disseste aos homens: Tomai a mim e a minha mãe por duas divindades, em vez de Deus? Respondeu: Glorificado sejas! É inconcebível que eu tenha dito o que por direito não me corresponde. Se tivesse dito, tê-lo-ias sabido, porque Tu conheces a natureza da minha mente, ao passo que ignoro o que encerra a Tua. Somente Tu és Conhecedor do incognoscível. Não lhes disse, senão o que me ordenaste: Adorai a Deus, meu Senhor e vosso! E enquanto permaneci entre eles, fui testemunha contra eles; e quando quiseste encerrar os meus dias na terra, foste Tu o seu Único observador, porque és Testemunha de tudo."

É em parte por causa dessa interpretação claramente expressa no Alcorão que o preletor do vídeo se dedica a demonstrar que as declarações da própria Bíblia apoiam o ponto de vista corânico, e que a afirmação da divindade de Cristo não tem fundamento bíblico. Mas existe outro motivo além desse: uma questão de consistência com o entendimento islâmico da história da revelação, já discutida na seção 1. Se Jesus é Deus encarnado, torna-se muito estranha a ideia de que a revelação última e definitiva não tenha vindo dele, e sim de um mero ser humano enviado séculos depois. Como já expliquei, a convicção islâmica não se encaixa bem com a ideia cristã de uma revelação progressiva que atinge seu auge em um determinado momento histórico, com a vinda de Cristo; mas essa ideia cristã, por sua vez, só faz sentido porque Jesus não é entendido como um homem qualquer, um profeta semelhante a todos os outros. Para o islã, portanto, negar a divindade de Jesus é simples questão de sobrevivência, ou seja, é fundamental para a plausibilidade de sua própria autoimagem de religião definitiva, precisamente por ser essa uma revelação historicamente posterior à de Cristo. Por isso o Alcorão diz claramente em 3.84: "Cremos em Allah e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaque, e Jacó, e as Tribos, e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e a Ele somos submissos." Note-se a ênfase: "não fazemos distinção entre nenhum deles"; cada um é tão humano quanto todos os outros.

A partir da próxima postagem, passarei a levantar algumas questões em torno dessas divergências e da interpretação que o preletor muçulmano oferece. Antes disso, porém, creio que é bom recapitular e registrar aqui os textos bíblicos que o preletor cita para mostrar que a Bíblia se opõe à ideia da divindade de Jesus. Fazendo um esforço de sistematizar sua argumentação, creio que é justo dizer que o preletor levanta três argumentos, sendo o primeiro dividido em três partes. 1a. Jesus declarou sua inferioridade em relação ao Pai, em João 14.28 ("o Pai é maior do que eu") e em João 10.29 ("Meu Pai [...] é maior do que todos"). 1b. Jesus admitiu que recebeu poder de Deus sobre os demônios; isso está em Mateus 12.28 ("é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios") e em Lucas 11.20 ("é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios"). 1c. a mensagem pregada por Jesus também foi determinada pelo Pai; isso ocorre em João 5.19 ("o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer") e em João 14.24, que o preletor citou erroneamente como 15.24 ("Estas palavras que vocês estão ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou"). Essas três linhas de evidência têm em comum o fato de apontarem para algum tipo de subordinação do Filho em relação ao Pai - uma subordinação que, para os muçulmanos, é incompatível com a ideia da divindade de Jesus.

Mas há outros dois argumentos além desse. 2. Jesus é chamado explicitamente de "homem" em Atos 2.22: "A Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós com maravilhas, prodígios e sinais, que Deus por ele fez no meio de vós"; note que esse versículo também reforça o argumento 1b. Esse segundo argumento é, em minha opinião, o mais fraco de todos, e o único que pode ser prontamente descartado. Afinal, a doutrina cristã diz que Jesus tem duas naturezas, divina e humana, o que significa que ele é ao mesmo tempo homem e Deus. Talvez essa doutrina possa ser criticada (embora eu creia nela), mas o fato é que, se o interesse é o de provar que Jesus não é Deus, não é suficiente citar passagens que afirmam que ele é homem.

3. O terceiro e último argumento do preletor é negativo: ele afirma que em parte alguma do Novo Testamento Jesus declarou ser Deus e exigiu adoração.

Voltarei aos argumentos 1 e 3 depois de explorar brevemente três passagens bíblicas relevantes para que se possa entender a natureza e a profundidade da divergência entre cristãos e muçulmanos com relação a Jesus.

20 de agosto de 2016

Profecia e divindade - parte 4

1.4.3. Questões legais

Os textos bíblicos que o preletor cita para demonstrar que os muçulmanos, e não os cristãos, seguem os ensinamentos da Bíblia e de Jesus se dividem em duas categorias. A primeira é sobre a identidade de Jesus, assunto que discutirei mais extensamente a partir da próxima postagem. Agora vou tratar da segunda categoria, que é a das prescrições práticas e da atitude de Jesus diante da lei. Diante do que expliquei no item 1.2 a respeito da relação entre cristianismo e judaísmo, creio que não será necessário aprofundar muito as explicações neste ponto, sendo suficiente especificar e aplicar alguns princípios gerais já delineados. O preletor do vídeo levanta três supostos pontos de divergência entre Jesus e os cristãos:

Circuncisão: é mencionado que, segundo o evangelho de Lucas, Jesus foi circuncidado; não é fornecida a passagem específica, mas isso de fato está dito em Lucas 2.21. Contudo, a circuncisão era parte da lei cerimonial judaica, que, como expliquei, os apóstolos vieram a considerar como sombras da realidade trazida por Cristo. (Na verdade, a circuncisão foi instituída por Deus nos tempos de Abraão; como os árabes também descendem de Abraão, eles mantêm essa prática até hoje, à parte da tradição judaica.) No caso específico da circuncisão, esse entendimento de que ela era de caráter provisório é expresso no Novo Testamento de modo bastante explícito. Já citei Paulo dizendo que a circuncisão que importa é a do coração, e não a da carne, mas o fato é que todo o capítulo 15 de Atos é dedicado a narrar a controvérsia que esse assunto levantou na igreja primitiva, e de que maneira os apóstolos e a igreja reunida em Jerusalém decidiram a questão: em essência, o argumento que venceu foi que visivelmente Deus estava salvando os gentios e manifestando seu poder entre eles sem que tivessem sido circuncidados, e isso indicava que não era a intenção de Deus que eles se submetessem à lei cerimonial dos judeus. Paulo também discutiu o assunto extensamente na carta aos Gálatas, e sua posição é bastante contundente: os que queriam que os cristãos gentios se circuncidassem estavam implicitamente negando o evangelho ao afirmar que nossa relação com Deus depende do cumprimento da lei, e não da graça que Cristo nos oferece. Veja-se o seguinte trecho do capítulo 5: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem circuncidar, Cristo de nada lhes servirá. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a cumprir toda a lei. Vocês, que procuram ser justificados pela lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a justiça que é a nossa esperança. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor." Parece-me claro, portanto, que o ensino dos apóstolos sobre a circuncisão está de acordo com o ensino geral do Novo Testamento sobre a relação entre Jesus e a lei. O preletor muçulmano ignorou completamente esses ensinos bastante claros, que divergem consideravelmente tanto do judaísmo quanto do islã.

Carne de porco: o Alcorão proíbe explicitamente o consumo de carne de porco, assim como o Antigo Testamento nas passagens que o preletor cita (Deuteronômio 14.8 e Levítico 11.7). Nessas passagens, o porco aparece no meio de uma longa lista de animais que não poderiam ser comidos. De fato, a lei do Antigo Testamento contém uma porção de prescrições desse tipo, incluindo outras que não têm nada a ver com comida (como datas comemorativas, sábado, roupas etc.): proibições e estipulações sobre coisas que não são imorais, mas tinham um propósito didático, ou seja, que tinham uma carga simbólica através da qual Deus pretendia apresentar ao povo representações visíveis de seu próprio caráter; a lei promovia costumes culturais que distinguiriam o povo de Israel dos demais povos e, com isso, reforçava na mente do povo a natureza e a importância da relação que só eles tinham com o Deus verdadeiro. O Novo Testamento prontamente apresenta isso como aspecto cerimonial que perdeu a vigência quando Cristo veio. No caso específico do porco e outros animais considerados impróprios para consumo, o capítulo 10 de Atos traz um relato muito claro, em que Pedro teve a seguinte visão: "Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu. Então uma voz lhe disse: 'Levante-se, Pedro; mate e coma'. Mas Pedro respondeu: 'De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!' A voz lhe falou segunda vez: 'Não chame impuro ao que Deus purificou'. Isso aconteceu três vezes, e em seguida o lençol foi recolhido ao céu." A continuação da narrativa deixa claro que o sentido da visão, além de ser literal, tinha também um propósito didático: Deus estava incentivando a pregação do evangelho aos gentios. Assim como as proibições do Antigo Testamento tinham o propósito de salvaguardar a identidade dos judeus como povo de Deus, a abolição dessas proibições anunciava a universalização do evangelho, rompendo as barreiras entre judeus e gentios. Não há nenhuma passagem no Novo Testamento proibindo o consumo da carne de poco, ou de qualquer outro bicho. Mais uma vez, o preletor muçulmano ignorou completamente a mensagem do Novo Testamento e sua diferença em relação à lei do Antigo Testamento.

Álcool: o Alcorão proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, e o preletor cita duas passagens bíblicas em apoio à sua tese de que Jesus e os profetas bíblicos também o fazem. As duas referências estão erradas. A primeira é Efésios 4.18, mas creio que o que o preletor tinha em mente na verdade é Efésios 5.18, que diz: "Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem, mas deixem-se encher pelo Espírito". A outra passagem citada é Romanos 20.1, texto que não existe, pois a carta aos Romanos só tem 16 capítulos. Suponho que o preletor tinha em mente outra passagem, mas infelizmente não sei qual poderia ser. De qualquer modo, note que o texto citado, ao contrário do Alcorão, não proíbe o consumo moderado e responsável, e sim a embriaguez, que é, esta sim, condenada repetidamente na Bíblia. O argumento ignora que o próprio Jesus transformou água em vinho durante uma festa de casamento em que o vinho havia acabado (João 2); que Jesus usou o pão e o vinho como símbolos da nova aliança que estava inaugurando entre Deus e os homens, e ordenou que todos os cristãos comessem e bebessem; que Jesus tinha uma conduta pública notoriamente diferente de João Batista, fato a que o próprio Jesus aludiu ao criticar a inconsistência de seus inimigos em Mateus 11.18-19: "Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: 'Ele tem demônio'. Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: 'Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores'." E em muitas outras partes, na verdade, a Bíblia fala do vinho sabiamente utilizado como uma grande bênção. Veja-se, por exemplo, o belo poema do Salmo 104, que trata da benevolência de Deus em conceder bênçãos a todas as suas criaturas. Os versículos 13-15 desse salmo dizem: "Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das suas obras! É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor." Uma vez mais, a leitura bíblica do preletor muçulmano é seletiva demais e de péssima qualidade.

Um último ponto que vale a pena mencionar é que essas semelhanças entre os códigos cerimonial e civil judaico e islâmico, ainda quando verdadeiras, são pontuais. O preletor do vídeo faz parecer que a lei do antigo Israel é idêntica à lei promulgada por Maomé, mas isso está muito longe da verdade. Mesmo no espírito geral da lei há divergências fundamentais, embora haja também algumas semelhanças; mas, quando descemos às particularidades, encontramos muito mais diferenças que semelhanças. Por exemplo, a lei mosaica institui milhões de regras referentes ao ofício dos sacerdotes, aos sacrifícios, à construção e manutenção do local sagrado (originalmente uma tenda móvel, mais tarde um templo fixo), celebrações em datas específicas e muitas outras coisas que sequer existem no mundo islâmico. Mesmo uma leitura superficial do Levítico, por exemplo, basta para evidenciar isso. Portanto, ainda que a vinda de Jesus não tivesse abolido os aspectos cerimonial e civil da antiga Lei de Israel, isso não favoreceria em nada a lei islâmica.

29 de julho de 2016

Profecia e divindade - parte 3

1.4. Sobre o vídeo

Diante do exposto na primeira e segunda partes da presente série, já posso dar início a alguns comentários sobre o conteúdo específico do vídeo, quanto aos aspectos que se relacionam com essas questões.

1.4.1. O Consolador

O primeiro é sobre a identidade e o papel do Consolador, que o preletor muçulmano cita nos segundos finais. Infelizmente o vídeo foi cortado nesse ponto, de modo que o argumento não termina. Mas sei que o propósito da citação é reforçar a convicção amplamente difundida entre os estudiosos muçulmanos de que Jesus predisse a vinda de Maomé, que seria o Consolador descrito por ele. Os trechos citados são os versículos 7 e, depois, 12 a 15 de João 16. No texto bíblico, Jesus diz aos discípulos: "Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei. [...] Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar."

Antes de tudo, deve ser observado é que essa não é a primeira menção ao Consolador no Evangelho segundo João. O trecho citado pelo preletor é parte de uma longa conversa de Jesus com os discípulos, que João relata extensamente e que começa ainda no capítulo 14. A primeira menção está em 14.16-17: "E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós." O contexto da conversa é a partida de Jesus, que afirma que em breve se ausentará e não estará mais com os discípulos. Lendo a conversa toda, fica claro que ele se refere à sua morte e posterior ascensão aos céus. Então Jesus promete que enviará outro para estar presente com os discípulos; o trecho que acabo de citar mostra que esse Consolador já está, de algum modo, presente; que o mundo, ou seja, aqueles que rejeitam Cristo, não podem vê-lo; que esse Consolador, tendo sido enviado, estará "nos" discípulos; e que ele ficará conosco para sempre. É fácil ver que Maomé não pode preencher nenhum desses requisitos sem um considerável malabarismo interpretativo. Ampliando um pouco esse princípio, eu diria que Jesus não parece estar falando de um ser humano, e muito menos de um que só surgiria no futuro distante. Enfatizo isso porque, além de Maomé, muitos líderes religiosos ao longo da história reivindicaram pessoalmente o papel de cumpridores dessa profecia, ou foram assim identificados por seus seguidores.

Em 14.26 há outra menção ao Consolador, na qual Jesus diz: "Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito". O elemento digno de nota aqui é que Jesus afirma que o Consolador é o Espírito Santo, expressão muito frequente na Bíblia, desde o Antigo Testamento. O Espírito Santo é visto tradicionalmente como a terceira pessoa da divina Trindade. Eu também creio nisso, mas não pretendo aqui repassar toda a evidência bíblica a respeito. Basta notar que, ao identificar o Consolador com o Espírito Santo, Jesus conectou esse termo relativamente desconhecido com um ser sobre o qual as Escrituras se referem com muita frequência, o que nos dá meios muito mais sólidos de determinar sua natureza e identidade.


Com isso fica fácil perceber que a Bíblia é muito clara ao relatar que o envio do Consolador que Jesus prometeu aqui se cumpriu ainda naquele tempo. Mais precisamente, esse cumprimento é relatado no capítulo 2 do livro dos Atos dos Apóstolos. Narra-se ali que, poucas semanas após a morte e ressurreição de Jesus, estando os discípulos reunidos em Jerusalém, "de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem" (Atos 2.2-4). (Observo de passagem que a ocorrência sobrenatural de um grande número de idiomas aponta para a abrangência universal da fé cristã, simbolizando a superação do âmbito nacionalista da religião judaica, conforme discutido na seção 1.2.) Esse acontecimento causa alvoroço entre a multidão presente, mas alguns zombam dos discípulos, dizendo que estão embriagados. Pedro toma então a palavra e discursa, começando assim (2.14-17): "Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: 'E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne'". A partir de então, o Espírito Santo é dado como presente no mundo. Darei apenas um exemplo entre muitos. Ainda no livro de Atos, capítulo 5, um cristão chamado Ananias é repreendido por Pedro por ter mentido, nos seguintes termos: "Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo [...]? Não mentiste aos homens, mas a Deus." Por aí fica muito claro não só que o Espírito Santo estava presente, mas também que ele é divino e não humano. Portanto, a própria Bíblia interpreta o significado da vinda do Consolador e sua identidade, e o faz de um modo que diverge muito da abordagem islâmica.

1.4.2. Confiabilidade da Bíblia

O segundo ponto do vídeo que eu gostaria de comentar é que o preletor muçulmano cita muitos trechos da Bíblia com o propósito geral de mostrar que ela apoia pontos de vista tradicionalmente aceitos entre muçulmanos, mas contrariados pelas diversas tradições cristãs - e, portanto, que a doutrina de Jesus era a doutrina islâmica, e quem quiser ser um bom seguidor de Jesus deve se converter ao islã. Adiante discutirei com mais detalhes as interpretações bíblicas específicas do preletor. Antes, porém, quero chamar a atenção para um aspecto mais geral no qual o conteúdo do vídeo me surpreendeu: o preletor em momento algum coloca em dúvida a autoridade divina e a autenticidade da Bíblia.


Digo que isso me surpreendeu porque esse não é o ponto de vista dominante entre os estudiosos muçulmanos, e muito menos entre os muçulmanos leigos. É verdade que o Alcorão menciona explicitamente que Deus revelou livros sagrados a Jesus e aos profetas judeus anteriores, e que esses livros sagrados são distintos do Alcorão. Inclusive, as traduções do Alcorão geralmente traduzem essas referências como "Torah" e "Evangelho", como em 3.3-4: "Ele fez descer sobre ti o Livro, com a verdade para confirmar o que havia antes dele. E fizera descer a Torah e o Evangelho, antes, como orientação para a humanidade". Contudo, não fica claro o que exatamente se deve entender por essas referências. Por exemplo, a Torah é o nome que os judeus dão aos cinco livros de Moisés; às vezes, por metonímia, essa palavra é usada para descrever todo o Antigo Testamento. No Novo Testamento, a palavra "evangelho" designa tanto a mensagem cristã quanto cada um dos quatro livros canônicos que relatam a vida, morte e ressurreição de Jesus. Não fica claro se o Alcorão usa essas palavras com algum desses sentidos ou com algum outro. Até onde sei, a convicção dominante entre os estudiosos muçulmanos é que as mensagens de Jesus e demais profetas judeus foram distorcidas ao longo do tempo, de modo que na Bíblia só restam fragmentos dos ensinamentos originais. Por isso, eles geralmente leem a Bíblia simplesmente descartando tudo o que lhes parece conflitar com o islã, exatamente como tantos estudiosos ocidentais modernos fazem - com a diferença de que estes não recorrem ao Alcorão, e sim a outras fontes de autoridade. Naturalmente, dizer, por exemplo, que Jesus não pode ter dito ou feito isto ou aquilo porque essa ideia conflita com o Alcorão (ou com a razão, ou com determinada concepção de ciência, ou com a filosofia de fulano ou beltrano) é um argumento válido para convencer quem já crê de antemão nessa outra fonte de autoridade, mas constituiria argumento circular se usado contra a autoridade e fidelidade dos relatos bíblicos enquanto tais.

A abordagem do preletor do vídeo escapa dessa dificuldade, mas paga um preço por isso: ao citar textos bíblicos como prova de que a Bíblia ensina basicamente o mesmo que o Alcorão, ele implicitamente endossa a confiabilidade do texto bíblico. Se não fizesse isso, seu argumento não valeria nada, pois poderia ser aplicado no sentido inverso: eu poderia "provar" que Maomé era um cristão selecionando os trechos corânicos que concordam com a Bíblia e dizendo que os demais trechos são corrupções do texto original. Não acho provável que o preletor do vídeo de fato acredite na fidedignidade integral da Bíblia, pois isso seria problemático demais para qualquer muçulmano, exceto, talvez, os das vertentes mais esotéricas (pois também existem linhas esotéricas e místicas dentro do islã - minoritárias, é claro). Acho mais provável que ele tenha usado isso como um artifício retórico. Não considero essa estratégia necessariamente ruim ou desonesta: conheço ao menos as principais objeções islâmicas à autoridade e confiabilidade da Bíblia, e posso imaginar que a problematização desse ponto complicaria demais o argumento do preletor. A abordagem escolhida pelo preletor se justifica, penso eu, por sua convicção manifesta de que, mesmo aceitando a autoridade bíblica para fins de argumentação, ele ainda poderia demonstrar facilmente sua tese. Contudo, é aí que, como eu disse, ele paga seu preço: ao pressupor a confiabilidade e a integridade da Bíblia, mesmo que apenas para fins de argumentação, ele se obriga a ser capaz de harmonizar os dois livros sagrados até o fim, e esse é um compromisso que o ponto de vista muçulmano mais convencional pode dispensar. Na próxima postagem passarei a analisar suas tentativas de conciliação.

26 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 2

1.3. Islamismo

Na primeira parte deste texto, expus brevemente as visões judaica e cristã sobre o progresso histórico da revelação divina e sua relação com outras religiões. Em relação a esse tema, o islã herdou toda essa estrutura de pensamento e essa bagagem histórica dessas duas religiões, mas também introduziu modificações. Antes de tudo, ao contrário do cristianismo e do judaísmo, e ao contrário do que muitos pensam sobre o próprio islã, ele é uma religião basicamente ecumênica. Claro que é um ecumenismo um tanto peculiar, não muito parecido com o que se entende por essa palavra no Ocidente, onde ela muitas vezes descreve uma atitude politicamente correta e um tanto diplomática, tanto no bom quanto no mau sentido do termo. O que quero dizer quando afirmo que o islã é ecumênico é que ele não se considera de modo algum a única religião que tem uma autêntica origem divina. Por outro lado, isso não significa que todas as religiões sejam verdadeiras ou que seja indiferente preferir uma ou outra.

Convém nos determos para entender isso um pouco melhor. Tenho em casa um livrinho intitulado O islã e o cristianismo, do apologista muçulmano Ulfat Aziz Assamad, que diz o seguinte:

"A abordagem islâmica do tema 'religiões comparadas' é bastante diferente do ponto de vista cristão. O cristão é educado na crença de que a sua é a única religião verdadeira, tendo o judaísmo sido uma preparação para o surgimento do cristianismo, e que todas as demais religiões são falsas. [...] Deste modo, ele acredita somente nos profetas e mestres religiosos de Israel, vendo como impostores quaisquer outros pretendentes à condição de profetas. Os missionários cristãos sempre empregaram seus esforços em provar que os fundadores de outras religiões são falsos e maus, tornando-lhes possível estabelecer a afirmação da exclusividade de Jesus Cristo. [...] O muçulmano, por outro lado, acredita na origem divina de todas as grandes religiões do mundo. O Livro Sagrado do Islã declara que Deus enviou profetas entre todas as nações para guiar o povo para a senda da verdade e da probidade. Sendo o Criador e Provedor de todos os mundos, Ele não pode ser parcial e escolher uma nação, com exclusão das demais, para revelar as Suas Mensagens. O muçulmano deve acreditar nos fundadores de todas as grandes religiões."

Eu faria algumas ressalvas ao modo como Assamad apresenta a questão nesse trecho, mas ele chama a atenção muito bem para essa divergência fundamental em relação ao pensamento judaico-cristão: o islã não só tem uma pretensão universal (identificando-se nisso com o cristianismo e não com o judaísmo), mas também, ao contrário de ambos, rejeita a ideia de uma relação passada exclusiva de Deus com Israel. A afirmação de Assamad tem, pelo que posso ver, bons fundamentos corânicos. O Alcorão diz, por exemplo: "para cada comunidade, há um mensageiro" (10.47). Outra passagem é mais explícita: "Por certo, Nós te enviamos, com a Verdade, por alvissareiro e admoestador. E nunca houve nação sem que por ela passasse um admoestador" (35.24). Outro ponto diz: "E, com efeito, enviamos mensageiros antes de ti. Dentre eles há os de que te fizemos menção, e dentre eles há os de que não te fizemos menção" (40.78). Considero essa passagem interessante porque o Alcorão menciona pelo nome uma porção de profetas anteriores a Maomé, e a maioria deles é composta de profetas bíblicos; mas essa passagem diz explicitamente que há outros além dos mencionados, o que combina bem com a ideia de que outros povos também tiveram seus profetas. A tradição teológica posterior chega a falar em duzentos e tantos mil profetas espalhados pelo mundo ao longo da história.

Maomé não foi, portanto, de modo algum o único profeta, mas o islã atribui a ele (ou, melhor dizendo, ao Alcorão) o papel que o cristianismo atribui a Jesus: o de portador da revelação plena, universal e definitiva. O Alcorão deixa claro em diversos pontos que o judaísmo e o cristianismo são também revelações divinas e seus livros sagrados contêm as palavras dos profetas de Allah, embora misturadas a muitos erros posteriores. Em vista disso, os judeus e cristãos - genericamente denominados "seguidores do Livro" ou "povos do Livro" - são reprovados por não reconhecerem o Profeta. Na verdade, me parece que o Alcorão dá margem à inclusão de algumas outras religiões além do judaísmo e do cristianismo. Em 2.62 são mencionados ao lado de judeus e cristãos os sabeus, um grupo religioso que já existia na Arábia antes do advento do islã. Para alguns muçulmanos, esse versículo estabelece a base para uma generalização do mesmo princípio a todos os cultos monoteístas. Historicamente, os zoroastrianos da Índia e da Pérsia também foram considerados um "povo do Livro", e há muçulmanos que estendem a mesma consideração a algumas vertentes do hinduísmo, por exemplo. Além disso, o Alcorão menciona (em 3.2-4) que Deus revelou "Al-Furqan", expressão um tanto enigmática que, para muitos muçulmanos, designa "todos os livros revelados" (uma das edições do Alcorão que tenho em casa, patrocinada pela família real saudita, diz isso explicitamente em nota de rodapé). Mas não se diz em parte alguma quantos são esses livros revelados, nem quais são eles. De qualquer modo, a afirmação de Assamad de que "todas as grandes religiões" (o que não é o mesmo que "todas as religiões") têm origem divina me parece bem fundamentada no Alcorão e na tradição e cosmovisão islâmicas.

Isso levanta a questão que o vídeo discute: diante do exposto, qual deve ser a atitude dos muçulmanos para com judeus e cristãos (ou monoteístas em geral)? No plano político e social, a atitude predominante, com variações para melhor e para pior, foi a de tolerá-los como cidadãos de segunda classe - ou seja, com alguns direitos a menos e restrições a mais, mas ainda em situação bem melhor que os idólatras, ou seja, os pagãos e outros adeptos de crenças não-monoteístas, que em teoria não podiam ser admitidos na comunidade sagrada islâmica. Mas, voltando ao exame das afirmações corânicas, devo dizer que considero a atitude do Alcorão um tanto ambígua e possivelmente contraditória. Digo "possivelmente" porque não posso deixar de me solidarizar com o islã nesse ponto. Eu creio na infalibilidade da Bíblia, mas sei que ela tem pontos de interpretação difícil e controversa, e não tenho respostas para todas as dificuldades; por outro lado, depois de muito estudar e refletir, considero essas dificuldades bem menos numerosas e menos graves do que supõem seus críticos mais convencionais, que não hesitam em acusá-la de erro e contradição diante do mais leve indício, e quase sempre em questões que poderiam ser solucionadas sem muita dificuldade com um pouco mais de estudo, reflexão e percepção moral. Vivendo isso na pele como cristão, devo reconhecer que não estudei o Alcorão com a mesma intensidade com que gostaria que os críticos da Bíblia a estudassem, de modo que não me sinto no direito de afirmar que ele é contraditório nesse ponto que passo a descrever. Contudo, posso dizer ao menos que vejo uma contradição aparente para a qual não enxergo saída, e vou compartilhar aqui o modo como vejo a questão.

Existem passagens corânicas que parecem falar muito favoravelmente dos judeus e cristãos, ou pelo menos de uma parcela deles. Por exemplo, 3.69 diz que apenas uma parte dos judeus e cristãos são inimigos do islã: "Uma facção dos seguidores do Livro almeja desencaminhar-vos. E não desencaminham senão a si mesmos, e não percebem". Em 3.110 a mesma ideia é transmitida ("Entre eles há os crentes, mas sua maioria é perversa"), e melhor desenvolvida um pouco adiante (3.112-115): "Eles não são todos iguais. Dentre os seguidores do Livro há uma comunidade reta, que recita os versículos de Allah nas horas da noite, enquanto se prosterna; eles creem em Allah e no Derradeiro Dia, ordenam o conveniente, coíbem o reprovável e se apressam para as boas ações. E esses são dos íntegros. E o que quer que façam de bom não lhes será negado. E Allah, dos piedosos, é Onisciente." O trecho de 2.62 é igualmente explícito: "Por certo, os que creem e os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus, qualquer dentre eles que creu em Allah e no Derradeiro Dia e fez o bem terá seu prêmio junto de seu Senhor; e nada haverá que temer por eles, e eles não se entristecerão".

Por outro lado, há trechos que dizem claramente que quem rejeitasse Maomé seria condenado por Allah, e doutrinas específicas do cristianismo também são condenadas, como a divindade de Cristo e a Trindade. A sura 5, por exemplo, diz: "São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria, ainda quando o mesmo Messias disse: Ó israelitas, adorai a Deus, Que é meu Senhor e vosso. A quem atribuir parceiros a Deus, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o fogo infernal! Os iníquos jamais terão socorredores. São blasfemos aqueles que dizem: Deus é um da Trindade!, portanto não existe divindade alguma além do Deus Único. Se não desistirem de tudo quanto afirmam, um doloroso castigo açoitará os incrédulos entre eles. Por que não se voltam para Deus e imploram o Seu perdão, uma vez que Ele é Indulgente, Misericordiosíssimo? O Messias, filho de Maria, não é mais do que um mensageiro, do nível dos mensageiro que o precederam; e sua mãe era sinceríssima."

Esse tipo de ambiguidade me leva a sustentar que, ao menos à primeira vista, tanto os muçulmanos mais ecumênicos (hoje minoria) quanto os mais exclusivistas (hoje maioria) têm versículos corânicos para citar em favor de seus pontos de vista.

Convém agora discorrer um pouco sobre a perspectiva histórica do islã. Já mencionei que o Antigo Testamento, embora de forma um tanto vaga, afirma algum tipo de progresso da revelação de Deus aos homens, e o judaísmo se via de algum modo como um prenúncio de algo maior, que atingiria todos os povos através de uma nova e futura aliança com Deus. Mencionei também que o cristianismo se apresentou e se apresenta como o cumprimento dessa promessa um tanto esquecida pelos próprios judeus. Num certo sentido, o islã compete com o cristianismo por esse status de revelação final, definitiva e universal. Por outro lado, a perspectiva islâmica sobre a história da revelação é diferente da cristã em dois aspectos importantes.

O primeiro é que o islã não reconhece exatamente um progresso da revelação. Para o muçulmano, é bastante contra-intuitiva a ideia de um progresso da religião, pois a religião autêntica, revelada, é o modo correto de o homem se relacionar de Deus, e a natureza humana não mudou; a divina, muito menos. Portanto, a mensagem que cada profeta trouxe ao mundo desde o início da história humana é substancialmente a mesma, e a multiplicidade de religiões que observamos no mundo só pode ter duas fontes: ou a mensagem profética foi explicitamente rejeitada (resultando o politeísmo e a idolatria), ou foi aceita, mas se corrompeu e perdeu algo de sua pureza com o passar do tempo (que é o caso dos "povos do Livro"). Assim, o Alcorão diz, por exemplo: "Abraão não era judeu nem cristão, mas monoteísta sincero, submisso. E não era dos idólatras" (3.67). Ou seja, Abraão era um profeta da religião perene, a mesma que Maomé pregava, e não de suas versões corrompidas posteriores, nem das crenças ainda mais distantes da verdade que negam até mesmo a unicidade e transcendência de Deus, que são os pontos fundamentais da fé islâmica. No Alcorão também consta a seguinte ordem de Deus a Maomé: "Cremos em Allah e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaque, e Jacó, e as Tribos, e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e a Ele somos submissos" (3.84). Trechos assim também confirmam a unidade e a indistinção fundamental entre as mensagens de todos os profetas.

O segundo aspecto no qual há uma divergência básica entre o islã e o cristianismo quanto à história da revelação é que o islã trouxe de volta a ênfase política do judaísmo antigo. O cristianismo, é claro, não é alheio a nenhuma área da vida humana, prega a autoridade e soberania de Cristo sobre todas as esferas da existência e não é favorável ao laicismo moderno. Mas o islã tem como sua preocupação central a formação de uma comunidade política que reflita a vontade de Deus em sua organização e em suas leis. É por isso que Maomé era simultaneamente um profeta religioso e um líder político e militar. É também por isso que a data inicial do calendário islâmico é a fuga de Maomé de Meca para Medina, ocasião em que foi fundada a primeira comunidade política regida pelo islã. E é também por isso que o direito, a jurisprudência e a teoria política ocuparam posições centrais nos desenvolvimentos intelectuais da civilização islâmica, e quase todos os grandes teólogos muçulmanos foram também grandes juristas. A relação entre fé e política no islã é tal que o muçulmano geralmente não se sente livre para praticar sua religião a menos que ela seja politicamente dominante, e essa é uma das fontes remotas de tantos problemas envolvidos na relação entre o islã e o Ocidente. Nesse sentido, pode-se dizer que a perspectiva islâmica constitui um retrocesso em relação ao cristianismo. E, quando digo "retrocesso", não só emito um juízo pessoal de valor, mas também pretendo indicar objetivamente que o islã retornou à perspectiva judaica do Antigo Testamento, que, como já expliquei, não separa os códigos moral, religioso e civil. Para o muçulmano, a conversão do mundo todo à sua fé é desejável, o que o distingue do judeu e o aproxima do cristão; mas, para o muçulmano, essa conversão significa antes de tudo a incorporação do mundo todo à Umma, a comunidade política sagrada.

5 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 1

Alguns meses atrás, um bom amigo que sabe do meu interesse por temas islâmicos pediu minha opinião sobre este vídeo, em que um preletor muçulmano responde a uma pergunta formulada por uma jovem católica, discorrendo em especial sobre a relação entre Jesus e o islã. Decidi escrever e publicar alguns comentários sobre esse vídeo, e é o que passo a fazer agora. No entanto, decidi ir além da mera réplica apologética, por me parecer que a situação abre portas para uma série de esclarecimentos relevantes sobre as semelhanças e diferenças entre as perspectivas judaica, cristã e islâmica sobre a natureza da revelação divina e a identidade de Jesus. Considero que esses esclarecimentos são necessários para um bom entendimento dos meus comentários sobre o vídeo; no entanto, o interesse desses comentários transcende em muito o propósito de analisar e refutar esse vídeo específico. Eu mesmo tenho ainda muito a aprender a respeito, e aceitarei de bom grado correções respeitosas e bem argumentadas. Deixo aqui esse texto como contribuição a todos os interessados nas relações entre as assim chamadas religiões abraâmicas, inclusive cristãos que queiram entender melhor o islã e muçulmanos interessados em entender melhor o cristianismo. Mas, embora o texto seja em grande parte descritivo, não tenho nenhuma pretensão de neutralidade, e quero deixar claro que minha perspectiva é declaradamente protestante e calvinista, ainda que muitas outras fontes de influência estejam também em jogo. Não espero que todos os que se consideram cristãos, ou mesmo calvinistas, concordem com tudo o que direi a seguir. Minha previsão é que o texto completo seja dividido em oito postagens, incluindo esta. Conforme indicam os subtítulos abaixo, começarei discorrendo genericamente sobre o modo como as três grandes fés monoteístas enxergam a questão das relações entre as diversas religiões.

1. Relações entre as religiões

1.1. Judaísmo

Para começar, vou falar um pouco sobre como o judaísmo e o cristianismo lidam com essa questão, começando pelo primeiro, que é a religião mais antiga. O Antigo Testamento declara enfaticamente a exclusividade de Israel - por exemplo, no Salmo 147.19-20: "[Deus] mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos, a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os seus preceitos. Aleluia!" Na verdade, mesmo no judaísmo antigo já existia certa pretensão de universalidade. Já no início, quando Deus fala pela primeira vez com Abraão (ancestral de Israel, que, portanto, ainda não existia), ele diz (Gênesis 12.3): "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados." Contudo, não fica muito claro o modo pelo qual isso aconteceria (minha opinião é que só a vinda de Jesus esclareceu a intenção de Deus quanto a isso), e não existe nem jamais existiu um projeto missionário judaico. Na prática, o judaísmo é uma religião nacional, mais ou menos (embora não exatamente) como o hinduísmo, sem nenhuma pretensão de universalidade: a questão nacional e a questão religiosa nunca foram desvinculadas. Pela estrutura própria dessa religião, uma universalização do judaísmo equivaleria a conquistar o mundo politicamente, o que nunca foi tentado nem desejado (exceto por uma ou outra seita fanática minoritária). Houve no Antigo Testamento conversões de pagãos ao judaísmo, mas elas eram raras, e geralmente o convertido se mudava para Israel e se tornava cidadão do país (um exemplo está no capítulo 1 do livro de Rute). O judaísmo era uma aliança feita entre Deus e Israel, e essa aliança incluía não só a observância de uma lei moral (princípios éticos para a relação com os homens e com o próprio Deus, resumidos nos Dez Mandamentos), mas também de uma lei cerimonial (rituais, sacerdócio, templo etc.) e uma lei civil (prescrevendo a conduta social correta e punições para diversos crimes). É por isso que a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão dos judeus pelo mundo constituiu uma crise imensa da qual a religião judaica nunca se recuperou.

1.2. Cristianismo

O cristianismo trouxe uma porção de inovações importantes a esse quadro. O Novo Testamento traz uma interpretação do Antigo Testamento que em muitos aspectos soou (e ainda soa) estranha aos que permaneceram no judaísmo. A religião de Jesus não estava confinada a questões de nacionalidade, nem a um determinado código civil ou cerimonial. O evangelho segundo Mateus, por exemplo, termina com a seguinte ordem de Jesus aos seus discípulos: "Toda a autoridade me foi dada nos céus e na terra. Ide, portanto, e fazei discípulos de todas as nações" (Mateus 28.18). O cristianismo teve, portanto, desde o início uma pretensão universal concreta que inexiste no judaísmo, e se desvinculou da estrutura jurídica, política e cultural específica de Israel. A questão do ingresso dos gentios na igreja rendeu, aliás, uma das grandes polêmicas da igreja primitiva; dentro de poucas décadas os gentios se tornaram maioria e o cristianismo foi cada vez mais reconhecido (pelos judeus e pelo governo romano) como uma nova religião, e não mais como uma nova seita judaica. Por outro lado, nem Jesus nem os apóstolos desprezaram o Antigo Testamento, nem consideraram a antiga Lei um erro ou perda de tempo, e tampouco negaram que o Deus que pregavam era o mesmo que havia se revelado aos seus antepassados naquela forma. Jesus foi bem enfático em Mateus 5.17-18: "Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra." Portanto, os cristãos têm com o judaísmo uma relação que não é exatamente de aceitação, mas também não é exatamente de rejeição. Um trecho bíblico que deixa isso muito claro é a conversa de Jesus com uma mulher samaritana, registrada no capítulo 5 do evangelho segundo João. A mulher pergunta a Jesus sobre o lugar correto da adoração a Deus: "Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar". Jesus responde: "Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vocês, samaritanos, adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade." Note-se que Jesus não negou que os judeus, e só eles, tinham real conhecimento de Deus, mas ao mesmo tempo afirmou que questões cerimoniais desse tipo em breve estariam ultrapassadas e não iam à raiz do problema de como devemos nos relacionar com Deus.

Desde os primórdios, portanto, a teologia cristã se esforçou para fazer justiça a essa relação delicada do cristianismo com o judaísmo: o Deus do Antigo Testamento era o Deus verdadeiro; a antiga Lei era de fato a vontade de Deus, e era pura, justa e boa; no entanto, o pacto de Deus com uma nação específica tinha acabado, e o cristão não estava preso às dimensões cerimonial e civil dessa Lei; o evangelho era para todos os povos, sem que isso significasse que todos os gentios deveriam se tornar judeus. Como harmonizar tudo isso? Essa questão é recorrente no Novo Testamento, e a resposta é sempre a mesma, apresentada de formas variadas. O apóstolo Paulo, no capítulo 4 da carta aos Gálatas, diz que a Lei foi uma preparação para a revelação suprema que Deus daria através de Jesus. Ele usa a figura de um tutor que cuida de alguém até que este atinja a maioridade, e diz também que a promessa de Deus a Abraão, que mencionei acima, só foi cumprida de fato por Cristo. A cidadania de um determinado país e a descendência física de Abraão não tinham mais importância agora. Suas palavras exatas foram: "Antes que viesse esta fé, estávamos sob a custódia da lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Assim, a lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa."

Semelhante a essa é a mensagem do próprio Paulo na carta aos Romanos (2.28-29). Um detalhe relevante é que a palavra "judeu" vem de Judá, um dos filhos de Israel e ancestral da principal tribo. A etimologia do nome "Judá" está ligada à palavra "louvor" em hebraico, de modo que Paulo está fazendo um trocadilho que não passaria despercebido aos seus leitores judeus: "Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é meramente exterior e física. Não! Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no coração, pelo Espírito, e não pela lei escrita. Para estes o louvor não provém dos homens, mas de Deus." Outro exemplo do próprio Paulo está na carta aos Colossenses (2.16-17), em que ele trata da observância das festas e rituais prescritos no Antigo Testamento: "Não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Estas coisas são sombras do que haveria de vir; a realidade, porém, encontra-se em Cristo." Aqui a revelação de Deus no Antigo Testamento é claramente apontada como mera sombra do que viria depois, ou seja, a revelação plena de Deus através de Jesus.

O exemplo mais significativo do Novo Testamento, porém, não vem de Paulo, e sim do autor anônimo da Epístola aos Hebreus. Essa carta é quase toda dedicada a situar Jesus em relação ao Antigo Testamento, e contém uma argumentação bastante elaborada (além de literariamente muito bela) que aponta para a superioridade de Jesus em relação a todas as figuras do Antigo Testamento: Abraão, Moisés, o sacerdócio levítico, a representação da presença de Deus no Templo, e assim por diante. Eu poderia citar dezenas de passagens dessa carta, mas citarei apenas duas. Uma delas está em Hebreus 8.6-7: "Agora, porém, o ministério que Jesus recebeu é superior ao deles, assim como também a aliança da qual ele é mediador é superior à antiga, sendo baseada em promessas superiores. Pois se aquela primeira aliança fosse perfeita, não seria necessário procurar lugar para outra." E passa a citar o profeta Jeremias, que havia dito: "'Estão chegando os dias', declara o Senhor, 'quando farei uma nova aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá'". O autor de Hebreus conclui (em 8.13): "Chamando 'nova' esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido, está a ponto de desaparecer". Portanto, a aliança do Antigo Testamento entre Deus e Israel tinha caráter provisório. A segunda citação é do capítulo 11, em que o autor passa 38 versículos descrevendo os antigos heróis da fé e seus feitos, e conclui (11.39-40): "Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados". Nós, que viemos depois de Cristo, vimos o cumprimento da promessa.

Se Jesus é o pleno cumprimento do Antigo Testamento, a exclusividade do povo judeu passa agora a ser a exclusividade de Cristo. O Novo Testamento indica isso de várias maneiras. Por exemplo, o próprio Jesus afirmou em João 3.36: "Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele". Pedro e João dizem claramente em Atos 4.11-12: "Este Jesus é 'a pedra que vocês, construtores, rejeitaram, e que se tornou a pedra angular'. Não há salvação em nenhum outro, pois, debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos". Paulo diz isso em uma de suas cartas (a primeira a Timóteo, 2.5): "Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus". Tendo Cristo vindo ao mundo, a Lei cumpriu seu propósito, e continuar apegado a ela para salvação em detrimento de uma revelação melhor não é uma boa ideia.