5 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 1

Alguns meses atrás, um bom amigo que sabe do meu interesse por temas islâmicos pediu minha opinião sobre este vídeo, em que um preletor muçulmano responde a uma pergunta formulada por uma jovem católica, discorrendo em especial sobre a relação entre Jesus e o islã. Decidi escrever e publicar alguns comentários sobre esse vídeo, e é o que passo a fazer agora. No entanto, decidi ir além da mera réplica apologética, por me parecer que a situação abre portas para uma série de esclarecimentos relevantes sobre as semelhanças e diferenças entre as perspectivas judaica, cristã e islâmica sobre a natureza da revelação divina e a identidade de Jesus. Considero que esses esclarecimentos são necessários para um bom entendimento dos meus comentários sobre o vídeo; no entanto, o interesse desses comentários transcende em muito o propósito de analisar e refutar esse vídeo específico. Eu mesmo tenho ainda muito a aprender a respeito, e aceitarei de bom grado correções respeitosas e bem argumentadas. Deixo aqui esse texto como contribuição a todos os interessados nas relações entre as assim chamadas religiões abraâmicas, inclusive cristãos que queiram entender melhor o islã e muçulmanos interessados em entender melhor o cristianismo. Mas, embora o texto seja em grande parte descritivo, não tenho nenhuma pretensão de neutralidade, e quero deixar claro que minha perspectiva é declaradamente protestante e calvinista, ainda que muitas outras fontes de influência estejam também em jogo. Não espero que todos os que se consideram cristãos, ou mesmo calvinistas, concordem com tudo o que direi a seguir. Minha previsão é que o texto completo seja dividido em oito postagens, incluindo esta. Conforme indicam os subtítulos abaixo, começarei discorrendo genericamente sobre o modo como as três grandes fés monoteístas enxergam a questão das relações entre as diversas religiões.

1. Relações entre as religiões

1.1. Judaísmo

Para começar, vou falar um pouco sobre como o judaísmo e o cristianismo lidam com essa questão, começando pelo primeiro, que é a religião mais antiga. O Antigo Testamento declara enfaticamente a exclusividade de Israel - por exemplo, no Salmo 147.19-20: "[Deus] mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos, a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os seus preceitos. Aleluia!" Na verdade, mesmo no judaísmo antigo já existia certa pretensão de universalidade. Já no início, quando Deus fala pela primeira vez com Abraão (ancestral de Israel, que, portanto, ainda não existia), ele diz (Gênesis 12.3): "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados." Contudo, não fica muito claro o modo pelo qual isso aconteceria (minha opinião é que só a vinda de Jesus esclareceu a intenção de Deus quanto a isso), e não existe nem jamais existiu um projeto missionário judaico. Na prática, o judaísmo é uma religião nacional, mais ou menos (embora não exatamente) como o hinduísmo, sem nenhuma pretensão de universalidade: a questão nacional e a questão religiosa nunca foram desvinculadas. Pela estrutura própria dessa religião, uma universalização do judaísmo equivaleria a conquistar o mundo politicamente, o que nunca foi tentado nem desejado (exceto por uma ou outra seita fanática minoritária). Houve no Antigo Testamento conversões de pagãos ao judaísmo, mas elas eram raras, e geralmente o convertido se mudava para Israel e se tornava cidadão do país (um exemplo está no capítulo 1 do livro de Rute). O judaísmo era uma aliança feita entre Deus e Israel, e essa aliança incluía não só a observância de uma lei moral (princípios éticos para a relação com os homens e com o próprio Deus, resumidos nos Dez Mandamentos), mas também de uma lei cerimonial (rituais, sacerdócio, templo etc.) e uma lei civil (prescrevendo a conduta social correta e punições para diversos crimes). É por isso que a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão dos judeus pelo mundo constituiu uma crise imensa da qual a religião judaica nunca se recuperou.

1.2. Cristianismo

O cristianismo trouxe uma porção de inovações importantes a esse quadro. O Novo Testamento traz uma interpretação do Antigo Testamento que em muitos aspectos soou (e ainda soa) estranha aos que permaneceram no judaísmo. A religião de Jesus não estava confinada a questões de nacionalidade, nem a um determinado código civil ou cerimonial. O evangelho segundo Mateus, por exemplo, termina com a seguinte ordem de Jesus aos seus discípulos: "Toda a autoridade me foi dada nos céus e na terra. Ide, portanto, e fazei discípulos de todas as nações" (Mateus 28.18). O cristianismo teve, portanto, desde o início uma pretensão universal concreta que inexiste no judaísmo, e se desvinculou da estrutura jurídica, política e cultural específica de Israel. A questão do ingresso dos gentios na igreja rendeu, aliás, uma das grandes polêmicas da igreja primitiva; dentro de poucas décadas os gentios se tornaram maioria e o cristianismo foi cada vez mais reconhecido (pelos judeus e pelo governo romano) como uma nova religião, e não mais como uma nova seita judaica. Por outro lado, nem Jesus nem os apóstolos desprezaram o Antigo Testamento, nem consideraram a antiga Lei um erro ou perda de tempo, e tampouco negaram que o Deus que pregavam era o mesmo que havia se revelado aos seus antepassados naquela forma. Jesus foi bem enfático em Mateus 5.17-18: "Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra." Portanto, os cristãos têm com o judaísmo uma relação que não é exatamente de aceitação, mas também não é exatamente de rejeição. Um trecho bíblico que deixa isso muito claro é a conversa de Jesus com uma mulher samaritana, registrada no capítulo 5 do evangelho segundo João. A mulher pergunta a Jesus sobre o lugar correto da adoração a Deus: "Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar". Jesus responde: "Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vocês, samaritanos, adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade." Note-se que Jesus não negou que os judeus, e só eles, tinham real conhecimento de Deus, mas ao mesmo tempo afirmou que questões cerimoniais desse tipo em breve estariam ultrapassadas e não iam à raiz do problema de como devemos nos relacionar com Deus.

Desde os primórdios, portanto, a teologia cristã se esforçou para fazer justiça a essa relação delicada do cristianismo com o judaísmo: o Deus do Antigo Testamento era o Deus verdadeiro; a antiga Lei era de fato a vontade de Deus, e era pura, justa e boa; no entanto, o pacto de Deus com uma nação específica tinha acabado, e o cristão não estava preso às dimensões cerimonial e civil dessa Lei; o evangelho era para todos os povos, sem que isso significasse que todos os gentios deveriam se tornar judeus. Como harmonizar tudo isso? Essa questão é recorrente no Novo Testamento, e a resposta é sempre a mesma, apresentada de formas variadas. O apóstolo Paulo, no capítulo 4 da carta aos Gálatas, diz que a Lei foi uma preparação para a revelação suprema que Deus daria através de Jesus. Ele usa a figura de um tutor que cuida de alguém até que este atinja a maioridade, e diz também que a promessa de Deus a Abraão, que mencionei acima, só foi cumprida de fato por Cristo. A cidadania de um determinado país e a descendência física de Abraão não tinham mais importância agora. Suas palavras exatas foram: "Antes que viesse esta fé, estávamos sob a custódia da lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Assim, a lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa."

Semelhante a essa é a mensagem do próprio Paulo na carta aos Romanos (2.28-29). Um detalhe relevante é que a palavra "judeu" vem de Judá, um dos filhos de Israel e ancestral da principal tribo. A etimologia do nome "Judá" está ligada à palavra "louvor" em hebraico, de modo que Paulo está fazendo um trocadilho que não passaria despercebido aos seus leitores judeus: "Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é meramente exterior e física. Não! Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no coração, pelo Espírito, e não pela lei escrita. Para estes o louvor não provém dos homens, mas de Deus." Outro exemplo do próprio Paulo está na carta aos Colossenses (2.16-17), em que ele trata da observância das festas e rituais prescritos no Antigo Testamento: "Não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Estas coisas são sombras do que haveria de vir; a realidade, porém, encontra-se em Cristo." Aqui a revelação de Deus no Antigo Testamento é claramente apontada como mera sombra do que viria depois, ou seja, a revelação plena de Deus através de Jesus.

O exemplo mais significativo do Novo Testamento, porém, não vem de Paulo, e sim do autor anônimo da Epístola aos Hebreus. Essa carta é quase toda dedicada a situar Jesus em relação ao Antigo Testamento, e contém uma argumentação bastante elaborada (além de literariamente muito bela) que aponta para a superioridade de Jesus em relação a todas as figuras do Antigo Testamento: Abraão, Moisés, o sacerdócio levítico, a representação da presença de Deus no Templo, e assim por diante. Eu poderia citar dezenas de passagens dessa carta, mas citarei apenas duas. Uma delas está em Hebreus 8.6-7: "Agora, porém, o ministério que Jesus recebeu é superior ao deles, assim como também a aliança da qual ele é mediador é superior à antiga, sendo baseada em promessas superiores. Pois se aquela primeira aliança fosse perfeita, não seria necessário procurar lugar para outra." E passa a citar o profeta Jeremias, que havia dito: "'Estão chegando os dias', declara o Senhor, 'quando farei uma nova aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá'". O autor de Hebreus conclui (em 8.13): "Chamando 'nova' esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido, está a ponto de desaparecer". Portanto, a aliança do Antigo Testamento entre Deus e Israel tinha caráter provisório. A segunda citação é do capítulo 11, em que o autor passa 38 versículos descrevendo os antigos heróis da fé e seus feitos, e conclui (11.39-40): "Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados". Nós, que viemos depois de Cristo, vimos o cumprimento da promessa.

Se Jesus é o pleno cumprimento do Antigo Testamento, a exclusividade do povo judeu passa agora a ser a exclusividade de Cristo. O Novo Testamento indica isso de várias maneiras. Por exemplo, o próprio Jesus afirmou em João 3.36: "Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele". Pedro e João dizem claramente em Atos 4.11-12: "Este Jesus é 'a pedra que vocês, construtores, rejeitaram, e que se tornou a pedra angular'. Não há salvação em nenhum outro, pois, debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos". Paulo diz isso em uma de suas cartas (a primeira a Timóteo, 2.5): "Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus". Tendo Cristo vindo ao mundo, a Lei cumpriu seu propósito, e continuar apegado a ela para salvação em detrimento de uma revelação melhor não é uma boa ideia.

Um comentário:

Unknown disse...

Caro André,

a série de postagens começou muito bem! Estou ansioso esperando pela segunda parte.

Um abraço.