26 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 2

1.3. Islamismo

Na primeira parte deste texto, expus brevemente as visões judaica e cristã sobre o progresso histórico da revelação divina e sua relação com outras religiões. Em relação a esse tema, o islã herdou toda essa estrutura de pensamento e essa bagagem histórica dessas duas religiões, mas também introduziu modificações. Antes de tudo, ao contrário do cristianismo e do judaísmo, e ao contrário do que muitos pensam sobre o próprio islã, ele é uma religião basicamente ecumênica. Claro que é um ecumenismo um tanto peculiar, não muito parecido com o que se entende por essa palavra no Ocidente, onde ela muitas vezes descreve uma atitude politicamente correta e um tanto diplomática, tanto no bom quanto no mau sentido do termo. O que quero dizer quando afirmo que o islã é ecumênico é que ele não se considera de modo algum a única religião que tem uma autêntica origem divina. Por outro lado, isso não significa que todas as religiões sejam verdadeiras ou que seja indiferente preferir uma ou outra.

Convém nos determos para entender isso um pouco melhor. Tenho em casa um livrinho intitulado O islã e o cristianismo, do apologista muçulmano Ulfat Aziz Assamad, que diz o seguinte:

"A abordagem islâmica do tema 'religiões comparadas' é bastante diferente do ponto de vista cristão. O cristão é educado na crença de que a sua é a única religião verdadeira, tendo o judaísmo sido uma preparação para o surgimento do cristianismo, e que todas as demais religiões são falsas. [...] Deste modo, ele acredita somente nos profetas e mestres religiosos de Israel, vendo como impostores quaisquer outros pretendentes à condição de profetas. Os missionários cristãos sempre empregaram seus esforços em provar que os fundadores de outras religiões são falsos e maus, tornando-lhes possível estabelecer a afirmação da exclusividade de Jesus Cristo. [...] O muçulmano, por outro lado, acredita na origem divina de todas as grandes religiões do mundo. O Livro Sagrado do Islã declara que Deus enviou profetas entre todas as nações para guiar o povo para a senda da verdade e da probidade. Sendo o Criador e Provedor de todos os mundos, Ele não pode ser parcial e escolher uma nação, com exclusão das demais, para revelar as Suas Mensagens. O muçulmano deve acreditar nos fundadores de todas as grandes religiões."

Eu faria algumas ressalvas ao modo como Assamad apresenta a questão nesse trecho, mas ele chama a atenção muito bem para essa divergência fundamental em relação ao pensamento judaico-cristão: o islã não só tem uma pretensão universal (identificando-se nisso com o cristianismo e não com o judaísmo), mas também, ao contrário de ambos, rejeita a ideia de uma relação passada exclusiva de Deus com Israel. A afirmação de Assamad tem, pelo que posso ver, bons fundamentos corânicos. O Alcorão diz, por exemplo: "para cada comunidade, há um mensageiro" (10.47). Outra passagem é mais explícita: "Por certo, Nós te enviamos, com a Verdade, por alvissareiro e admoestador. E nunca houve nação sem que por ela passasse um admoestador" (35.24). Outro ponto diz: "E, com efeito, enviamos mensageiros antes de ti. Dentre eles há os de que te fizemos menção, e dentre eles há os de que não te fizemos menção" (40.78). Considero essa passagem interessante porque o Alcorão menciona pelo nome uma porção de profetas anteriores a Maomé, e a maioria deles é composta de profetas bíblicos; mas essa passagem diz explicitamente que há outros além dos mencionados, o que combina bem com a ideia de que outros povos também tiveram seus profetas. A tradição teológica posterior chega a falar em duzentos e tantos mil profetas espalhados pelo mundo ao longo da história.

Maomé não foi, portanto, de modo algum o único profeta, mas o islã atribui a ele (ou, melhor dizendo, ao Alcorão) o papel que o cristianismo atribui a Jesus: o de portador da revelação plena, universal e definitiva. O Alcorão deixa claro em diversos pontos que o judaísmo e o cristianismo são também revelações divinas e seus livros sagrados contêm as palavras dos profetas de Allah, embora misturadas a muitos erros posteriores. Em vista disso, os judeus e cristãos - genericamente denominados "seguidores do Livro" ou "povos do Livro" - são reprovados por não reconhecerem o Profeta. Na verdade, me parece que o Alcorão dá margem à inclusão de algumas outras religiões além do judaísmo e do cristianismo. Em 2.62 são mencionados ao lado de judeus e cristãos os sabeus, um grupo religioso que já existia na Arábia antes do advento do islã. Para alguns muçulmanos, esse versículo estabelece a base para uma generalização do mesmo princípio a todos os cultos monoteístas. Historicamente, os zoroastrianos da Índia e da Pérsia também foram considerados um "povo do Livro", e há muçulmanos que estendem a mesma consideração a algumas vertentes do hinduísmo, por exemplo. Além disso, o Alcorão menciona (em 3.2-4) que Deus revelou "Al-Furqan", expressão um tanto enigmática que, para muitos muçulmanos, designa "todos os livros revelados" (uma das edições do Alcorão que tenho em casa, patrocinada pela família real saudita, diz isso explicitamente em nota de rodapé). Mas não se diz em parte alguma quantos são esses livros revelados, nem quais são eles. De qualquer modo, a afirmação de Assamad de que "todas as grandes religiões" (o que não é o mesmo que "todas as religiões") têm origem divina me parece bem fundamentada no Alcorão e na tradição e cosmovisão islâmicas.

Isso levanta a questão que o vídeo discute: diante do exposto, qual deve ser a atitude dos muçulmanos para com judeus e cristãos (ou monoteístas em geral)? No plano político e social, a atitude predominante, com variações para melhor e para pior, foi a de tolerá-los como cidadãos de segunda classe - ou seja, com alguns direitos a menos e restrições a mais, mas ainda em situação bem melhor que os idólatras, ou seja, os pagãos e outros adeptos de crenças não-monoteístas, que em teoria não podiam ser admitidos na comunidade sagrada islâmica. Mas, voltando ao exame das afirmações corânicas, devo dizer que considero a atitude do Alcorão um tanto ambígua e possivelmente contraditória. Digo "possivelmente" porque não posso deixar de me solidarizar com o islã nesse ponto. Eu creio na infalibilidade da Bíblia, mas sei que ela tem pontos de interpretação difícil e controversa, e não tenho respostas para todas as dificuldades; por outro lado, depois de muito estudar e refletir, considero essas dificuldades bem menos numerosas e menos graves do que supõem seus críticos mais convencionais, que não hesitam em acusá-la de erro e contradição diante do mais leve indício, e quase sempre em questões que poderiam ser solucionadas sem muita dificuldade com um pouco mais de estudo, reflexão e percepção moral. Vivendo isso na pele como cristão, devo reconhecer que não estudei o Alcorão com a mesma intensidade com que gostaria que os críticos da Bíblia a estudassem, de modo que não me sinto no direito de afirmar que ele é contraditório nesse ponto que passo a descrever. Contudo, posso dizer ao menos que vejo uma contradição aparente para a qual não enxergo saída, e vou compartilhar aqui o modo como vejo a questão.

Existem passagens corânicas que parecem falar muito favoravelmente dos judeus e cristãos, ou pelo menos de uma parcela deles. Por exemplo, 3.69 diz que apenas uma parte dos judeus e cristãos são inimigos do islã: "Uma facção dos seguidores do Livro almeja desencaminhar-vos. E não desencaminham senão a si mesmos, e não percebem". Em 3.110 a mesma ideia é transmitida ("Entre eles há os crentes, mas sua maioria é perversa"), e melhor desenvolvida um pouco adiante (3.112-115): "Eles não são todos iguais. Dentre os seguidores do Livro há uma comunidade reta, que recita os versículos de Allah nas horas da noite, enquanto se prosterna; eles creem em Allah e no Derradeiro Dia, ordenam o conveniente, coíbem o reprovável e se apressam para as boas ações. E esses são dos íntegros. E o que quer que façam de bom não lhes será negado. E Allah, dos piedosos, é Onisciente." O trecho de 2.62 é igualmente explícito: "Por certo, os que creem e os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus, qualquer dentre eles que creu em Allah e no Derradeiro Dia e fez o bem terá seu prêmio junto de seu Senhor; e nada haverá que temer por eles, e eles não se entristecerão".

Por outro lado, há trechos que dizem claramente que quem rejeitasse Maomé seria condenado por Allah, e doutrinas específicas do cristianismo também são condenadas, como a divindade de Cristo e a Trindade. A sura 5, por exemplo, diz: "São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria, ainda quando o mesmo Messias disse: Ó israelitas, adorai a Deus, Que é meu Senhor e vosso. A quem atribuir parceiros a Deus, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o fogo infernal! Os iníquos jamais terão socorredores. São blasfemos aqueles que dizem: Deus é um da Trindade!, portanto não existe divindade alguma além do Deus Único. Se não desistirem de tudo quanto afirmam, um doloroso castigo açoitará os incrédulos entre eles. Por que não se voltam para Deus e imploram o Seu perdão, uma vez que Ele é Indulgente, Misericordiosíssimo? O Messias, filho de Maria, não é mais do que um mensageiro, do nível dos mensageiro que o precederam; e sua mãe era sinceríssima."

Esse tipo de ambiguidade me leva a sustentar que, ao menos à primeira vista, tanto os muçulmanos mais ecumênicos (hoje minoria) quanto os mais exclusivistas (hoje maioria) têm versículos corânicos para citar em favor de seus pontos de vista.

Convém agora discorrer um pouco sobre a perspectiva histórica do islã. Já mencionei que o Antigo Testamento, embora de forma um tanto vaga, afirma algum tipo de progresso da revelação de Deus aos homens, e o judaísmo se via de algum modo como um prenúncio de algo maior, que atingiria todos os povos através de uma nova e futura aliança com Deus. Mencionei também que o cristianismo se apresentou e se apresenta como o cumprimento dessa promessa um tanto esquecida pelos próprios judeus. Num certo sentido, o islã compete com o cristianismo por esse status de revelação final, definitiva e universal. Por outro lado, a perspectiva islâmica sobre a história da revelação é diferente da cristã em dois aspectos importantes.

O primeiro é que o islã não reconhece exatamente um progresso da revelação. Para o muçulmano, é bastante contra-intuitiva a ideia de um progresso da religião, pois a religião autêntica, revelada, é o modo correto de o homem se relacionar de Deus, e a natureza humana não mudou; a divina, muito menos. Portanto, a mensagem que cada profeta trouxe ao mundo desde o início da história humana é substancialmente a mesma, e a multiplicidade de religiões que observamos no mundo só pode ter duas fontes: ou a mensagem profética foi explicitamente rejeitada (resultando o politeísmo e a idolatria), ou foi aceita, mas se corrompeu e perdeu algo de sua pureza com o passar do tempo (que é o caso dos "povos do Livro"). Assim, o Alcorão diz, por exemplo: "Abraão não era judeu nem cristão, mas monoteísta sincero, submisso. E não era dos idólatras" (3.67). Ou seja, Abraão era um profeta da religião perene, a mesma que Maomé pregava, e não de suas versões corrompidas posteriores, nem das crenças ainda mais distantes da verdade que negam até mesmo a unicidade e transcendência de Deus, que são os pontos fundamentais da fé islâmica. No Alcorão também consta a seguinte ordem de Deus a Maomé: "Cremos em Allah e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaque, e Jacó, e as Tribos, e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e a Ele somos submissos" (3.84). Trechos assim também confirmam a unidade e a indistinção fundamental entre as mensagens de todos os profetas.

O segundo aspecto no qual há uma divergência básica entre o islã e o cristianismo quanto à história da revelação é que o islã trouxe de volta a ênfase política do judaísmo antigo. O cristianismo, é claro, não é alheio a nenhuma área da vida humana, prega a autoridade e soberania de Cristo sobre todas as esferas da existência e não é favorável ao laicismo moderno. Mas o islã tem como sua preocupação central a formação de uma comunidade política que reflita a vontade de Deus em sua organização e em suas leis. É por isso que Maomé era simultaneamente um profeta religioso e um líder político e militar. É também por isso que a data inicial do calendário islâmico é a fuga de Maomé de Meca para Medina, ocasião em que foi fundada a primeira comunidade política regida pelo islã. E é também por isso que o direito, a jurisprudência e a teoria política ocuparam posições centrais nos desenvolvimentos intelectuais da civilização islâmica, e quase todos os grandes teólogos muçulmanos foram também grandes juristas. A relação entre fé e política no islã é tal que o muçulmano geralmente não se sente livre para praticar sua religião a menos que ela seja politicamente dominante, e essa é uma das fontes remotas de tantos problemas envolvidos na relação entre o islã e o Ocidente. Nesse sentido, pode-se dizer que a perspectiva islâmica constitui um retrocesso em relação ao cristianismo. E, quando digo "retrocesso", não só emito um juízo pessoal de valor, mas também pretendo indicar objetivamente que o islã retornou à perspectiva judaica do Antigo Testamento, que, como já expliquei, não separa os códigos moral, religioso e civil. Para o muçulmano, a conversão do mundo todo à sua fé é desejável, o que o distingue do judeu e o aproxima do cristão; mas, para o muçulmano, essa conversão significa antes de tudo a incorporação do mundo todo à Umma, a comunidade política sagrada.

5 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 1

Alguns meses atrás, um bom amigo que sabe do meu interesse por temas islâmicos pediu minha opinião sobre este vídeo, em que um preletor muçulmano responde a uma pergunta formulada por uma jovem católica, discorrendo em especial sobre a relação entre Jesus e o islã. Decidi escrever e publicar alguns comentários sobre esse vídeo, e é o que passo a fazer agora. No entanto, decidi ir além da mera réplica apologética, por me parecer que a situação abre portas para uma série de esclarecimentos relevantes sobre as semelhanças e diferenças entre as perspectivas judaica, cristã e islâmica sobre a natureza da revelação divina e a identidade de Jesus. Considero que esses esclarecimentos são necessários para um bom entendimento dos meus comentários sobre o vídeo; no entanto, o interesse desses comentários transcende em muito o propósito de analisar e refutar esse vídeo específico. Eu mesmo tenho ainda muito a aprender a respeito, e aceitarei de bom grado correções respeitosas e bem argumentadas. Deixo aqui esse texto como contribuição a todos os interessados nas relações entre as assim chamadas religiões abraâmicas, inclusive cristãos que queiram entender melhor o islã e muçulmanos interessados em entender melhor o cristianismo. Mas, embora o texto seja em grande parte descritivo, não tenho nenhuma pretensão de neutralidade, e quero deixar claro que minha perspectiva é declaradamente protestante e calvinista, ainda que muitas outras fontes de influência estejam também em jogo. Não espero que todos os que se consideram cristãos, ou mesmo calvinistas, concordem com tudo o que direi a seguir. Minha previsão é que o texto completo seja dividido em oito postagens, incluindo esta. Conforme indicam os subtítulos abaixo, começarei discorrendo genericamente sobre o modo como as três grandes fés monoteístas enxergam a questão das relações entre as diversas religiões.

1. Relações entre as religiões

1.1. Judaísmo

Para começar, vou falar um pouco sobre como o judaísmo e o cristianismo lidam com essa questão, começando pelo primeiro, que é a religião mais antiga. O Antigo Testamento declara enfaticamente a exclusividade de Israel - por exemplo, no Salmo 147.19-20: "[Deus] mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos, a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os seus preceitos. Aleluia!" Na verdade, mesmo no judaísmo antigo já existia certa pretensão de universalidade. Já no início, quando Deus fala pela primeira vez com Abraão (ancestral de Israel, que, portanto, ainda não existia), ele diz (Gênesis 12.3): "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados." Contudo, não fica muito claro o modo pelo qual isso aconteceria (minha opinião é que só a vinda de Jesus esclareceu a intenção de Deus quanto a isso), e não existe nem jamais existiu um projeto missionário judaico. Na prática, o judaísmo é uma religião nacional, mais ou menos (embora não exatamente) como o hinduísmo, sem nenhuma pretensão de universalidade: a questão nacional e a questão religiosa nunca foram desvinculadas. Pela estrutura própria dessa religião, uma universalização do judaísmo equivaleria a conquistar o mundo politicamente, o que nunca foi tentado nem desejado (exceto por uma ou outra seita fanática minoritária). Houve no Antigo Testamento conversões de pagãos ao judaísmo, mas elas eram raras, e geralmente o convertido se mudava para Israel e se tornava cidadão do país (um exemplo está no capítulo 1 do livro de Rute). O judaísmo era uma aliança feita entre Deus e Israel, e essa aliança incluía não só a observância de uma lei moral (princípios éticos para a relação com os homens e com o próprio Deus, resumidos nos Dez Mandamentos), mas também de uma lei cerimonial (rituais, sacerdócio, templo etc.) e uma lei civil (prescrevendo a conduta social correta e punições para diversos crimes). É por isso que a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão dos judeus pelo mundo constituiu uma crise imensa da qual a religião judaica nunca se recuperou.

1.2. Cristianismo

O cristianismo trouxe uma porção de inovações importantes a esse quadro. O Novo Testamento traz uma interpretação do Antigo Testamento que em muitos aspectos soou (e ainda soa) estranha aos que permaneceram no judaísmo. A religião de Jesus não estava confinada a questões de nacionalidade, nem a um determinado código civil ou cerimonial. O evangelho segundo Mateus, por exemplo, termina com a seguinte ordem de Jesus aos seus discípulos: "Toda a autoridade me foi dada nos céus e na terra. Ide, portanto, e fazei discípulos de todas as nações" (Mateus 28.18). O cristianismo teve, portanto, desde o início uma pretensão universal concreta que inexiste no judaísmo, e se desvinculou da estrutura jurídica, política e cultural específica de Israel. A questão do ingresso dos gentios na igreja rendeu, aliás, uma das grandes polêmicas da igreja primitiva; dentro de poucas décadas os gentios se tornaram maioria e o cristianismo foi cada vez mais reconhecido (pelos judeus e pelo governo romano) como uma nova religião, e não mais como uma nova seita judaica. Por outro lado, nem Jesus nem os apóstolos desprezaram o Antigo Testamento, nem consideraram a antiga Lei um erro ou perda de tempo, e tampouco negaram que o Deus que pregavam era o mesmo que havia se revelado aos seus antepassados naquela forma. Jesus foi bem enfático em Mateus 5.17-18: "Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra." Portanto, os cristãos têm com o judaísmo uma relação que não é exatamente de aceitação, mas também não é exatamente de rejeição. Um trecho bíblico que deixa isso muito claro é a conversa de Jesus com uma mulher samaritana, registrada no capítulo 5 do evangelho segundo João. A mulher pergunta a Jesus sobre o lugar correto da adoração a Deus: "Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar". Jesus responde: "Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vocês, samaritanos, adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade." Note-se que Jesus não negou que os judeus, e só eles, tinham real conhecimento de Deus, mas ao mesmo tempo afirmou que questões cerimoniais desse tipo em breve estariam ultrapassadas e não iam à raiz do problema de como devemos nos relacionar com Deus.

Desde os primórdios, portanto, a teologia cristã se esforçou para fazer justiça a essa relação delicada do cristianismo com o judaísmo: o Deus do Antigo Testamento era o Deus verdadeiro; a antiga Lei era de fato a vontade de Deus, e era pura, justa e boa; no entanto, o pacto de Deus com uma nação específica tinha acabado, e o cristão não estava preso às dimensões cerimonial e civil dessa Lei; o evangelho era para todos os povos, sem que isso significasse que todos os gentios deveriam se tornar judeus. Como harmonizar tudo isso? Essa questão é recorrente no Novo Testamento, e a resposta é sempre a mesma, apresentada de formas variadas. O apóstolo Paulo, no capítulo 4 da carta aos Gálatas, diz que a Lei foi uma preparação para a revelação suprema que Deus daria através de Jesus. Ele usa a figura de um tutor que cuida de alguém até que este atinja a maioridade, e diz também que a promessa de Deus a Abraão, que mencionei acima, só foi cumprida de fato por Cristo. A cidadania de um determinado país e a descendência física de Abraão não tinham mais importância agora. Suas palavras exatas foram: "Antes que viesse esta fé, estávamos sob a custódia da lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Assim, a lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa."

Semelhante a essa é a mensagem do próprio Paulo na carta aos Romanos (2.28-29). Um detalhe relevante é que a palavra "judeu" vem de Judá, um dos filhos de Israel e ancestral da principal tribo. A etimologia do nome "Judá" está ligada à palavra "louvor" em hebraico, de modo que Paulo está fazendo um trocadilho que não passaria despercebido aos seus leitores judeus: "Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é meramente exterior e física. Não! Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no coração, pelo Espírito, e não pela lei escrita. Para estes o louvor não provém dos homens, mas de Deus." Outro exemplo do próprio Paulo está na carta aos Colossenses (2.16-17), em que ele trata da observância das festas e rituais prescritos no Antigo Testamento: "Não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Estas coisas são sombras do que haveria de vir; a realidade, porém, encontra-se em Cristo." Aqui a revelação de Deus no Antigo Testamento é claramente apontada como mera sombra do que viria depois, ou seja, a revelação plena de Deus através de Jesus.

O exemplo mais significativo do Novo Testamento, porém, não vem de Paulo, e sim do autor anônimo da Epístola aos Hebreus. Essa carta é quase toda dedicada a situar Jesus em relação ao Antigo Testamento, e contém uma argumentação bastante elaborada (além de literariamente muito bela) que aponta para a superioridade de Jesus em relação a todas as figuras do Antigo Testamento: Abraão, Moisés, o sacerdócio levítico, a representação da presença de Deus no Templo, e assim por diante. Eu poderia citar dezenas de passagens dessa carta, mas citarei apenas duas. Uma delas está em Hebreus 8.6-7: "Agora, porém, o ministério que Jesus recebeu é superior ao deles, assim como também a aliança da qual ele é mediador é superior à antiga, sendo baseada em promessas superiores. Pois se aquela primeira aliança fosse perfeita, não seria necessário procurar lugar para outra." E passa a citar o profeta Jeremias, que havia dito: "'Estão chegando os dias', declara o Senhor, 'quando farei uma nova aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá'". O autor de Hebreus conclui (em 8.13): "Chamando 'nova' esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido, está a ponto de desaparecer". Portanto, a aliança do Antigo Testamento entre Deus e Israel tinha caráter provisório. A segunda citação é do capítulo 11, em que o autor passa 38 versículos descrevendo os antigos heróis da fé e seus feitos, e conclui (11.39-40): "Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados". Nós, que viemos depois de Cristo, vimos o cumprimento da promessa.

Se Jesus é o pleno cumprimento do Antigo Testamento, a exclusividade do povo judeu passa agora a ser a exclusividade de Cristo. O Novo Testamento indica isso de várias maneiras. Por exemplo, o próprio Jesus afirmou em João 3.36: "Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele". Pedro e João dizem claramente em Atos 4.11-12: "Este Jesus é 'a pedra que vocês, construtores, rejeitaram, e que se tornou a pedra angular'. Não há salvação em nenhum outro, pois, debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos". Paulo diz isso em uma de suas cartas (a primeira a Timóteo, 2.5): "Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus". Tendo Cristo vindo ao mundo, a Lei cumpriu seu propósito, e continuar apegado a ela para salvação em detrimento de uma revelação melhor não é uma boa ideia.