26 de junho de 2016

Profecia e divindade - parte 2

1.3. Islamismo

Na primeira parte deste texto, expus brevemente as visões judaica e cristã sobre o progresso histórico da revelação divina e sua relação com outras religiões. Em relação a esse tema, o islã herdou toda essa estrutura de pensamento e essa bagagem histórica dessas duas religiões, mas também introduziu modificações. Antes de tudo, ao contrário do cristianismo e do judaísmo, e ao contrário do que muitos pensam sobre o próprio islã, ele é uma religião basicamente ecumênica. Claro que é um ecumenismo um tanto peculiar, não muito parecido com o que se entende por essa palavra no Ocidente, onde ela muitas vezes descreve uma atitude politicamente correta e um tanto diplomática, tanto no bom quanto no mau sentido do termo. O que quero dizer quando afirmo que o islã é ecumênico é que ele não se considera de modo algum a única religião que tem uma autêntica origem divina. Por outro lado, isso não significa que todas as religiões sejam verdadeiras ou que seja indiferente preferir uma ou outra.

Convém nos determos para entender isso um pouco melhor. Tenho em casa um livrinho intitulado O islã e o cristianismo, do apologista muçulmano Ulfat Aziz Assamad, que diz o seguinte:

"A abordagem islâmica do tema 'religiões comparadas' é bastante diferente do ponto de vista cristão. O cristão é educado na crença de que a sua é a única religião verdadeira, tendo o judaísmo sido uma preparação para o surgimento do cristianismo, e que todas as demais religiões são falsas. [...] Deste modo, ele acredita somente nos profetas e mestres religiosos de Israel, vendo como impostores quaisquer outros pretendentes à condição de profetas. Os missionários cristãos sempre empregaram seus esforços em provar que os fundadores de outras religiões são falsos e maus, tornando-lhes possível estabelecer a afirmação da exclusividade de Jesus Cristo. [...] O muçulmano, por outro lado, acredita na origem divina de todas as grandes religiões do mundo. O Livro Sagrado do Islã declara que Deus enviou profetas entre todas as nações para guiar o povo para a senda da verdade e da probidade. Sendo o Criador e Provedor de todos os mundos, Ele não pode ser parcial e escolher uma nação, com exclusão das demais, para revelar as Suas Mensagens. O muçulmano deve acreditar nos fundadores de todas as grandes religiões."

Eu faria algumas ressalvas ao modo como Assamad apresenta a questão nesse trecho, mas ele chama a atenção muito bem para essa divergência fundamental em relação ao pensamento judaico-cristão: o islã não só tem uma pretensão universal (identificando-se nisso com o cristianismo e não com o judaísmo), mas também, ao contrário de ambos, rejeita a ideia de uma relação passada exclusiva de Deus com Israel. A afirmação de Assamad tem, pelo que posso ver, bons fundamentos corânicos. O Alcorão diz, por exemplo: "para cada comunidade, há um mensageiro" (10.47). Outra passagem é mais explícita: "Por certo, Nós te enviamos, com a Verdade, por alvissareiro e admoestador. E nunca houve nação sem que por ela passasse um admoestador" (35.24). Outro ponto diz: "E, com efeito, enviamos mensageiros antes de ti. Dentre eles há os de que te fizemos menção, e dentre eles há os de que não te fizemos menção" (40.78). Considero essa passagem interessante porque o Alcorão menciona pelo nome uma porção de profetas anteriores a Maomé, e a maioria deles é composta de profetas bíblicos; mas essa passagem diz explicitamente que há outros além dos mencionados, o que combina bem com a ideia de que outros povos também tiveram seus profetas. A tradição teológica posterior chega a falar em duzentos e tantos mil profetas espalhados pelo mundo ao longo da história.

Maomé não foi, portanto, de modo algum o único profeta, mas o islã atribui a ele (ou, melhor dizendo, ao Alcorão) o papel que o cristianismo atribui a Jesus: o de portador da revelação plena, universal e definitiva. O Alcorão deixa claro em diversos pontos que o judaísmo e o cristianismo são também revelações divinas e seus livros sagrados contêm as palavras dos profetas de Allah, embora misturadas a muitos erros posteriores. Em vista disso, os judeus e cristãos - genericamente denominados "seguidores do Livro" ou "povos do Livro" - são reprovados por não reconhecerem o Profeta. Na verdade, me parece que o Alcorão dá margem à inclusão de algumas outras religiões além do judaísmo e do cristianismo. Em 2.62 são mencionados ao lado de judeus e cristãos os sabeus, um grupo religioso que já existia na Arábia antes do advento do islã. Para alguns muçulmanos, esse versículo estabelece a base para uma generalização do mesmo princípio a todos os cultos monoteístas. Historicamente, os zoroastrianos da Índia e da Pérsia também foram considerados um "povo do Livro", e há muçulmanos que estendem a mesma consideração a algumas vertentes do hinduísmo, por exemplo. Além disso, o Alcorão menciona (em 3.2-4) que Deus revelou "Al-Furqan", expressão um tanto enigmática que, para muitos muçulmanos, designa "todos os livros revelados" (uma das edições do Alcorão que tenho em casa, patrocinada pela família real saudita, diz isso explicitamente em nota de rodapé). Mas não se diz em parte alguma quantos são esses livros revelados, nem quais são eles. De qualquer modo, a afirmação de Assamad de que "todas as grandes religiões" (o que não é o mesmo que "todas as religiões") têm origem divina me parece bem fundamentada no Alcorão e na tradição e cosmovisão islâmicas.

Isso levanta a questão que o vídeo discute: diante do exposto, qual deve ser a atitude dos muçulmanos para com judeus e cristãos (ou monoteístas em geral)? No plano político e social, a atitude predominante, com variações para melhor e para pior, foi a de tolerá-los como cidadãos de segunda classe - ou seja, com alguns direitos a menos e restrições a mais, mas ainda em situação bem melhor que os idólatras, ou seja, os pagãos e outros adeptos de crenças não-monoteístas, que em teoria não podiam ser admitidos na comunidade sagrada islâmica. Mas, voltando ao exame das afirmações corânicas, devo dizer que considero a atitude do Alcorão um tanto ambígua e possivelmente contraditória. Digo "possivelmente" porque não posso deixar de me solidarizar com o islã nesse ponto. Eu creio na infalibilidade da Bíblia, mas sei que ela tem pontos de interpretação difícil e controversa, e não tenho respostas para todas as dificuldades; por outro lado, depois de muito estudar e refletir, considero essas dificuldades bem menos numerosas e menos graves do que supõem seus críticos mais convencionais, que não hesitam em acusá-la de erro e contradição diante do mais leve indício, e quase sempre em questões que poderiam ser solucionadas sem muita dificuldade com um pouco mais de estudo, reflexão e percepção moral. Vivendo isso na pele como cristão, devo reconhecer que não estudei o Alcorão com a mesma intensidade com que gostaria que os críticos da Bíblia a estudassem, de modo que não me sinto no direito de afirmar que ele é contraditório nesse ponto que passo a descrever. Contudo, posso dizer ao menos que vejo uma contradição aparente para a qual não enxergo saída, e vou compartilhar aqui o modo como vejo a questão.

Existem passagens corânicas que parecem falar muito favoravelmente dos judeus e cristãos, ou pelo menos de uma parcela deles. Por exemplo, 3.69 diz que apenas uma parte dos judeus e cristãos são inimigos do islã: "Uma facção dos seguidores do Livro almeja desencaminhar-vos. E não desencaminham senão a si mesmos, e não percebem". Em 3.110 a mesma ideia é transmitida ("Entre eles há os crentes, mas sua maioria é perversa"), e melhor desenvolvida um pouco adiante (3.112-115): "Eles não são todos iguais. Dentre os seguidores do Livro há uma comunidade reta, que recita os versículos de Allah nas horas da noite, enquanto se prosterna; eles creem em Allah e no Derradeiro Dia, ordenam o conveniente, coíbem o reprovável e se apressam para as boas ações. E esses são dos íntegros. E o que quer que façam de bom não lhes será negado. E Allah, dos piedosos, é Onisciente." O trecho de 2.62 é igualmente explícito: "Por certo, os que creem e os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus, qualquer dentre eles que creu em Allah e no Derradeiro Dia e fez o bem terá seu prêmio junto de seu Senhor; e nada haverá que temer por eles, e eles não se entristecerão".

Por outro lado, há trechos que dizem claramente que quem rejeitasse Maomé seria condenado por Allah, e doutrinas específicas do cristianismo também são condenadas, como a divindade de Cristo e a Trindade. A sura 5, por exemplo, diz: "São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria, ainda quando o mesmo Messias disse: Ó israelitas, adorai a Deus, Que é meu Senhor e vosso. A quem atribuir parceiros a Deus, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o fogo infernal! Os iníquos jamais terão socorredores. São blasfemos aqueles que dizem: Deus é um da Trindade!, portanto não existe divindade alguma além do Deus Único. Se não desistirem de tudo quanto afirmam, um doloroso castigo açoitará os incrédulos entre eles. Por que não se voltam para Deus e imploram o Seu perdão, uma vez que Ele é Indulgente, Misericordiosíssimo? O Messias, filho de Maria, não é mais do que um mensageiro, do nível dos mensageiro que o precederam; e sua mãe era sinceríssima."

Esse tipo de ambiguidade me leva a sustentar que, ao menos à primeira vista, tanto os muçulmanos mais ecumênicos (hoje minoria) quanto os mais exclusivistas (hoje maioria) têm versículos corânicos para citar em favor de seus pontos de vista.

Convém agora discorrer um pouco sobre a perspectiva histórica do islã. Já mencionei que o Antigo Testamento, embora de forma um tanto vaga, afirma algum tipo de progresso da revelação de Deus aos homens, e o judaísmo se via de algum modo como um prenúncio de algo maior, que atingiria todos os povos através de uma nova e futura aliança com Deus. Mencionei também que o cristianismo se apresentou e se apresenta como o cumprimento dessa promessa um tanto esquecida pelos próprios judeus. Num certo sentido, o islã compete com o cristianismo por esse status de revelação final, definitiva e universal. Por outro lado, a perspectiva islâmica sobre a história da revelação é diferente da cristã em dois aspectos importantes.

O primeiro é que o islã não reconhece exatamente um progresso da revelação. Para o muçulmano, é bastante contra-intuitiva a ideia de um progresso da religião, pois a religião autêntica, revelada, é o modo correto de o homem se relacionar de Deus, e a natureza humana não mudou; a divina, muito menos. Portanto, a mensagem que cada profeta trouxe ao mundo desde o início da história humana é substancialmente a mesma, e a multiplicidade de religiões que observamos no mundo só pode ter duas fontes: ou a mensagem profética foi explicitamente rejeitada (resultando o politeísmo e a idolatria), ou foi aceita, mas se corrompeu e perdeu algo de sua pureza com o passar do tempo (que é o caso dos "povos do Livro"). Assim, o Alcorão diz, por exemplo: "Abraão não era judeu nem cristão, mas monoteísta sincero, submisso. E não era dos idólatras" (3.67). Ou seja, Abraão era um profeta da religião perene, a mesma que Maomé pregava, e não de suas versões corrompidas posteriores, nem das crenças ainda mais distantes da verdade que negam até mesmo a unicidade e transcendência de Deus, que são os pontos fundamentais da fé islâmica. No Alcorão também consta a seguinte ordem de Deus a Maomé: "Cremos em Allah e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaque, e Jacó, e as Tribos, e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e a Ele somos submissos" (3.84). Trechos assim também confirmam a unidade e a indistinção fundamental entre as mensagens de todos os profetas.

O segundo aspecto no qual há uma divergência básica entre o islã e o cristianismo quanto à história da revelação é que o islã trouxe de volta a ênfase política do judaísmo antigo. O cristianismo, é claro, não é alheio a nenhuma área da vida humana, prega a autoridade e soberania de Cristo sobre todas as esferas da existência e não é favorável ao laicismo moderno. Mas o islã tem como sua preocupação central a formação de uma comunidade política que reflita a vontade de Deus em sua organização e em suas leis. É por isso que Maomé era simultaneamente um profeta religioso e um líder político e militar. É também por isso que a data inicial do calendário islâmico é a fuga de Maomé de Meca para Medina, ocasião em que foi fundada a primeira comunidade política regida pelo islã. E é também por isso que o direito, a jurisprudência e a teoria política ocuparam posições centrais nos desenvolvimentos intelectuais da civilização islâmica, e quase todos os grandes teólogos muçulmanos foram também grandes juristas. A relação entre fé e política no islã é tal que o muçulmano geralmente não se sente livre para praticar sua religião a menos que ela seja politicamente dominante, e essa é uma das fontes remotas de tantos problemas envolvidos na relação entre o islã e o Ocidente. Nesse sentido, pode-se dizer que a perspectiva islâmica constitui um retrocesso em relação ao cristianismo. E, quando digo "retrocesso", não só emito um juízo pessoal de valor, mas também pretendo indicar objetivamente que o islã retornou à perspectiva judaica do Antigo Testamento, que, como já expliquei, não separa os códigos moral, religioso e civil. Para o muçulmano, a conversão do mundo todo à sua fé é desejável, o que o distingue do judeu e o aproxima do cristão; mas, para o muçulmano, essa conversão significa antes de tudo a incorporação do mundo todo à Umma, a comunidade política sagrada.

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